O DESTINO
DE JÉSSICA
Jéssica bateu a primeira vez
na minha casa há uns três anos.
Veio para pedir. É a “profissão”
da família dela.
Contam no bairro que a avó
dela, Cícera, era o tipo de pedinte
às antigas, que todas as
donas-de-casa ajudavam porque
a conheciam de longa data.
Até que Cícera sumiu e seu
filho, dias depois, apareceu
com cara triste, contando que
a mãe havia morrido e que ele
não tinha dinheiro para o enterro.
O bairro todo se sensibilizou
e deu dinheiro para um
enterro mais digno.
Algumas semanas depois,
Cícera voltou a pedir pelas casas,
muito viva! Não sabia que
estava “morta”. Seu filho enganara
a todos. Esse homem é o
pai de Jéssica.
Me sensibilizei de cara com a
menina de 14 anos. Ela passou a
confiar em mim e sempre vinha
comumirmão ou irmã mais
novos. No começo, achei que
poderia mudar a vida da garota
com conselhos, cadernos, livros,
palavras e incentivos.
Mas sempre lhe dava também
comida. A Jéssica e os seus
estão sempre comfome. Devoramcom
gosto as xícaras de
café com leite, o pão com manteiga,
bolos, bolachas.
Para ajudar, passei a comprar
dela bombons caseiros,
feitos por uma vizinha. Também
dei-lhe um pito, para ela
não pedir por aí. Percebi que a
mãe a obrigava. Chamei a mãe
e disse que ajudaria Jéssica,
mas só se ela parasse de pedir
nas ruas e não faltasse à escola.
A mãe jurou que ela nunca havia
obrigado a menina a pedir.
E também me garantiu que ela
passaria a ser uma boa aluna.
Jéssica estava na 6ª série.
Mas a vida de Jéssica não é
fácil. Fazer bombons, por
exemplo, não deu certo. Como
irmã mais velha de sete e com a
geladeira vazia, o chocolate
desaparecia sem ela perceber.
Nem o cadeado que ela colocou
resolveu o problema.
Um sábado, a flagrei sentada
na rua com uns quatro irmãos,
comendo em potes
plásticos os restos de uma casa.
Parei o carro, a chamei, ela ficou
branca. Sabia que eu havia
descoberto que ela ainda pedia,
que faltava na escola, que
não havia conseguido.
Mas, como censurá-la?
Mora num barraco, os pais
nunca têm emprego, vivemde
bicos e cestas básicas dadas pela
assistência social. O pai,
além de tudo, é alcoólatra.
Também não consegue avançar
nos estudos. A escola diz
que “a família é desestruturada”,
que não adianta chamar os
pais, eles não comparecem.
A principal desculpa de Jéssica
para pedir nas casas é a falta
de dinheiro para comprar o
gás de cozinha. Deve mentir.
Percebo que temvergonha de
pedir tudo o que precisa. Mas,
quando falta mesmo o gás, a
mãe acende uma fogueira para
fazer a comida. E o resto da favela
manda ela apagar, por medo
de incêndio.
Outro dia, depois de muitosmeses
sumida, Jéssica apareceu
de noite em casa, no
meio da chuva. Eu não estava,
meu marido a colocou para
dentro, perguntou se queria
comer algo, do que precisava e
mandou me esperar. Ela não
aceitou a comida, mas esperou
a chuva passar e sumiu de vez.
É uma menina angustiada,
triste, que sempre parece ter
um nó na garganta, uma vontade
de chorar e de gritar que
não quer a vida que leva. Parece
que está convencida que tem
um destino de pobreza e não
consegue uma forma de se livrar
dele. E quem é que terá
uma saída para Jéssica?
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