quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Poço de perfeição

Publicado em 27 de abril de 2008

O barulho parecia ensurdecedor. Mas eram só os ouvidos dela. Um caminhão, um ônibus, carros pela avenida faziam os movimentos banais do cotidiano e, no meio deles, Maria empurrava o carrinho do seu bebê.
Ela decidira dar um passeio com a menina pelas calçadas desniveladas do bairro. Ela avançou insistente até a esquina. Mas lá, em um metro quadrado, ela se perdeu.
O que lhe tomou? Que sensação foi aquela? O barulho de dentro era mais forte que o barulho de fora. Maria enxergava os movimentos como se fossem editados em takes rápidos. Era tudo superlativo e, ao mesmo tempo, era como se ela fosse transparente.
Ela se sentia profundamente só. No carrinho, a bebê não chorava, mas a olhava como uma estrangeira pedindo ajuda.
Maria não conseguia avançar. Estava alucinada. Dava passos desequilibrados, olhava para o alto e para os lados e tudo o que conseguiu foi recuar e fugir empurrando o carrinho de volta pelo caminho.
Aquela sensação durou eternos segundos. E, o mais curioso é que, naquele momento, Maria ainda não sabia. Ela realmente não imaginava. Mas, talvez, ao seu coração, a mensagem já estivesse dada.
O que viria? A notícia do mal congênito de sua filha recém-nascida, uma doença incurável. E, junto, viriam o medo, a dúvida, a luta, a dor, os vômitos, os olhares de pena, os exames, as febres, os aparelhos, a esperança e, por fim, a morte da criança aos 2 anos.
Mas, naquele dia, naquela esquina, no meio da fumaça, ela ainda não sabia.
Após a morte, não veio o choro, o desespero. Veio o trabalho, o trabalho e o trabalho. E a obrigação auto-imposta de consolar os outros.
Ela não podia esmorecer, não podia fraquejar. Porque, se caísse, nada sobraria ao seu redor, acreditava. E ela continuou.
Nem os outros filhos a fizeram parar. Tudo tinha que estar certo, no lugar: contas em dia, geladeira cheia, casa limpa, sem respirar ou olhar para os lados, continuar. Não havia mais poesia, música ou leveza. Só o que havia era a obrigação de fazer, até com uma certa alegria, uma felicidade orgulhosa, fria e um pouco amarga.
Até que, com os filhos adultos, a própria vida a chacoalhou. Todos se afastaram: não agüentavam mais viver com o “poço de perfeição”.
E só então, na solidão, Maria percebeu que não havia superado a morte da filha: só tentou enganar a sua dor. E resolveu olhar mais para ela. Lá dentro, se assustou ao encontrar um ser desconhecido e se impressionou com o seu próprio tamanho. Porém, vislumbrou possibilidades múltiplas. Só tinha que virar a chave, abrir a porta do seu coração.
Bastaria aceitar a dor? Não, tinha certeza. Ela também tinha que encarar suas verdadeiras fraquezas e virtudes, e, principalmente, ter coragem para recomeçar.