O PERDÃO DO
DICIONÁRIO
— Então, agora, você tem
um amante? — a pergunta de
Renata caiu como uma bomba
na consciência de Edite. Não
suportava a palavra “amante”.
Desde muito jovem, relacionava
o termo a algo sujo, à
quebra total de confiança. Menina,
ouvia como sua mãe e
tias falavam mal dasmulheres
que tinham amantes.Mais velha,
virou leitora de Nelson
Rodrigues e interpretava que o
autor tratava seus personagens
— mulheres e homens que tinham
amantes — com escárnio
e desprezo. Para piorar,
amantes vinham sempre junto
da palavra “corno”, outro termo
que lhe virava o estômago
só de pensar.
Para Edite, Nelson Rodrigues
traduzia em suas crônicas
o que pensavam a sociedade e a
sua família, e ela sentia vergonha
só de imaginar o que seria
viver aquilo. Até aceitava as
“escorregadas” de suas amigas,
mas, lá no fundo, sentia um
certo prazer em se saber “superior”
a elas. Dizia:
— Eu não corro nenhum
risco de cometer este deslize.
Até que, um dia, após dez
anos de casada comAdolfo, se
apaixonou por outro homem.
Foi tão rápido e imprevisível
que ela não teve como se proteger.
Edite conheceu Vinícius
na loja de roupas onde trabalhava.
O rapaz, três anos mais
velho do que ela, era insinuante.
Separado, ele passou a frequentar
a loja diariamente.
Sua primeira reação foi
pensar que aquilo era só uma
boa amizade,mas se assustou
quando percebeu que, ao vêlo,
seu corpo queimava com
um tipo de desejo que nunca
havia sentido antes por ninguém,
nem por Adolfo, no início
do namoro. E, quando se
deu conta, já estava sonhando
comos beijos e abraços do rapaz.
Começou a ter noites de
insônia, acessos de choro, agonias
“inexplicáveis”.
Numa tarde, aproveitou
uma folga no trabalho e aceitou
tomar um café comVinícius.
Da lanchonete, foi conhecer
o apartamento do rapaz.
E lá simplesmente esqueceu
tudo o que já tinha dito e
pregado sobre infidelidade. E
estava feliz como nunca. Tão
feliz que, como uma adolescente
que ama pela primeira
vez, fez questão de contar para
as amigas o que tinha acontecido.
E daí veio a pergunta que
a fez cair das nuvens:
— Então, agora você tem
um amante?
Edite simplesmente pirou.
Sua primeira reação foi negar.
E criar uma outra definição
para o tipo de relacionamento
que estava iniciando.
— Não, não, ele não é meu
amante... — respondeu, toda
atrapalhada e envergonhada.
Em casa, correu a um dicionário
pela primeira vez na vida,
e foi procurar o significado
da palavra “amante”. Deveria
ter algo lá que amenizasse o
tom sujo do termo, que desmentisse
Nelson Rodrigues. E,
no primeiro verbete, ela se sentiu
aliviada:
“Pessoa que ama; namorado;
apaixonado”.
Decidiu ignorar o verbete
seguinte, que dizia:
“Pessoa que tem com outra
relações extramatrimoniais”.
Os encontros comVinícius
continuaram, cada vez mais
frequentes. Mas ela não sentia
que traía o marido. Muito pelo
contrário: quando estava com
o Adolfo, sentia que traía Vinícius.
Sua consciência com o
amante estava sempre tranquila.
Quando começava a duvidar
disso, abria o dicionário
e lia só o primeiro verbete.
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