quinta-feira, 10 de março de 2011

05/07/2009 - O PERDÃO DO dicionário

O PERDÃO DO


DICIONÁRIO

— Então, agora, você tem

um amante? — a pergunta de

Renata caiu como uma bomba

na consciência de Edite. Não

suportava a palavra “amante”.

Desde muito jovem, relacionava

o termo a algo sujo, à

quebra total de confiança. Menina,

ouvia como sua mãe e

tias falavam mal dasmulheres

que tinham amantes.Mais velha,

virou leitora de Nelson

Rodrigues e interpretava que o

autor tratava seus personagens

— mulheres e homens que tinham

amantes — com escárnio

e desprezo. Para piorar,

amantes vinham sempre junto

da palavra “corno”, outro termo

que lhe virava o estômago

só de pensar.

Para Edite, Nelson Rodrigues

traduzia em suas crônicas

o que pensavam a sociedade e a

sua família, e ela sentia vergonha

só de imaginar o que seria

viver aquilo. Até aceitava as

“escorregadas” de suas amigas,

mas, lá no fundo, sentia um

certo prazer em se saber “superior”

a elas. Dizia:

— Eu não corro nenhum

risco de cometer este deslize.

Até que, um dia, após dez

anos de casada comAdolfo, se

apaixonou por outro homem.

Foi tão rápido e imprevisível

que ela não teve como se proteger.

Edite conheceu Vinícius

na loja de roupas onde trabalhava.

O rapaz, três anos mais

velho do que ela, era insinuante.

Separado, ele passou a frequentar

a loja diariamente.

Sua primeira reação foi

pensar que aquilo era só uma

boa amizade,mas se assustou

quando percebeu que, ao vêlo,

seu corpo queimava com

um tipo de desejo que nunca

havia sentido antes por ninguém,

nem por Adolfo, no início

do namoro. E, quando se

deu conta, já estava sonhando

comos beijos e abraços do rapaz.

Começou a ter noites de

insônia, acessos de choro, agonias

“inexplicáveis”.
Numa tarde, aproveitou


uma folga no trabalho e aceitou

tomar um café comVinícius.

Da lanchonete, foi conhecer

o apartamento do rapaz.

E lá simplesmente esqueceu

tudo o que já tinha dito e

pregado sobre infidelidade. E

estava feliz como nunca. Tão

feliz que, como uma adolescente

que ama pela primeira

vez, fez questão de contar para

as amigas o que tinha acontecido.

E daí veio a pergunta que

a fez cair das nuvens:

— Então, agora você tem

um amante?

Edite simplesmente pirou.

Sua primeira reação foi negar.

E criar uma outra definição

para o tipo de relacionamento

que estava iniciando.

— Não, não, ele não é meu

amante... — respondeu, toda

atrapalhada e envergonhada.

Em casa, correu a um dicionário

pela primeira vez na vida,

e foi procurar o significado

da palavra “amante”. Deveria

ter algo lá que amenizasse o

tom sujo do termo, que desmentisse

Nelson Rodrigues. E,

no primeiro verbete, ela se sentiu

aliviada:

“Pessoa que ama; namorado;

apaixonado”.

Decidiu ignorar o verbete

seguinte, que dizia:

“Pessoa que tem com outra

relações extramatrimoniais”.

Os encontros comVinícius

continuaram, cada vez mais

frequentes. Mas ela não sentia

que traía o marido. Muito pelo

contrário: quando estava com

o Adolfo, sentia que traía Vinícius.

Sua consciência com o

amante estava sempre tranquila.

Quando começava a duvidar

disso, abria o dicionário

e lia só o primeiro verbete.

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