terça-feira, 2 de agosto de 2011

Assunto de família

Eles não aguentavam mais a monotonia de suas vidas. Então, decidiram ser amantes.

Pelo menos três vezes por semana, Ricardo frequentava a casa de Hercília, sempre às tardes. Ele entrava pelos fundos e ela sintonizava um programa vespertino na TV, aumentando o volume. E se jogavam na cama do quarto.

E assim foram tocando o seu romance secreto, durante dois anos. Aos domingos, se a família se reunia na casa dos sogros deles, os dois mantinham distância. Na mesa onde sempre sentavam mais de dez parentes, Hercília escolhia o lado do marido, Marcos, ou de um dos filhos, enquanto Ricardo ficava solícito ao lado da mulher, Matilde.

Marcos e Matilde eram irmãos. Ricardo e Hercília, cunhados.

No início do ano, Hercília passara por uma fase feliz. O marido tinha ido viajar por alguns meses. Mas, o que ela não esperava era que o filho mais velho precisaria voltar mais cedo para casa, sem avisar. E o rapaz flagrou a mãe com tio na cama.

Foi um perereco. O rapaz foi direto para a casa dos avós desabafar sua indignação e desespero. A família toda foi convocada. Pais, irmãos, tios, filhos e sobrinhos dos dois casais se reuniram para debater o caso e o futuro dos traidores.

Mas Hercília mantinha a altivez e a razão que a paixão lhe conferiam. Disse que foi sem querer, que não contaram antes por falta de coragem.

— Sinto muito, mas vocês têm que entender. Foi sem querer — pediu, sem perceber que todos sabiam que aquilo não terminaria sem o flagrante.

Ricardo não estava muito convicto, mas, acuado, anunciou a sua separação. Matilde só chorava. E o resto da família defendia Marcos, o ausente.

O veredicto foi que Hercília deveria sair da casa do marido e Ricardo, da casa da mulher. Não havia mais o que falar. Qualquer palavra era um insulto. E Hercília e Ricardo se foram. Quando fecharam a porta, um silêncio de morte tomou conta da casa. Então o interfone tocou e, do outro lado da linha, a Hercília falou para o primeiro que atendeu:

— Oi. Pede pro meu filho trazer aqui no portão os meus óculos que ficaram aí?

— Ela esqueceu os óculos aqui — alguém disse.

Todos se entreolharam e nos seus lábios sorrisos sarcátiscos se desenharam. E várias mãos voaram para pegar a armação na mesa:

— Óculos, nem vi! — falou Manuela, a irmã mais nova de Matilde, enquanto o acessório deslizava de suas mãos para o chão e era espatifado com uma pisada.

— Será que é esse aqui? — perguntou Matilde, firmando a ponta da bota na lente de dois graus. — Filipe, leva lá pra sua mãe. Diga que é uma pena, mas a gente não viu e, sem querer, pisou nele.

Publicado na Diário DEZ em 14 de setembro de 2008