quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Poço de perfeição

Publicado em 27 de abril de 2008

O barulho parecia ensurdecedor. Mas eram só os ouvidos dela. Um caminhão, um ônibus, carros pela avenida faziam os movimentos banais do cotidiano e, no meio deles, Maria empurrava o carrinho do seu bebê.
Ela decidira dar um passeio com a menina pelas calçadas desniveladas do bairro. Ela avançou insistente até a esquina. Mas lá, em um metro quadrado, ela se perdeu.
O que lhe tomou? Que sensação foi aquela? O barulho de dentro era mais forte que o barulho de fora. Maria enxergava os movimentos como se fossem editados em takes rápidos. Era tudo superlativo e, ao mesmo tempo, era como se ela fosse transparente.
Ela se sentia profundamente só. No carrinho, a bebê não chorava, mas a olhava como uma estrangeira pedindo ajuda.
Maria não conseguia avançar. Estava alucinada. Dava passos desequilibrados, olhava para o alto e para os lados e tudo o que conseguiu foi recuar e fugir empurrando o carrinho de volta pelo caminho.
Aquela sensação durou eternos segundos. E, o mais curioso é que, naquele momento, Maria ainda não sabia. Ela realmente não imaginava. Mas, talvez, ao seu coração, a mensagem já estivesse dada.
O que viria? A notícia do mal congênito de sua filha recém-nascida, uma doença incurável. E, junto, viriam o medo, a dúvida, a luta, a dor, os vômitos, os olhares de pena, os exames, as febres, os aparelhos, a esperança e, por fim, a morte da criança aos 2 anos.
Mas, naquele dia, naquela esquina, no meio da fumaça, ela ainda não sabia.
Após a morte, não veio o choro, o desespero. Veio o trabalho, o trabalho e o trabalho. E a obrigação auto-imposta de consolar os outros.
Ela não podia esmorecer, não podia fraquejar. Porque, se caísse, nada sobraria ao seu redor, acreditava. E ela continuou.
Nem os outros filhos a fizeram parar. Tudo tinha que estar certo, no lugar: contas em dia, geladeira cheia, casa limpa, sem respirar ou olhar para os lados, continuar. Não havia mais poesia, música ou leveza. Só o que havia era a obrigação de fazer, até com uma certa alegria, uma felicidade orgulhosa, fria e um pouco amarga.
Até que, com os filhos adultos, a própria vida a chacoalhou. Todos se afastaram: não agüentavam mais viver com o “poço de perfeição”.
E só então, na solidão, Maria percebeu que não havia superado a morte da filha: só tentou enganar a sua dor. E resolveu olhar mais para ela. Lá dentro, se assustou ao encontrar um ser desconhecido e se impressionou com o seu próprio tamanho. Porém, vislumbrou possibilidades múltiplas. Só tinha que virar a chave, abrir a porta do seu coração.
Bastaria aceitar a dor? Não, tinha certeza. Ela também tinha que encarar suas verdadeiras fraquezas e virtudes, e, principalmente, ter coragem para recomeçar.

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

O primeiro desejo

Publicado em 20 de abril de 2008

— Oi. Olha, me desculpe por ter demorado tanto a ligar — era Douglas do outro lado da linha.

O coração de Analice foi parar na boca. Meio seca, ela respondeu:

— É. Me disseram que você tinha voltado.

— É... Aconteceram uma coisas lá no Rio, eu engravidei uma menina. Tive que casar. Mas — ele continuou, com certa doçura na voz — é de você que eu gosto, sabe? Então, não quer ficar comigo mesmo assim?

Analice parou de respirar por alguns segundos. Não podia acreditar na proposta que ouvia. Douglas não dava notícias havia três meses, desde que viajara para o Rio de Janeiro, com a ajuda dela. Na escola, uma amiga em comum acabou lhe contando que ele havia voltado com outra garota. Com raiva, telefonou para a casa dele (tinha ligado só após um mês de desaparecimento, e desistido). E, num dos telefonemas, o próprio atendeu e, ao reconhecer a voz da ex-namorada, desligou apressado. No dia seguinte, ele próprio resolveu telefonar para a moça.

Douglas e Analice haviam se conhecido em 1984, no feriadão de Independência. Tinham 18 anos. Com ele, Analice entendeu pela primeira vez o que era o desejo. Estavam na praia. Douglas e alguns amigos, numa quitinete alugada. Ela, na casa da família de uma amiga. Numa noite muito quente, com todos os jovens reunidos na sala da quitinete, ela ao lado dele no sofá, a mão quente que subia e descia discretamente pela sua perna lhe fez sentir arrepios que não sabia que existiam.

O namoro continuou ao voltarem do passeio. E o desejo só fez aumentar. O casal não se largava. Um dia, ele a levou a um barzinho para casais. O lugar era escuro e cheio de cubículos onde só cabiam duas pessoas, forrados de um veludo preto e fechados com uma cortina também preta. À frente do banco, uma mesinha parecia mais o parapeito de uma janelinha por onde os pedidos eram feitos e entregues. Para chamar o garçom, havia um botão que, ao ser apertado, acendia uma luz do lado de fora. Naquele cubículo, sem nenhum pudor, a garota perdeu a virgindade.

Em janeiro de 1985, Douglas, mesmo sem trabalho ou dinheiro, a convidou para ir ao Rock in Rio. Analice era maior, mas o medo da reação de seu pai a fez recusar. Mesmo assim, arrumou dinheiro para o namorado seguir na aventura, certa de que ele voltaria em fevereiro.

— Mas ele só voltou em abril, casado e com a maior cara de pau do mundo. Quando ouvi a proposta de ser sua amante, só consegui responder: quero que você morra! — Analice me contou outro dia.

— E você, não se arrepende de ter perdido a virgindade naquele lugar? — perguntei.

— Ah! Isso não — me respondeu, meio divertida. — Quer saber? Eu não liguei nada pra esquisitice do barzinho. Pra mim, até hoje, é como se tivesse sido às margens da Lagoa Azul.

É. A paixão cega mesmo as mulheres.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

História diferente

13 de abril de 2008

A história da Branca começa como a de muitas mulheres. Ela era muito jovem quando se casou com Leopoldo, já grávida. Primeiro namorado, tinha por ele uma paixão avassaladora. Nos primeiros anos juntos, ela se sentia feliz. Sonhava viver toda vida com ele.
Para ajudar nas contas da casa, abriu um pequeno bazar no bairro onde moravam. Dava duro, mas ganhava pouco. Leopoldo era autônomo. Intermediava a venda de vários produtos, de jóias a equipamentos eletrônicos, e conseguia algum dinheiro. Não faltava o básico na casa. E, quando precisavam de algo a mais, o pai de Leopoldo, oficial aposentado do exército, sempre ajudava.
Tiveram o primeiro filho, um menino, e, dois anos depois, nascia uma garotinha. Após seis anos juntos, conseguiram comprar uma casa.
Leopoldo, porém, começou a mudar. Ele já não era carinhoso. Conversava pouco e voltava tarde. Quando ela perguntava o que acontecia, acabavam brigando.
Branca, desconfiada que o marido tinha outra, resolveu investigar. Um dia seguiu Leopoldo e o viu com uma moça, aos beijos, em um bar. Mas não era mulher de escândalos. Voltou para casa chorando e, quando ele chegou, não lhe disse nada. E também nunca mais tentou reconquistá-lo.
Secretamente, Branca planejava uma forma de acabar com seu casamento. Precisava ter dinheiro para viver com os dois filhos — o que ganhava no bazar não os sustentava. Ela também arrumou um amante.
“Foi por vingança. Mas o Leopoldo descobriu e a vida virou um inferno. Ele passou a me humilhar e exigiu a separação. Não adiantou eu dizer que sabia que ele também tinha outra”, me contou Branca.
O marido quis metade de tudo o que tinham. E o bazar teve que ser vendido. Branca sabia, porém, que o pior viria na hora de discutirem a pensão das crianças. Ela não tinha como provar quanto Leopoldo ganhava. E ele já avisara: lhe daria o mínimo possível.
“Ele queria me ver na miséria e fazer as crianças terem raiva de mim”.
Foi aí que Branca fez a sua história ser diferente da de outras mulheres que se separam: no fórum, na hora de definir o valor, ela disse ao juiz:
“Doutor, vou abrir mão da guarda. Não tenho como criá-las”.
Leopoldo ficou pálido: nunca quis ficar com os filhos. Mas seu pai tinha dinheiro e o juiz aceitou.
Muita gente a criticou.
“Como uma mãe abria mão assim dos filhos?”
Mas ela me disse que foi o melhor que podia fazer.
“Eles não passaram pela falta de dinheiro que eu tive que enfrentar. Está certo que cresceram na casa do pai, mas sempre foram muito mais próximos de mim”, conta.
Quando havia algum problema, Branca era acionada por telefone. Aos poucos, ela refez sua vida, reabriu o bazar e hoje tem duas lojas.
“E os meninos, quando puderam, escolheram morar comigo”.

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Um ideal de mulher

Publicada em 6 de abril de 2008

Em Água Funda ninguém a entendia. Nascida e criada no lugarejo, quando voltou, depois de passar mais de dez anos longe, era como se fosse uma desconhecida. Ela fingia desdenhar o que os outros pensavam, mas no fundo sofria com a incompreensão e indiferença de todos.
Aparecida cresceu em uma chácara como uma menina comum do interior. Foi formada pela mãe para ser uma dona-de-casa perfeita: cozinhava como ninguém, cuidava da limpeza sozinha, deixava as panelas brilhando, as roupas lavadas por ela eram as mais brancas e cheirosas da redondeza.
Seus pais seguiam uma cartilha muito comum naquelas paragens — faziam de conta que o mundo fora da sua região não existia. É que não queriam a sua Cidinha experimentando a vida solta, longe de seus olhos. Mas a menina crescia olhando para fora da cerca da chácara. E, secretamente, planejava o meio de conhecer o que havia além do fim da estrada.
O primeiro passo foi fazer uma faculdade na cidade vizinha. Se formou em economia. E, numa manhã, quando os pais acordaram, ela já havia tomado a sua decisão — partiria para a capital do estado. Já tinha emprego arrumado e não havia mais nada que eles pudessem fazer para evitar a sua partida.
Pelos próximos anos, Cidinha seria a referência do lugarejo na capital. Muitas de suas colegas de Água Funda a usavam de exemplo para suas próprias filhas.
“Ela se esforçou para chegar onde está. E não precisou casar. Tem seu apartamento e um bom salário. Não tem essa vida sem sentido que nós temos aqui”, diziam.
Mas, apesar de demonstrar independência, Cida vivia para um namorado. Cuidava dele como sua mulher. Trabalhava fora e cuidava das duas casas: a dele e a dela. Se questionada, dizia que era apaixonada e que iam se casar. Foram sete anos assim: cozinhando, limpando e pagando as contas dele. Até que um dia Cidinha perdeu o emprego e, sem dinheiro todo mês, o namorado também a abandonou.
Em Água Funda, ninguém sabia dessa parte de sua vida na cidade. Por isso, quando voltou para morar com os pais, triste e sem esperança, muita gente torceu o nariz.
O desapontamento geral e definitivo aconteceu, porém, quando ela engravidou de um agricultor sem estudo e resolveu se casar. Daí para a frente, ninguém mais a respeitou. O ideal de mulher independente que ela representava faliu na cabeça do povo da cidade.
Cida, hoje, tem dois filhos. Trabalha como doméstica na casa de uma das famílias mais ricas do lugarejo. Seu diploma está perdido. Ela não reclama. Antes, se conforma. Prefere pensar que viveu só uma aventura na capital. Da antiga paixão, nunca mais ouviu falar.
“O que sou mesmo é uma mulher comum do interior”.

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Olhares virtuais

Publicada em 30 de março de 2008

Verônica sentou à noite na varanda para sentir o cheiro de biscoito assado no ar. A lua cheia brilhava meio escondida sob as nuvens do início do outono. Havia uma brisa fresca, o que permitia que o cheiro quente chegasse como um abraço.
O cheiro de biscoito sempre a deixava feliz. A remetia a um tempo em que a vida era mais simples e os símbolos das situações, claros.
Na sua infância, cheiro de biscoito significava a hora da parada rápida na brincadeira para o lanche da tarde. Era aconchego e cuidado no sítio dos avós.
Após respirar fundo, Verônica quis mesmo voltar a ser criança. Não conseguia parar de pensar em como os símbolos da vida se complicam conforme as pessoas envelhecem. "Devia ser o oposto. Devíamos crescer aprendendo a simplificar a vida", pensava.
Minha amiga havia superado uma fase difícil. Mas continuava pensativa, refletindo sobre o que tinha lhe acontecido.
Quando descobriu a internet, ela mergulhou no mundo virtual. Todo seu dia era regulado pelo computador. E a convivência com os outros, também.
Primeiro foram os e-mails entre os conhecidos. Depois, cartões e flores virtuais. Enfim, chegaram os amigos e amores que não conhecia. Passou a ser especialista em interpretar o que os outros queriam dizer na net.
— Ele escreveu tudo em letra maiúscula. Está com raiva — disse uma vez, já em pânico com o possível mau humor do seu chefe naquele dia.
— Ele pode só estar com pressa. Não prestou atenção na letra que fez — argumentei, mas ela não se convenceu e sofreu à toa.
Naquele dia, seu chefe chegou de muito bom humor.
Com os amigos virtuais, a situação ficou pior. Ela ficava horas no chat. Depois, vinha mostrar os diálogos que queriam dizer isso ou aquilo.
— Recebi um buquê de girassóis, com uma dedicatória linda! Como são perfumadas!
Eram flores virtuais, mas ela sentia o cheiro delas! Eu lhe perguntava como podia estar apaixonada por alguém que nunca havia visto ou ouvido. Mas ela não me dava atenção. Preferia se entregar ao amor filtrado e revisado da internet.
Um dia, porém, o namorado virtual quis um encontro real. Ela vacilou um pouco, mas topou. Só que tinha que contar para o rapaz sobre o seu problema físico. Quando adolescente, sofrera um acidente de moto e perdera uma perna.
— Contei, Vi. Para ele, isso me engrandece.
No dia seguinte, na hora marcada, o rapaz dos girassóis não apareceu. E nem nunca mais. Verônica chorou um mês inteiro. Mas já superou o trauma e entendeu a experiência como uma lição. Ela sabe que não pode se livrar da internet no mundo atual. Mas aprendeu a fazer questão de sentir cheiros, olhares e, principamente, toques reais.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Mais uma viagem

Publicado em 23 de março de 2008

Ela o viu pela primeira vez em uma viagem corriqueira de negócios e, me garantiu, nem lhe prestou atenção. Estavam no mesmo andar do hotel e se trombavam no elevador, no café da manhã, no hall e no bar. Mesmo assim, Marina jura que nem ligou para ele, assim, logo de cara. Marina era paulista, consultora de uma empresa de cosméticos. Tobias tinha assumido a gerência de compras de uma construtora do Rio. Para ela , a viagem era mais uma. Para ele, um desafio profissional que exigia muita concentração. Mesmo assim, traído pelo desejo, não parou de pensar na moça desde o dia em que chegaram e preencheram as fichas no balcão, um ao lado do outro. No elevador, ele tentava cumprimentá-la com um sorriso. Ela mal acenava com a cabeça. No hall, enquanto esperavam táxis para levá-los aos seus compromissos pela manhã, ele puxava conversa, mas ela não lhe dava bola. Foi assim durante toda a semana. Então, na última noite de Marina na cidade, ela estava com uma colega, no bar, quando Tobias se aproximou e se ofereceu para pagar uma bebida. Contou o que fazia, por que estava lá e quis saber: “E vocês, o que fazem aqui?”. Mas, enquanto Gisele respondia, Marina fez questão de não disfarçar um bocejo e anunciar que iria para o quarto. Tobias ficou furioso. Ele só queria conhecê-la e ela insistia com seu ar superior. Naquela noite, nem pensou direito nas compras que deveria fechar para a companhia no dia seguinte. Pela manhã, ela já não estava no café e ele não teve dúvidas: subornou o recepcionista e conseguiu o e-mail pessoal dela. Tinha um plano. De volta ao seu escritório, começou a enviar a Marina mensagens de amor. Em princípio, ela não entendeu direito. Demorou até lembrar quem era o autor. Gisele ajudou: “É aquele cara que você ignorou”. Na verdade, Marina parecia fria porque não estava na sua melhor fase. Acabara de terminar um casamento de sete anos, estava ferida e nada a estimulava para novos amores. E o pouco que ouviu sobre Tobias não era excitante. O rapaz tinha opiniões de direita, gostava de música sertaneja e de filmes de horror. Mas se mostrou um romântico virtual: primeiro vieram os poemas, depois as canções com foto anexada, e ela , que estava mesmo carente, topou encontrá-lo. Ele viria a São Paulo no fim de semana. Chegou sexta, deram um rolé pela Paulista e foram jantar. Depois, seguiram para o apartamento dela e, de lá, só saíram no domingo de manhã para ele pegar o avião. E foi justamente no café da manhã que ele, cruel, contou: “Olha, sou casado”. Marina quase morreu. Mas um fim de semana de sexo de alta qualidade já havia sido o bastante para deixá-la apaixonada e ela topou continuar com aquilo. Ele voltou mais umas três vezes a São Paulo, mas quando ela foi ao Rio, a pressa do rapaz para deixá-la porque tinha que assistir ao balé da filha a arrasou. Aos poucos, as mensagens se transformaram em patadas verbais e foram rareando, até que desapareceram, junto com ele. E Marina, até hoje, chora de saudades.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

As quatro do Fusca

Publicado em 16 de março de 2008

As quatro do fusca Vera fez a proposta. Queria sair com suas três amigas para ter uma conversa franca. Elas viviam num tempo de sonhos e dividiam um espaço de dúvidas, mágoas e apreensões. E lá foram elas. Vera ao volante do Fusca. Era noite e ela parou o carro em uma praça. Do lado de fora, uma chuva forte; do lado de dentro, vidros embaçados, respiração oprimida, nós nas gargantas. O objetivo: falar abertamente umas às outras sobre o significado daquele homem para cada uma. E ouvir sem rancores. “Eu fui a primeira a falar”, me contou Vera, uns 15 anos depois. Naquela noite, disse às amigas não saber o porquê de ele exercer sobre ela tanta atração. “Simplesmente não consigo lhe dizer não”. Tinha um pouco de vergonha das outras três. Como se o envolvimento com ele fosse uma traição ao grupo. Como se, confessando seu caso, desse a elas a prova para a condenarem. Suzana era a mais tranqüila. Falou de transas que para ela não tinham importância. Ela se entregava por passatempo, ele era mais um na sua vida, não queria magoar ninguém, mas só curtir o sexo livre. “Não entendo as angústias de vocês”. Roberta confessou uma atração platônica, que em princípio a assustou porque há muito o tinha rotulado como pessoa perigosa e mantinha na ponta da língua a lista de seus defeitos. Mas a moça havia tido coragem e conversara com ele sobre o assunto. “Descobri que era só admiração fraternal”. Por último, Lúcia, que sempre parecia a mais frágil e ingênua das quatro, falou que se sentia seduzida, que tinha curiosidade e resolveu experimentar. “Queria provar algo que as outras já haviam provado. Por que eu não posso?” Foi uma conversa tensa e muito não foi dito. “Nenhuma de nós disse se sentia por ele o amor sem dúvida, sem culpa”, lembrou Vera. Não falaram também de como era o sexo com ele. É perdoável, disse para Vera. As quatro estavam saindo da adolescência e não entendiam bem a diferença entre amor, paixão, sexo, sedução e atração. Nada grave, já que várias mulheres envelhecem sem compreenderem como tais emoções são diferentes. Mas o pior é que não falaram de como cada uma se sentia em relação à outra: havia ódio, ciúme, inveja? Solidariedade, compreensão, cumplicidade? “Hoje, pensando bem, acho que o valor daquela conversa foi a tentativa de manter a amizade entre nós. Mesmo um bocado imaturas, a gente queria conviver com honestidade”, me disse Vera. No fim da conversa, elas concluíram, muito ingenuamente, que aquele rapaz tão envolvente era um grande vilão, um manipulador frio. Não deram a ele chance de defesa. Não o chamaram para um enfrentamento. Pouco a pouco todas se afastaram e o deixaram sem nenhuma explicação.

domingo, 13 de setembro de 2009

Sem perder a pose

Publicado em 9 de março de 2008

Valquíria adora aventuras no trânsito. Se sente livre com o volante na mão, o som tocando alto e a janela aberta para o vento soprar em seu rosto. Quando tinha 19, assim que pegou a carteira de motorista, sentiu pela primeira vez como dirigir poderia ser divertido. Moradora do ABC, ela passou na faculdade em São Paulo: a PUC, em Perdizes. Devia fazer a matrícula, mas nunca tinha dirigido até lá. Então, pediu uma força para o namorado.
— Eu não posso — André foi logo dizendo — Tenho uma reunião às 2h e não dá tempo de voltar.
— Ah, André, vamos lá, dá tempo, sim. Lá, fazer matricula é super-rápido — mentiu.
O rapaz se rendeu. Eles teriam menos de três horas para chegar à PUC, fazer a matrícula e voltar. Só de ida e volta isso dá uns 50 quilômetros. Com trânsito, são pelo menos duas horas de viagem.
Mas André era otimista. Só que, nem 15 minutos de asfalto e ele já tinha se arrependido.
A moça acelerava nas curvas, costurava nas retas e ultrapassava jamantas pela direita.
— Vai pelo outro lado! — ele gritava.
— Mas deste lado não tem ninguém.
André se contorcia no banco do passageiro. Valquíria ria por dentro. E, de propósito, cometia mais barbeiragens.
Quando chegaram à PUC, o rapaz respirou aliviado. Mas o alívio não durou dez minutos. A fila da matrícula tinha umas cem pessoas. André ficou roxo de raiva. Ele ia perder a reunião.
Valquíria não desceu do salto. Foi até a moça que estava na ponta da fila, falou algo em seu ouvido e a garota a deixou passar.
André ficou de queixo caído. Em menos de 30 minutos, estavam prontos para voltar ao ABC. E Valquíria entregou André às 2h em ponto na porta de seu escritório.
Anos depois, Valquíria estava indo para o trabalho. No meio do caminho, liga a sua chefe.
— Oi, você está chegando?
— Estou perto — mentiu (era um velho hábito).
— Temos o almoço com os Gonzales. Vai direto para o restaurante. Meio-dia em ponto lá.
Faltavam 15 minutos. O almoço era nos Jardins, uns 40 de onde estava.
Os Gonzales eram clientes importantes. Levou um ano para conseguirem um encontro com eles. Se atrasasse, seria morta. Mas ela não perdia a pose. Largou o carro no primeiro estacionamento e foi à cata de um motoboy. No posto em frente, tinha um abastecendo.
— Amigo, tenho 15 minutos pra chegar ao Jardins. Estou desesperada. Eu te pago pra me levar.
Ele topou. E lá foi Valquíria, agarrada no desconhecido, sentindo calafrios cada vez que a moto tirou uma fina dos carros. Ainda bem que o motoboy tinha um capacete extra.
Chegaram em 10 minutos. E ela adorou tanto a aventura que, no mesmo dia, se matriculou em uma moto-escola.

sexta-feira, 3 de julho de 2009

28 de dezembro de 2008

28/12/2008 conta do destino Valquíria ficou curiosa quando sua terapeuta holística lhe enviou naquele janeiro um e-mail com o título “Ano Pessoal”. Na introdução, a explicação de que, na numerologia, a vida do ser humano se divide em ciclos de nove anos, calculados de acordo com o dia e o mês de nascimento da pessoa. No texto estava a fórmula para descobrir em qual ano a pessoa estava e o que poderia esperar dele. Aficionada por horóscopos, i-ching, tarôs e todos os tipos de leituras de sorte, Valquíria não perdeu tempo. Pegou um pedaço de papel e um lápis e foi às contas. O resultado era promissor. Afinal, ela estava no Ano Um, aquele em que tudo se abre para o novo, para os inícios, recomeços e oportunidades. Se sentiu tocada pela sorte. “Este será o meu ano”, pensou. Em janeiro, parecia que a previsão numerológica não tinha como falhar. Reencontrou um ex-namorado e retomaram o relacionamento. Tinham se afastado quando ela estava no Ano Cinco, calculou, e o recomeço em pleno Ano Um era o sinal que precisava para continuar sem medo. No trabalho, ela estava acomodada. Mas, depois de três anos na empresa, foi informada que receberia novas tarefas no início do mês seguinte e ficou animada. Na certa, ganharia uma promoção e o tão batalhado aumento. A descrição do Ano Um, portanto, lhe pareceu merecida. Fevereiro chegou e, em vez de ser promovida, ela foi transferida de setor. Ter que deixar colegas e principalmente rotinas de trabalho tão metodicamente construídas não era exatamente o que ela queria. Aumento de salário? Nem pensar. Ela suspeitou que algo estava errado na numerologia, mas ao ler de novo a explicação do Ano Um, concluiu que a mudança era uma nova oportunidade. Mas Valquíria passou a não entender nada mesmo quando seu namoro começou a dar errado. Gio parecia distante. Eles combinavam para sair e o rapaz não aparecia ou ligava em cima da hora para desmarcar. No final de abril, Gio desapareceu completamente. Para piorar, ela estava detestando a nova fase no trabalho e, numa crise de raiva, brigou com seu chefe e foi despedida. A menos de um mês de seu aniversário, torceu para que tudo fosse apenas parte do seu “inferno astral”, mas sua vida estava mesmo era de ponta-cabeça. Então, aos prantos, ligou para Ilka, sua terapeuta, para pedir explicações. Afinal, que fórmula de “Ano Pessoal” era aquela? Se sentia enganada pelos números. —- Você leu tudo o que estava escrito lá? — Lógico, Ilka! Calculei e sou Ano Um. — Mas o Ano começa no aniversário. Então, você ainda é Nove, o último do ciclo, o período em que tudo o que não serve mais vai embora, querendo ou não. Valquíria respirou aliviada. Afinal, estava escrito que aquela não era uma fase de assumir compromissos. Podia estar sem trabalho e sem amor, mas enfim podia ficar em paz porque tudo ia melhorar: tinha um destino. Era só ter paciência e esperar a vida passar.

21 de dezembro de 2008

21/12/2008 natal mais que feliz Álvares estava ansioso. Havia preparado uma noite de Natal antecipada para Elisa e não via a hora que ela chegasse. A namorada tinha que passar o Natal com a família. Já estava tudo marcado antes mesmo de os dois começarem o relacionamento. Iria com os filhos para a casa dos pais, no interior. Então, organizou uma noite especial para os dois uma semana do dia 25. Tirou um vinho da adega, preparou uma comida leve e comprou presentes. Cada um com um significado diferente. E lhe telefonou: — Passa aqui hoje — convocou. E só o tom da voz dele já deixou Elisa surpresa. Ela era insegura e eles, por causa de uma briga boba, não se falavam havia três dias. Ela telefonava, deixava recados e, quando ele dava retorno, ela não conseguia falar. Já estava imaginando que ele iria desistir. Entre eles, tudo tinha acontecido rapidamente e com muita intensidade. Álvares era muito mais do que Elisa havia desejado ou imaginado. Mas ela vivia com medo, como se corresse o risco de o relacionamento terminar repentinamente, como começou. Era como uma intuição ruim. — É lógico que eu vou — respondeu, com o peito cheio de apreensão, mas torcendo para que fosse a noite de Natal deles. Conseguiu sair do trabalho mais cedo e correu para a casa dele. O encontrou no portão, à espera. — Você demorou! — ele reclamou, num muxoxo, enquanto ela saía apressadamente do carro, louca para lhe dar um beijo. A raiva tinha passado e eles estavam com saudades. Como se ela não conhecesse o caminho, Álvares a levou para a porta. Ao entrar, Elisa levou um susto e perdeu a cor: na sala decorada para o Natal, vários presentes se espalhavam pelo chão. Elisa ficou constrangida. “Não podem ser todos para mim”, foi o seu primeiro pensamento. Mas não teve coragem de dizer palavra. Disfarçou, fazendo de conta que não estava vendo todos aqueles pacotinhos. Envergonhada, lembrou que só tinha comprado um presente para ele — um livro —, após andar muito pelas lojas, sempre com aquela impressão de que não iria agradar. Ele a colocou sentada no sofá e, como se fosse uma confidência, disse que adorava presentear no Natal. Era uma coleção de objetos simples, mas que tocavam o coração. Um porta-retratos (para a foto dele estar sempre na mesa de trabalho dela, disse), um pote cheio de bombons (para uma relação sempre doce), uma pedra que simbolizava o coração dele (agora nas mãos dela...). Álvares não tinha idéia, e talvez nunca venha a ter, do quanto fez Elisa feliz naquele Natal. Mas, por mais que na hora do brinde ela tenha desejado que aquele momento se repetisse por vários anos com ele, o romance dos dois durou pouco. O fim aconteceu por causa de um desencontro sutil. Foram só sensações, que não tinham tradução em palavras. Para Álvares, ela parecia indiferente. Mas ela só não conseguia demonstrar na vida prática o quanto ele era importante para ela.

14 de dezembro de 2008

14/12/2008 um beijo cúmplice Depois de passar o dia todo se preparando para encontrar seu grande amor, Tereza recebeu, no fim da tarde, o telefonema que temia: a secretária de Gilberto dizia que ele não poderia ir “no jantar”. — Ele teve uma emergência e mandou dizer que lhe liga no começo da semana que vem. Tereza caiu das nuvens. Ela sabia que aquilo era só mais uma desculpa. Afinal, já tinham sido vários encontros sem dar certo. E ela fingia acreditar nas suas diversas desculpas. Mas, naquela noite, apesar da tristeza, decidiu que não ficaria em casa, chorando. Ligou para algumas amigas, decidida a cair na farra. — Eu vou jantar com uns colegas de trabalho. Vem com a gente que depois vamos dançar — lhe propôs Juliana. Depois do jantar num restaurante da Vila Madalena e da esticada para um bar no Centro da cidade, metade do grupo seguiu para a casa de Juliana. A idéia era não deixar a noite acabar. Lá, a festa continuou mais íntima, regada a vinho. Apesar de mais animada, Tereza não conseguia esconder uma sombra no olhar, uma tristeza que Juliana conhecia muito bem. Afinal, acompanhava o caso complicado da amiga desde o início. Sentadas no sofá, enquanto conversavam sobre o dia, Tereza, enfim, desabafou e desabou. Sem saber ao certo o que fazer, Juliana colocou a cabeça da amiga no seu colo e começou a lhe fazer um cafuné. A mão macia foi descendo pelo pescoço e, quando Tereza percebeu, Juliana estava acariciando seus seios. Impossível saber se alguém mais na sala notou. Mas, de fato, estavam tão absortas que não se importavam com a exposição. De repente, Juliana parou e disse: — Eu não vou fazer isso com você, Tereza. — Fazer o quê, Ju? — respondeu, sorrindo. É que Tereza sentiu no gesto de Juliana algo que ia além do desejo: era puro carinho e amor. Tudo que precisava naquela noite. Não podia terminar em culpa. Dançaram na pista improvisada da sala até quase amanhecer. Na hora que Tereza decidiu ir embora, Juliana a acompanhou até a saída e, quando a luz do hall do elevador se apagou, aproveitou para dar um longo beijo na boca da amiga. Tereza aceitou e correspondeu. Na manhã seguinte, Tereza acordou feliz. Não havia esquecido Gilberto, mas sentia que havia conhecido um outro tipo de afeto. As duas trabalham juntas até hoje. Nunca falaram do toque, nem do beijo. Mas também não há constrangimentos entre elas. Só seguem sua rotina, mais cúmplices do que nunca.

7 de dezembro de 2008

07/12/2008 agenda de prefeito Virgínia morava havia apenas dois anos em Santo Inácio, mas conhecia a cidade como ninguém. Já tinha estado nos bairros mais periféricos e também nos mais famosos e badalados. Tinha na ponta da língua os nomes das principais personalidades do local, sua profissão, tendência política e importância para o município. Economista, Virgínia foi contratada pela prefeitura para fazer um projeto especial em apenas seis meses. Deveria analisar a vantagem econômica de transformar o centro antigo da cidade, que tinha um conjunto de prédios da década de 30, em área turística. Mas, após terminar o trabalho, deu um jeito de ficar morando em Santo Inácio. A decisão de viver a 500 quilômetros de sua terra natal tinha, porém, nome e RG: Marcio, um negro de 1,80 metro, musculoso, viril e muito, mas muito calado. Segurança e motorista particular do prefeito, ele era considerado uma das figuras mais discretas da prefeitura. Por mais que fosse abordado e bajulado, nunca dizia nada sobre a vida do chefe, nem uma única indiscrição. E também era discreto sobre a própria vida particular: poucos sabiam seu endereço e ninguém jamais o vira falar de uma mulher, apesar de ele ser um dos homens mais assediados da repartição e de ter saído com várias. Foi por causa do “deus de ébano”, como Virgínia gostava de chamá-lo, que minha amiga conhecia tão bem Santo Inácio. — Por dois anos, eu fui a todas as inaugurações desta cidade, podia fazer chuva ou sol. Ia a tudo o que tinha na agenda do prefeito para ver o meu “deus”. Nunca conheci alguém tão persistente como Virgínia. Não era apenas uma atração física o que ela sentia pelo segurança do prefeito. Era uma paixão que não media esforços para conquistar o que queria. — Amor à primeira vista, acredita? Mas ele, durão, não me dava bola. Então, eu não tinha outra saída. Até que um dia o homem se deixou cair pelas madeixas loiras de Virgínia. Foi numa tarde de novembro, quando o prefeito chamou o seu secretariado para uma reunião urgente sobre as enchentes. Márcio não precisou ficar no gabinete do prefeito e foi dar uma volta no prédio. — Depois me contou que estava tentando descobrir onde era a minha sala. A providência fez com que os dois se encontrassem no corredor do refeitório. Virgínia tinha descido para fumar um cigarro e pegar uma garrafa de café para a sua equipe. E ele se preparava para subir de elevador de volta à sala do prefeito. Então, aconteceu o mais desejado por minha amiga. — Quando ele me viu com a térmica, perguntou se eu não preferia subir pelo elevador particular do prefeito. Lógico que eu quis: aquele elevador é o mais apertado do mundo! E foi ali, num cubículo, que a térmica caiu no chão e eu nem liguei. Grudei no pescoço do negão e, até hoje, é lá em casa que ele mora.

30 de novembro de 2008

30/11/2008 com ela e os filhos — Eu sempre me dou bem com mulheres que têm filhos — Henrique lhe contou. Solange ouviu aquilo e achou graça. Henrique parecia querer dar a ela confiança com uma cantada batida, usada para conquistar mulheres que se sentiam solitárias, mas que costumavam ter problemas com os filhos quando arrumavam um novo namorado. Solange não sabia se esse seria o caso dela. Depois da separação, Solange não tinha tido nenhum namorado e, portanto, nunca havia pensado no assunto antes. Por Henrique, estava apaixonada e não conseguia imaginar como o fato de ter filhos poderia atrapalhar o seu sentimento. Talvez por isso, na hora que ele disse a frase, Solange tenha se surpreendido, pensado inicialmente que era só um jogo de conquista. “Já nos conhecemos há tanto tempo. Ele não precisava disso para me conquistar”, foi a primeira coisa que pensou, enquanto dava uma risadinha meiga. — É verdade! — ele continuou. — As crianças normalmente me adoram! Ela sentiu que ele não mentia. Tinham sido namorados na adolescência e sabia sobre o seu carisma com os pequenos. Mas não lhe pareceu que aquilo fosse importante para o reinício de um namoro: — Eu sei que elas te adoram. Isso não me preocupa. A Gabi e o Paulo também vão gostar de você. Com o passar do tempo, Solange apurou o olhar ao jeito de Henrique com seus filhos. Sentia a ansiedade do rapaz. Notou que ser querido pelas crianças era nele uma necessidade real. Solange gostava da preocupação, mas sua intuição dizia que tinha algo a mais em toda aquela história. Gabi tinha 6 anos e Paulo estava com 8. O pai deles vivia viajando a trabalho e sempre tinha uma desculpa para adiar encontros com os filhos. Já Solange mantinha com os dois uma relação aberta e estava sempre presente. Os três eram unidos. Já Henrique não tinha filhos. E era visível que admirava Solange e os seus. Então, sem que ela pedisse ou convidasse, ele passou a acompanhá-la em todos os eventos que tinha que ir por causa das crianças. Era como se ele quisesse ocupar o espaço deixado pelo seu ex-marido. E ela, acostumada com sua independência, começou a se irritar. Um dia, quando as duas crianças foram passar um fim de semana com o pai, ela percebeu que Henrique estava com ciúmes. O pressionou e ele confessou: — É que não pude ter filhos. Então, procuro nunca namorar uma mulher sozinha. Quero mesmo é casar com uma família. A confissão a deixou apavorada. Gostava de Henrique e queria namorar, mas a última coisa em que pensava naquele momento de sua vida era em um novo casamento. — E você fez o quê, então? — eu quis saber. — Mandei ele embora. Foi uma pena. Mas, pra mim, a minha família já tem um bom tamanho!

23 de novembro de 2008

23/11/2008 promessa da noite Aquela noite prometia. Seria a primeira vez desde a separação que Matilde passaria um Dia dos Namorados com alguém especial. Seus dez anos de casada não contavam. Antero, seu ex-marido, havia perdido o romantismo logo no início do casamento. Ele costumava dizer que “esse tipo de data” era só uma desculpa para lojistas ganharem dinheiro. Se Matilde argumentava que eles não precisavam trocar presentes, mas apenas curtir uma noite a dois, ele respondia que eles poderiam ter intimidades em qualquer noite. Matilde acabou desistindo de tentar, mas a cada ano engolia uma frustração secreta. Então, quando ela se deu conta de que o Dia dos Namorados estava perto, começou a planejar como seria a noite. A primeira providência foi arrumar um lugar onde deixar os filhos. Teria que convencer a mãe a ficar com os dois meninos, de 9 e 5 anos. Sua mãe era rigorosa e não permitia que os netos dormissem na sua casa só para Matilde sair: — Mulher separada não tem que se dar ao desfrute — dizia. Mas Matilde ganhou o pai: — Ela tem que arrumar outro marido é logo. Não era bem isso que Matilde pensava, mas pelo menos estava resolvido o seu problema imediato. Sem os filhos, Matilde tratou de arrumar o ambiente. Arrumou a casa dando um toque especial ao seu quarto, que encheu com velas levemente perfumadas. Comprou dois vinhos importados, preparou um jantar leve e, para sobremesa, escolheu o sorvete de chocolate com calda de morango, que já sabia era a preferido de seu novo amor. Usaria um vestido preto básico, mas ia estrear uma lingerie novinha em folha: corpete de tecido de oncinha, com meia-liga preta, tudo muito fácil de arrancar até com os dentes, se fosse preciso. Saulo chegou com flores e um pacote de presente: — É para você relaxar — ele disse. — Então, vou abrir mais tarde — respondeu. Depois do jantar, foram para o sofá. Ela estava toda afoita, querendo ir logo para a cama. Também excitado, ele tentava ir mais devagar. De repente, parou e perguntou de supetão: — Você não vai abrir o presente? Matilde deu uma suspirada e respondeu: — Ok, eu abro — disse, com um sorrizinho assanhado, imaginando que seria algo muito sexy. Mas, ao abrir o pacote, a surpresa: embrulhadas em papel de seda, Matilde encontrou pantufas: — Pantufas com a carinhas de elefante!!! Ele disse que era para aquecer os meus pés e não me esquecer dele. E não me esqueci mesmo. A noite perdeu a graça. Perdi o tesão e fiquei tão furiosa que botei ele pra fora, com as pantufas e tudo.

16 de novembro de 2008

16/11/2008 o amor de tatinha Foi numa tarde de sol que Tatinha resolveu cair no mundo. Não era a primeira vez que ela deixaria tudo para trás. A família, a escola, as certezas, enfim. Tudo ela trocaria, de novo, por Sapão. Para ela, uma adolescente de 16 anos, Sapão era sua grande paixão. O rapaz mais bonito e com a personalidade mais forte da vizinhança. Para sua família, ele era um aprendiz de traficante que já tinha ido parar na Febem uma vez e que não traria nenhum futuro para Tatinha. Mas ela não acreditava na falta de caráter de Sapão. Sabia que ele conhecia traficantes, que usava drogas, mas acreditava que a vida errada era só uma passagem. Sapão sempre lhe dizia que faria um grande negócio, que ganharia uma bolada e que eles viveriam juntos e bem, com filhos lindos em uma casa boa. E Tatinha confiava. Mesmo porque odiava a vida pobre com a família, sua mãe sempre doente, a saudade do pai que tinha se matado, e seus irmãos mais velhos jogando nela a culpa por tudo de ruim que acontecia na casa. Então, naquela tarde, ela mentiu de novo. Disse que precisava fazer um trabalho de escola na casa de uma amiga e desapareceu. De noite, quando os irmãos chegaram do trabalho, a mãe estava louca de preocupação. Eles a procuraram por toda a vizinhança e nada de Tatinha. No dia seguinte, bateram na porta de Sapão e ele também não estava. Seus pais, cansados da vida confusa do rapaz, o haviam expulsado de casa no dia anterior. Tatinha reapareceu uma semana depois, toda suja e faminta, com os olhos vidrados. Parecia alucinada e não quis escutar ninguém. Se limitou a pegar algumas roupas, as colocou numa sacola plástica de supermercado, e desapareceu de novo. — Não tem jeito — disse para a mãe, em desespero — vocês não me entendem. Seis meses depois, nos jornais, uma nota de canto da página contava o destino de Tatinha: “Um rapaz foi morto ontem de madrugada numa troca de tiros com a polícia, em Itaquera, na Zona Leste de São Paulo. Segundo a PM, André Ricardo Pereira, o Sapão, de 18 anos, era o chefe do tráfico na Favela Lindo Céu. No barraco onde estava, a polícia encontrou dois quilos de maconha, 15 pedras de crack e 50 papelotes de cocaína. Os policiais disseram que, ao perceber que o barraco estava cercado, Sapão começou a atirar. No local, a polícia também encontrou I.S., de 16 anos, que está grávida. A família da moça contou que ela estava desaparecida havia meses, depois de fugir de casa. Na delegacia, I. parecia em estado de choque e se limitou a dizer: ‘Eles mataram o meu amor’”.

9 de novembro de 2008

09/11/2008 a fuga e a chuva O dia amanheceu chuvoso. Jandira espiou pela janela e sentiu um arrepio forte na nuca: “Será que terei coragem?”, questionou-se. Mal tinha dormido naquela noite. Acordou de hora em hora, ansiosa pelo início da manhã. Pensava no que lhe esperava ao longo do dia: “Se conseguir, será o dia mais importante da minha vida”, pensava. Estava assim, dispersa, vendo a chuva cair na rua, quando escutou os sons comuns das suas manhãs: a descarga e o marido limpando a garganta, a filha ligando o chuveiro, o despertador seguido de rock vindo do quarto do caçula. Se assustou e correu para a cozinha: “Vou fazer logo esse café!”, decidiu. Sentiu um certo alívio quando se viu sozinha em casa. Podia se trocar com calma e seguir com o seu plano. Colocou algumas roupas dentro de uma pequena bolsa de viagem, vestiu uma saia cinza, uma cacharrel vermelha, uma bota de couro preta e um lenço amarelo na cabeça. Por cima, uma grossa capa azul-marinho. Odiava os guarda-chuvas. Também tirou da gaveta o velho óculos escuro, que não usava havia pelo menos cinco anos: “Nunca mais Ernesto nos levou à praia no verão”, lembrou, com uma certa amargura. Saiu de casa, trancou a porta e não olhou para trás. A chuva havia dado uma trégua e ela caminhou tranqüila até o ponto, onde pegou o ônibus para o Centro. Andou pelos calçadões cheios de poças, olhou as vitrines com um prazer de mulher livre e, na hora do almoço, comeu um lanche barato num fast-food comum. Depois, tomou outro ônibus para a Zona Norte. Ainda não eram duas da tarde quando chegou. Haviam marcado às cinco na frente do portão principal do Horto. A chuva voltava a ficar forte e o céu, agora, transformava-se: estava assustador. Jandira não se intimidou. Olhou em volta, as pessoas correndo para se safar da tempestade. Mas ela iria esperar. Não compreendia como tinha tido coragem de chegar até ali, mas, já que havia ido tão longe, atravessou a rua e se postou sob o orelhão, bem em frente ao portão do parque. A chuva caia cada vez mais forte e ela, sozinha, começou a ter dúvidas. Quis ir embora, mas acreditava que precisava ficar. Estava paralisada e confusa. Sua cabeça girava, o coração batia apressado e os olhos, marejados de lágrimas que não caiam, não viam mais nada. Nem sabe ao certo quanto tempo ficou lá. A tempestade foi se dissipando, o ar ficou fresco e, de repente, percebeu que a noite se aproximava. Sentiu medo e, só então, conseguiu se mexer, sair da imobilidade sob aquele orelhão, e correr para pegar um ônibus de volta para casa, para a sua vida. Cinco minutos depois, chegaria um carro e pararia bem em frente ao portão do parque. Cleber desceria e veria o orelhão vazio. Onde ela estaria? Ficou lá alguns minutos, a chuva voltou a cair e ele logo percebeu: nunca mais saberia dela.

2 de novembro de 2008

02/11/2008 FALTOU Confiança O local era ideal para encontrar novos amores. Um clube familiar, onde pais separados levavam seus filhos para cursos dos mais variados tipos e, enquanto esperavam, aproveitavam para malhar. Raul chegou no começo da noite e foi para uma esteira ao lado da dela. Professora de Ciências, Fran passou a observá-lo com olhos profissionais. Meio calvo, uma pequena barriga para a idade aproximada de 45, pernas e bíceps firmes. O humor também parecia legal: sorridente e bom papo. — Estou atrapalhado com essa esteira. Você pode me dizer como faço para aumentar a velocidade? — ele pediu. Solícita, ela parou o seu equipamento para ensiná-lo, mas também para chegar mais perto e sentir o seu cheiro. — Era cheiro de homem de banho tomado. Nada de perfumes enjoados nem de suor. Ele contou que malhava enquanto a filha fazia aula de dança. Tinha um escritório de contabilidade e morava no bairro. Ela perguntou da mulher e ele disse que “a mãe da menina” não podia levá-la, pois trabalhava à noite. Aquele “a mãe da menina” atiçou ainda mais o seu interesse. O homem dava a entender que era separado. Se viram mais algumas noites no clube, sempre naquela curta hora da aula da menina. Fran contou a Raul um pouco da própria vida, que tinha três filhos já crescidos e que era divorciada. Então, ele lhe revelou que estava se separando e a convidou para jantar. Na despedida, lhe roubou um beijo. Ela tremeu feito adolescente. Estava apaixonada. Era uma sexta-feira. Laís ficaria com a mãe, que estava de folga. Fran se arrumou como há tempos não fazia. Raul chegou às oito em ponto. Depois do jantar regado a vinho, ele tomou coragem e a pediu em namoro. Ela, três anos mais velha, quase não acreditou. Explodiu de felicidade. Mas, antes do sim definitivo, preferiu a precaução e quis saber mais da vida dele. Como estava indo a separação? — Ainda moramos na mesma casa — ele explicou — Precisamos comprar outra para eu mudar. Fran não acreditou. Achou que Raul mentia ao dizer que vivia com a ex-mulher sem ter nada com ela. No fim de semana, ele lhe deixou vários recados. Ela só respondeu na segunda, por e-mail. — Sinto muito. Mas, não dá! — escreveu. Seis meses depois, encontrou Raul e uma amiga sua na rua, aos beijos. Morreu de ciúmes, mas puxou a mulher de lado com a desculpa de avisar: — Ele ainda é casado e vive com a mulher! — Era casado. Já assinaram os papéis. Ele agora está num apartamento novinho em folha e eu acho que vou mudar me pra lá.

26 de outubro de 2008

26/10/2008 OLHOS SÓ PARA ELE Alberto tinha tanto medo de perder a mulher que era capaz de se voltar contra todos que tentavam se aproximar dela. Só o amor de Luana não era o suficiente. Alberto a queria com os olhos voltados somente para ele, o tempo todo. Eu me lembro bem do casamento dos dois. Cerimônia fechada, poucos convidados. No final do religioso, a madrinha, Renata, uma das melhores amigas da noiva, foi embora. Nem compareceu à festa. Anos depois, encontrei Renata e perguntei o que havia acontecido naquele dia. — Só não fui embora antes porque ia pegar muito mal. Quando eu e Alberto já estávamos no altar, ele virou para mim e foi muito direto: ‘Olha, você pode ser nossa madrinha, mas não quero mais que saia com Luana sozinha. E nem vá em casa quando eu não estiver lá. Já percebi como olha pra ela! Não esqueça! Ela é minha mulher!’ Renata ficou chocada e sumiu da vida do casal. — Ele achava que eu dava em cima da Luana! Luana nunca entendeu o que havia acontecido. Tentou algumas vezes falar com Renata, mas ela mandava dizer que não estava. Alberto, por sua vez, fazia pinta de indignado. — Ela sempre foi louquinha, mesmo! — brincava, e Luana seguia sem entender direito o ocorrido. No começo do casamento, ser assim tão grudado a ela agradava Luana. Ela se sentia envaidecida com aquele “Você sabia que eu te amo?” a cada 15 minutos. Até então, ninguém havia se preocupado tanto com ela. No trabalho e na família, era uma mulher alegre, querida, cercada de amigos, mas se sentia solitária. Até aparecer Alberto. Os dois se conheceram na véspera da Páscoa. Ambos tinham pais no interior, iam visitá-los e chegaram uma hora mais cedo na rodoviária. No saguão de espera, sentaram-se um ao lado do outro e começaram a papear. Ao dizer tchau, Luana, deixou seu telefone com Alberto. Uma semana depois, estavam namorando. Em seis meses, decidiram se casar. Com ele, conheceu a companhia constante: nunca tinha estado com alguém tão preocupado com a sua vida. Alberto queria fazer tudo juntinho e sempre dava um jeito para ela não fazer nada sem a presença dele e, de preferência, só com ele. Luana vivia dando desculpas para se afastar das pessoas, mas, aos poucos, percebeu que não era mais ela quem dizia “Desculpe, mas não posso ir”. Eram os convites que não apareciam mais. A falta de liberdade começou a pesar e a moça, antes alegre, passou a exibir uma tristeza assustadora. Um dia, adoeceu. Para quem via de fora a relação, parecia muito claro o que acontecia. Sem liberdade, mesmo com amor, Luana se apagou. Alberto não entendia assim. Ela, mesmo doente, devia pertencer só a ele. Eu tentei visitá-la, mas a reação do rapaz foi até ríspida: — Prefiro que não venha. Ela não precisa de ninguém. Só de mim!

19 de outubro de 2008

19/10/2008 amigas de verdade A Janaína, uma colega do trabalho, diz que nunca pensa em rever o passado. Ir atrás de antigos amigos ou retomar velhos amores, para ela, parece loucura total. — Não entendo por que, depois de uma certa idade, as pessoas querem remexer no passado. Isso só pode dar problemas — ela diz. Janaína me falou isso quando eu lhe contei sobre duas conhecidas, que um dia resolveram rever sua amizade de 20 anos. As duas eram amigas de verdade. Pelo menos acreditavam nisso, mesmo sabendo das diferenças que existiam entre elas. Virgínia era mais tímida, não gostava de conflitos, mas era sempre persistente. Não desistia fácil do que queria e, mais cedo ou mais tarde, chegava lá. Já Letícia era mais crítica com os outros, muito alegre e criativa, mas vivia cheia de dúvidas sobre o curso de sua vida. Apesar das diferenças, em 20 anos, tiveram pouquíssimas brigas, nenhuma séria. Havia atitudes que uma reprovava na outra? Sim, mas nunca falaram sobre isso. Qual não foi a surpresa de Virgínia quando a amiga lhe fez a seguinte proposta: — Vamos conversar sobre nossa amizade? Estou revendo o meu passado e queria falar sobre nós. Virgínia teve um mau pressentimento, mas topou. Marcaram um chá numa tarde de sábado. Quando alguém se dispõe a colocar na mesa ressentimentos do passado, deve-se estar preparado para o que virá. Podem ser revelados sentimentos nunca antes imaginados. E foi mais ou menos isso o que aconteceu com as duas amigas. Letícia foi a primeira a falar: — Apesar de sermos tão próximas, sinto que não somos sinceras uma com a outra. Virgínia não amenizou a língua: — É, nunca confiamos uma na outra. Começaram a surgir na mesa histórias que, pensavam, estavam esquecidas. Mas que, para espanto das duas, não estavam. — Você deu um beijo no Francisco. — Mas eu tinha 16 e você não gostava dele. — Lógico que gostava. — E você? Conseguiu o emprego no escritório e não me indicou para trabalhar lá também. — Não me convidou para ser sua madrinha! E por aí foi. Existiam acusações mútuas para cada fase da vida delas. Várias esdrúxulas. Mas nada estava resolvido. Nada perdoado. O chá esfriou e a boca amargou. Então, Letícia deu o veredicto. — Eu agora tenho toda a certeza do mundo: nunca fui sua amiga. E Virgínia, assustada, contestou: — Não é assim. Tudo depende do que se sente. Eu sempre gostei de você. O resto é bobagem. — Não. Essa amizade, se é que existiu, acabou.

12 de outubro de 2008

12/10/2008 em câmera lenta Tudo aconteceu muito rápido. Foi como um frame, uma foto, uma imagem que era para ficar mesmo congelada na memória. Foram três, talvez quatro segundos, no máximo. Elisa não saberia dizer ao certo. Para ela, porém, era como se estivesse em uma cena em câmera lenta. — Será possível um frame em câmera lenta, Vivi ? Ali era como se fosse. Agora, eu tento lembrar da cena para observar melhor os detalhes — me diz, antes de continuar a contar a história. Minha amiga lembra que estava muito distraída naquela manhã, andando na calçada com a filha, perto da padaria de sua casa. — Você me conhece, isso é difícil de acontecer. Na rua, eu estou sempre atenta ao ambiente, multiplicando meus olhares, tentando enxergar tudo o que está à minha volta, principalmente por causa do perigo da cidade. Naquele instante, porém, Elisa estava andando muito devagar, olhando um panfleto que um menino tinha acabado de lhe dar. Era a propaganda de um novo prédio de apartamentos no bairro. — Então, ali, quase parada, completamente absorta, eu escutei que me chamaram. Mas não ouvi nenhum som de fato. Foi um grito mudo, mas tão certeiro que meus olhos se viraram diretamente para o local exato de onde vinha o chamado. É que foi num susto que ele me viu, eu sei. E ele nunca ia querer me chamar. Mas, quando virou a esquina, e me encontrou lá, quase parada, sem percebê-lo, instintivamente reduziu a velocidade do carro. E, por dentro, falou meu nome tão alto que eu, mesmo sem escutar, não pude deixar de ouvir. E me virei e olhei diretamente para ele, sem precisar procurar. Para Elisa, aquele foi um momento mágico. Com o canto dos olhos, queixo voltado para baixo e o corpo na outra direção, ela se encontrou com o seu amor mal resolvido e também levou um susto. Percebeu que Álvares estava lá, como ela, quase parado, sentado ao volante do carro, sem saber o que fazer mas disfarçando, fingindo não a ver atrás de óculos de lentes escuras. — Nenhum de nós disse nada, nenhum parou de fato. Talvez porque não tivéssemos mesmo como parar nem o que falar. Álvares simplesmente voltou a acelerar, desconcertado. E eu não consegui ver uma forma para voltar e encontrar com ele, conversar francamente. O que aconteceu em seguida foi que ambos seguimos para frente, em direções de novo opostas, acho que tentando imaginar se um dia os nossos caminhos vão de novo se cruzar — concluiu. Eu então perguntei: — Ou tentando planejar um jeito de um dia os seus caminhos de novo se encontrar, hein?

Cheiro Irresistível

Publicado em 02 de março de 2008

Tudo começou em 16 de março, uma sexta-feira. Daniela estava angustiada e de mau humor naquela noite. Cabeça cheia, sem saber direito o porquê, queria mesmo era ir embora daquela baladinha, chegar em casa, tomar um banho e cair na cama. Mas uma coisa e outra a seguraram no boteco, e ela ficou por lá, meio a contragosto.
Até então, Dani não dava muita bola para o que as pessoas chamavam de destino. Mas, a partir daquele dia, passou a desconfiar que, talvez, demônios e anjos competissem no invisível para mudar de vez as vidas dos humanos aqui da Terra.
A noite avançou para a madrugada e, no meio do burburinho, dois homens se aproximaram para conhecer o grupo em que ela estava. Sem disfarçar sua falta de vontade, ela olhou para eles e disse um frio “muito prazer”. Foi aí que aconteceu.
“Senti um cheiro irresistível”, ela me contou.
Foi como uma vertigem. O perfume misturado ao odor natural do rapaz que acabara de lhe dar um beijo descompromissado no rosto estremeceu as suas pernas. Dani sentiu que conhecia aquele cheiro, mas de fato nunca tinha nem visto o moço.
“Era como se eu houvesse perdido aquele cheiro e agora tinha conseguido reencontrá-lo”.
E ela perdeu a razão. Daniela não lembra o que falou para o rapaz, nem quanto tempo levou até que os dois saíssem do bar sem dar satisfações a ninguém.
“Aquilo foi algo sublime. Sei o que senti: não me importava hora ou o dia, eu queria somente estar mais próxima daquele cheiro. Eu me entreguei, não sei se ao homem, mas com certeza ao cheiro que vinha do seu corpo”, ela me escreveu.
O dia amanheceu e Daniela tinha certeza de que, com um desconhecido, havia vivido a experiência mais intensa e feliz de sua vida. Mas com a luz do sol veio a consciência dos compromissos e Daniela se foi.
“Não dei meu telefone a ele, como seria de praxe. Eu é que queria tomar a decisão de me encontrar com ele novamente ou não”.
O sábado foi de estudos para uma prova na segunda-feira. Os números da matemática se misturavam com as cenas da noite anterior, que passavam em flashes na sua cabeça. No domingo ela já estava louca de vontade de sentir aquele cheiro de novo.
“Liguei para ele e foi melhor ainda. Estava me apaixonando por alguém que não conhecia. E sentia por ele uma confiança insuperável”.
O romance vai completar um ano, firme e forte. Num mundo como o de hoje, onde poucos expõem sentimentos e o medo de se machucar por amor prevalece, Dani me parece diferente: quer compartilhar a alegria do que sente. E me escreve:
“É que, para mim, é uma honra poder dizer algo que é mágico, e que acontece com poucas pessoas na vida. E agradeço por ter acontecido comigo”.

Em primeiro plano

Publicado em 24 de fevereiro de 2008

O dedo desliza lentamente e então Cássia pode senti-la úmida e quente. “Por que não?”, ela pensa. “Se a minha opção imediata é pela solidão, eu devo me acostumar a tocá-la com mais freqüência. E no sexo solitário pode haver mais prazer do que no sexo sem amor”.

À mente de Cássia vêm lembranças de toques sutis, palavras doces, situações que a emocionaram. “Isso basta?”, ela volta a se perguntar. E já responde: “Se no momento é o melhor que eu posso fazer por mim, sim, basta”.

A emoção é um sentimento cruel. Nos abraça, nos chacoalha, nos vira do avesso por dentro, transtorna nosso pensamento. Mas é um tipo de dor que não queremos deixar de sentir. Quando não há mais a emoção, a vida perde o sentido.

Cássia decidiu interromper o seu caminho longo e sem emoção. E isso lhe pareceu assustador. Mas o medo foi maior no começo, há alguns anos, quando ela voltou a sentir. Na época, percebeu que existia algo estranho e diferente dentro do seu peito, motivado pela vida fora de sua casa. Ao seu lado, o que tinha era o hábito do convívio na sua família e só. Nada de troca. Nenhum interesse. Nem curiosidade. Só afeto respeitoso e a construção de uma imagem equivocada. E Cássia se envergonhou quando se deu conta de tudo isso. O cotidiano fácil, seguro, cheio de certezas lhe pregou uma peça, a envolveu ao longo da vida e, quando ela se deu conta, o sentir tinha ficado em segundo plano.

— Em que porcaria de mulher moderna eu estava me transformando! — ela me disse um dia, num tipo de desabafo.

Mas, se o movimento foi doloroso, para Cássia, ele também foi necessário. Ela estava tão certa da sua opção que passou a ter orgulho dela mesma. A decisão de se separar, de procurar outra casa para morar, foi muito bem pensada.

O caminho foi cheio de altos e baixos, descobertas e decepções, tentativas de recomeços, reencontros e afastamentos. Cássia levou anos para se decidir, sempre dando sinais para o seu marido, pedindo socorro, lançando avisos. Mas ele não percebeu.

— É engraçado como nada acontece da noite para o dia — continuou a me contar. — Achei que nunca chegaria a isso, ao rompimento, mas o limite se deu e não há agora uma segunda via. Também não há como voltar atrás. No meu caso, não há culpados, nem responsáveis. Só existe uma pessoa, eu, pensando, querendo, desejando e decidindo o que é melhor pra mim. E sou capaz de chorar de contentamento ao perceber que, pela primeira vez, vou de fato colocar a minha vida nas minhas mãos. Mesmo que para isso o sexo tenha que ser solitário por algum tempo.

28 de junho de 2009

28/06/2009 planejado no céu Ela lhe pareceu uma visão meio angelical naquele momento, um sonho mesmo. Silvio estava dormindo profundamente e foi acordado, no meio da madrugada, com aquele rosto de mulher colado ao seu, num beijo, e lhe dizendo: — Acorda, levanta dessa cama, eu cheguei para mudar a sua vida — ela declarou. Dirce não sabia por que tinha dito aquilo. — Foi sem pensar que falei, saiu mesmo no impulso — me segredou, algum tempo depois. Silvio, quando lembra daquela noite, gosta de pensar que as palavras de Dirce foram uma revelação, um tipo de inspiração divina. O rapaz não esperava mais vê-la. Estava hospedado na casa de uma amiga em comum aos dois, na Vila Mariana. Eles a esperaram até cansar e resolveram dormir. Era meia-noite quando Dirce chegou meio embriagada, o que lhe deu coragem para invadir o quarto onde Silvio dormia e acordá-lo com um beijo estalado no rosto. — Desculpe o atraso. É que estava terminando o meu namoro — revelou, divertida. Depois de dez anos viajando, Silvio retornava à cidade onde havia crescido, casado e se separado. Dirce era mais uma das pessoas que desejava reencontrar. Mas não tinha nenhuma expectativa especial em relação a ela. No passado, eles tinham sido apenas colegas, nunca namorados. Na mesma época, casaram. Por um tempo, os dois casais frequentaram um círculo de amizade em comum, até que ele se separou e saiu de circulação. O reencontro inusitado, no meio do seu sono, o deixou confuso. O beijo foi seguido de um prolongado abraço e os dois pareciam grandes amigos. Começaram a contar as novidades ali mesmo, no quarto de hóspedes. A dona da casa não aguentou e voltou para a cama. Silvio e Dirce continuaram a falar sem parar e levaram um susto quando viram que o céu já clareava: passava de 5h da manhã. — Vamos dormir? — ela sugeriu, enquanto recostava a cabeça no travesseiro dele e adormecia imediatamente. Silvio olhou a cena e sentiu uma ternura enorme, seguida de um tremor por dentro. Pegou um cobertor e foi para o sofá. Pela manhã, os dois continuaram a conversar com a mesma empolgação. Silvio tinha planejado almoçar com outros amigos, mas ao mesmo tempo não queria deixar Dirce ir embora. Tentava disfarçar seu interesse. Então, ela tomou a iniciativa. — Você vai ver outras pessoas, mas não deixe de pensar em mim hoje, ok? Foi a deixa para o primeiro beijo. Na noite daquele dia houve o segundo e tudo o mais. Em um mês, estavam morando juntos. Não tiveram dúvidas, medos ou constrangimentos. Só a certeza de que aquele era um reencontro planejado no céu.

5 de julho de 2009





05/07/2009 o perdão do dicionário — Então, agora, você tem um amante? — a pergunta de Renata caiu como uma bomba na consciência de Edite. Não suportava a palavra “amante”. Desde muito jovem, relacionava o termo a algo sujo, à quebra total de confiança. Menina, ouvia como sua mãe e tias falavam mal das mulheres que tinham amantes. Mais velha, virou leitora de Nelson Rodrigues e interpretava que o autor tratava seus personagens — mulheres e homens que tinham amantes — com escárnio e desprezo. Para piorar, amantes vinham sempre junto da palavra “corno”, outro termo que lhe virava o estômago só de pensar. Para Edite, Nelson Rodrigues traduzia em suas crônicas o que pensavam a sociedade e a sua família, e ela sentia vergonha só de imaginar o que seria viver aquilo. Até aceitava as “escorregadas” de suas amigas, mas, lá no fundo, sentia um certo prazer em se saber “superior” a elas. Dizia: — Eu não corro nenhum risco de cometer este deslize. Até que, um dia, após dez anos de casada com Adolfo, se apaixonou por outro homem. Foi tão rápido e imprevisível que ela não teve como se proteger. Edite conheceu Vinícius na loja de roupas onde trabalhava. O rapaz, três anos mais velho do que ela, era insinuante. Separado, ele passou a frequentar a loja diariamente. Sua primeira reação foi pensar que aquilo era só uma boa amizade, mas se assustou quando percebeu que, ao vê-lo, seu corpo queimava com um tipo de desejo que nunca havia sentido antes por ninguém, nem por Adolfo, no início do namoro. E, quando se deu conta, já estava sonhando com os beijos e abraços do rapaz. Começou a ter noites de insônia, acessos de choro, agonias “inexplicáveis”. Numa tarde, aproveitou uma folga no trabalho e aceitou tomar um café com Vinícius. Da lanchonete, foi conhecer o apartamento do rapaz. E lá simplesmente esqueceu tudo o que já tinha dito e pregado sobre infidelidade. E estava feliz como nunca. Tão feliz que, como uma adolescente que ama pela primeira vez, fez questão de contar para as amigas o que tinha acontecido. E daí veio a pergunta que a fez cair das nuvens: — Então, agora você tem um amante? Edite simplesmente pirou. Sua primeira reação foi negar. E criar uma outra definição para o tipo de relacionamento que estava iniciando. — Não, não, ele não é meu amante... — respondeu, toda atrapalhada e envergonhada. Em casa, correu a um dicionário pela primeira vez na vida, e foi procurar o significado da palavra “amante”. Deveria ter algo lá que amenizasse o tom sujo do termo, que desmentisse Nelson Rodrigues. E, no primeiro verbete, ela se sentiu aliviada: “Pessoa que ama; namorado; apaixonado”. Decidiu ignorar o verbete seguinte, que dizia: “Pessoa que tem com outra relações extramatrimoniais”. Os encontros com Vinícius continuaram, cada vez mais frequentes. Mas ela não sentia que traía o marido. Muito pelo contrário: quando estava com o Adolfo, sentia que traía Vinícius. Sua consciência com o amante estava sempre tranquila. Quando começava a duvidar disso, abria o dicionário e lia só o primeiro verbete.

domingo, 19 de abril de 2009

O estabelecimento de Gil

Publicado em 17 de fevereiro de 2008

Gilvaneide tinha um estabelecimento. Decidiu montá-lo em Piriquara, interior de Pernambuco, quando voltou de São Paulo. Seu estabelecimento virou um drama familiar. “Que horror o que Gil faz”, afirmam suas tias. “Não sei por que esse Carnaval. Ganho dinheiro honesto e ainda emprego um primo e uma sobrinha”, diz a moça. O primo é o segurança. A garota serve as mesas.


Acontece que o estabelecimento é um puteiro disfarçado de lanchonete, com quartos na parte de cima. “Elas só me pagam o aluguel”, explica Gil, pra então acrescentar que as meninas também têm que pedir bastante bebida e porções para os clientes pagarem a conta. “Na bebida delas ponho refrigerante. É o meu lucro”, confessa.


Não há amigo ou parente que vá a Piriquara que não queira dar uma passada no estabelecimento. As respectivas mulheres juram vingança.


Quando moça, Gil já tinha fama de doida. Teve problemas, mas alcançou uma vida normal. Dizem que uma tragédia pessoal “virou a sua cabeça”. Mesmo assim, não a perdoam.


Aos 17, Gil saiu de ônibus escondida de Piriquara e desembarcou no Recife. Como seu sonho era mesmo conhecer São Paulo, fez uns bicos de faxineira, comprou uma blusa de lã e um guarda-chuva e baixou na Terra da Garoa. Sem demora arrumou um emprego de doméstica, com carteira assinada e moradia garantida. Aí, conheceu um rapaz, pegou barriga, perdeu o emprego e foi morar com ele. Estava com 21. Nasceu Renato. E o rapaz, após ver o bebê, desapareceu. Sem emprego nem casa, Gil entrou para o movimento sem-teto, invadiu um terreno na Zona Leste e acabou ajudando a construir um novo bairro na periferia. Viveu assim durante anos, sozinha com o filho, mas feliz por ter conseguido sobreviver.


Um dia, Renato, que quase nunca saía de casa, brincava na calçada. Um carro entrou na rua em alta velocidade, perseguido pela polícia. O motorista, um ladrão, perdeu o controle e atropelou o menino, que tinha 10 anos e morreu na hora. Quando olhou para o bandido, Gil reconheceu o pai do garoto. E enlouqueceu. Passou a se esconder nos armários. Depois, ficava acordada até tarde esperando o menino voltar. Foram anos de tristeza, até que decidiu voltar para Piriquara.


— E o que vai fazer lá, Gil? — eu quis saber.


— Vou montar um puteiro, ora.


— Mas justo um puteiro, mulher?


— É que esse é o melhor jeito que arrumei para me vingar de Deus.
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Sem Melar a Voz

Publicado em 10 de fevereiro de 2008




José não entendia Magali. Ele até percebia que ela era uma mulher incomum, que não podia tratá-la como outra qualquer, mas insistia em colocá-la na mesma categoria de várias de suas amigas e ex-namoradas. Na verdade, ele tinha medo dela. Porque sua intensidade era mesmo assustadora.


Magali era engraçada. Não falava muito, mas tinha convicções avançadas para o seu meio. Adorava prestar atenção às reações sutis que as pessoas tinham com os fatos do cotidiano. “É aí que elas mostram o que de verdade são”, dizia.


Lembro, por exemplo, do horror que demonstrava por mulheres que melavam a voz quando se dirigiam ao namorado em público. Dizia que faziam isso só para marcar presença, mostrar para as outras fêmeas que aquele macho tinha dona.


— Que implicância! Isso é tão comum! — eu lhe dizia.


— Mas repara como é ridículo ver uma menina chegar pro namorado no meio da roda de um bar e falar assim, com aquela voz chorosa, batendo de leve a mão na cadeira do lado: “Ah, amor, senta aqui...”. Constrange qualquer um. Dou toda a razão quando o cara ignora — ela respondia.


É lógico que Magali gostava de rompantes românticos. Adorava o amor privado, as juras secretas, os jogos de sedução, o cuidado sutil que, defendia, um sempre devia ter com o outro. Só não gostava das demonstrações públicas exageradas.


— O compromisso tem que ser leve, não pode paralisar nenhum dos dois — pregava, sem vergonha de ser piegas.


Quando estava no meio de um grupo, queria estar solta, misturada à multidão, livre para mexer com quem quisesse e também para receber elogios, agrados, olhares. O problema é que os homens que conheceu, até os que se diziam muito liberais, sempre acabavam em crises de posse.


— Por que, entre casais, um sempre tem que querer sufocar o outro? — questionava.


Um dia, brigou com um namorado porque, em uma churrascada, foi abraçá-la e beijá-la, perguntando por que o estava ignorando. “Parecia que eu era um troféu!”


Sonhava com um amor aberto e tranqüilo. Alguém em quem pudesse confiar, que também confiasse nela e pronto. O tempo de se ver seria o tempo possível, porque os dois saberiam que não havia motivos para preocupações sem fundamentos. Queria ser, sim, paparicada e paparicar, mas não admitia depender de nenhum homem e não queria que ele dependesse dela para viver.


Coitado de José! Acostumado com garotas que se esforçavam para parecer avançadas, Magali o assustou. Tanta liberdade era demais. E o romance dos dois, sem nenhuma explicação, acabou.

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Os Dois Melões


Publicado em 3 de fevereiro de 2008


Bianca tem apenas 7 anos. Como toda menininha da sua idade, adora o cor-de-rosa, as fadas modernas que lutam pelo bem da humanidade e as bonecas Barbie. Acho que é efeito da televisão.

Penso que também vem daí a sua fascinação pela moda. As roupas que usa têm que ser justas, as cores de cada peça sempre combinando e, de preferência, um detalhe brilhante enfeita o conjunto.

Outro dia, Valéria, sua mãe, arrumava-se para ir trabalhar. Tirou do guarda-roupas um vestido tubinho preto, com uma estampa de galhinhos de flores miúdas, brancas, bem básico e discreto, herança de uma tia querida.

Sentada no sofá, vendo desenho animado, Bianca olhou, avaliou e disparou:

— Mãe, você parece uma velha com esse vestido... Não combina!

A garotinha de 7 anos pegou a mãe no fígado! Há meses ela estava com a sensação de que aquele vestido de crepe tinha mais cara de senhora-senhora do que de jovem-senhora-que-não-gosta-de-se-vestir-na-modinha-mas-que-também-odeia-cafonices. Mas mantinha por teimosia o modelito pendurado no armário. E, na fase dos 40 que estava, qualquer menção à velhice a deixava enlouquecida de raiva. Então, explodiu:

— Pô, Bia, eu já desconfiava que esse vestido me envelhecia, faz tempo que não uso, mas você tinha que falar assim, na lata??!!

— Não, não, mãe! Tá bom, tá bonito, pode ir com ele! — respondeu, quase pedindo desculpas.

— Não vou! Quer saber? Vou tirar agora e dar pra alguém! Ó, vou tirar e dar pra babá levar pra mãe dela! Vai servir direitinho na dona Maria!

E a menina retrucou baixinho:

— Na minha avó também ia ficar bom...

Bianca é assim. Tem opinião formada sobre o que combina com cada pessoa. E, quando se trata de uma mulher, sempre vai indicar o que é mais feminino. É assustador, porém, o quanto a sua própria feminilidade já desabrocha, apesar de ser tão pequena. É como se não visse a hora de ser uma mulher, apesar de adorar ser criança.

— Camila, todo mundo diz que pareço com você. Mas você é tão linda! — disse outro dia para a prima, que é realmente o que chamam por aí de mulherão. Tem 22 anos, é naturalmente loira, alta e de corpo torneado por 15 anos de ballet.

— Oh, querida, a mais linda é você!

— Não, não! É você — insistiu a garotinha.

— Tá, Bia, então me diz por que você acha que eu sou mais bonita do que você?

— É que você tem peitos! — respondeu, fazendo com as mãos aquele clássico movimento de balançar dois melões na frente do corpo.

Será que isso também é efeito da TV?

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O Bom Tormento


Publicado em 27 de janeiro de 2008

Antonia acordou naquela manhã e não quis levantar da cama. Dormir já tinha sido um sacrifício. Na última noite, havia o barulho da chuva. Antonia sempre adorou dormir com o barulho da chuva no asfalto, os trovões ao longe, as folhas balançando nas árvores, no quintal. Porém, daquela vez, ouvir a chuva batendo na calha foi como ouvir marteladas que a impediam de relaxar. “Onde ele está?”, ela não parava de se perguntar.

A chuva insistente tinha decidido não parar e Antonia dormiu com seus pesadelos de sempre. Monstros a alcançavam. Ela corria por um mundo escuro e negro, com árvores centenárias e raízes contorcidas. E sempre tropeçava e escorregava na terra. E, ao acordar, eram só o medo e a solidão doendo na alma.

Mesmo quando dormia acompanhada de um de seus casos eventuais, ela tinha o pesadelo e acordava assustada, com a transpiração fria e a respiração ofegante. Aquilo sempre se repetia. E o pior é que nem achava seu pesadelo original. Para ela, sua aflição noturna tinha imagens parecidas com aqueles filmes B americanos e de terror. E Antonia sempre odiou filmes americanos de terror.

Naquela manhã, incomum por causa da chuva que não parava, ela se encolheu ainda mais debaixo do cobertor, apertou seu travesseiro e quis voltar a ser criança. Criança, achou, não pensaria nele. Mas não conseguia ser criança. Sentia como mulher que era. Pensar naquele homem era parte de sua rotina.

Ricardo. Acordar com ele todos os dias no seu coração, dirigir a ele o seu primeiro pensamento, suspirar e torcer para encontrá-lo assim, sem querer, pela rua, tomando um café no bar da esquina, no consultório do dentista, no posto de gasolina. Mais que os pesadelos constantes, era esse o seu pior tormento. “É que não só acordo com ele, mas penso nele a toda hora, em várias situações, algumas até sem sentido. Outro dia, tive a certeza de que era ele gritando na calçada as ofertas da semana no maganize que tem em frente ao meu trabalho”, ela me contou. “E por que você não vai fazer terapia? Ou vai enlouquecer”, perguntei. “Eu já faço terapia.”

Entendi que, de fato, Antonia adorava e cultivava tal “tormento”. Porque era tudo o que lhe tinha sobrado de Ricardo: lembranças e fantasias. Ele não havia sido apenas um caso eventual.

Com a chuva, tudo era muito doloroso. Antonia suportava a lembrança na rotina, mas a chuva lhe trazia um desejo por algo que não se completou. Algo que ela desejou, mas que não soube como alcançar. Uma culpa sem sentido já que nada acontece fora de sua época. Mas era como se ela já o tivesse perdido. Por onde andaria aquele rapaz?
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Algo Que Mudou

Publicada em 20 de janeiro de 2008

Juliana cresceu ouvindo a mãe gritar:

— Eu quero sumir!!

Criança, sofria e chorava com o desabafo materno, com a raiva colocada naquela voz e com o sentimento de culpa por imaginar ser o motivo daquele estranho desejo. “O que fiz de tão errado?”, Juliana se perguntava.

Menina-moça, Juliana foi aprendendo a lidar com aquilo. Os brados maternos continuavam cada vez mais freqüentes, mas ela passou a considerá-los uma frescura, um jogo de cena, a histeria de uma mulher na menopausa que como uma criança mimada queria atenção. Para a adolescente, a mãe era fraca, fria, covarde, não se resolvia.

Juliana cresceu magoada, jurando que não seria o espelho de sua mãe, que não faria com seus filhos o que a mãe fez a ela.

Hoje, já adulta, Juliana não grita. Mas entende perfeitamente o que era o desejo da mãe. O berro de Juliana está parado na garganta, em vários dias, de várias semanas, durante vários anos. E ela não se permitirá gritar.
— Não era o desejo real de sumir do mundo, não era o de sumir da visão dos outros. Na verdade, minha mãe queria sumir era dela mesma. Sei disso só hoje, porque é assim que também me sinto — me diz, em tom de segredo. — É uma vontade de não estar aqui, de não ver, não escutar, não perceber, não ter intuição sobre nada. Não é nem o desejo de morrer. É o desejo de não ser. De simplesmente nunca ter sido — completa ela, em plena crise de depressão.

— Mas, querida, de si mesmo ninguém foge — respondo, numa tentativa de arrancá-la de tanta melancolia.

Para mim, escutar tudo isso da boca de minha amiga é muito estranho. Parece até contraditório, porque Juliana é alegre. Ou pelo menos era. Na turma da faculdade, era a mais “pé no chão”, sempre feliz ao estar com as pessoas, seus amigos, seus parentes. Adorava a própria vida e costumava dizer: “A vida é próspera e tem me dado tudo”.

Mas a dor que a atinge neste momento se compara à da perda de alguém querido. A dor da morte por algo que simplesmente deixou de ser, que não tem mais volta, que não tem mais conserto, que ela não quer mais, mas que não queria que acabasse.

O fato é que, na maturidade, Juliana mudou.

O chão a partir do qual construiu a sua vida começou a se mover. Seus valores, ela percebe agora, não são sólidos. E ela não sabe o que virá, tem medo do que desconhece mas não consegue voltar ao rumo anterior. “O que vou colocar no lugar do que se foi?”, se pergunta.

Como a mãe, ela descobriu algo obscuro no seu coração e com isso terá de viver. E sem gritar.

Mulher Maravilha


Publicada em 13 de janeiro de 2008


O vidro explodiu de novo no seu ouvido. “Droga!”, gritou Ana. Pela quarta vez no ano, os moleques de rua, bandidos, estouravam o vidro do seu carro, no farol, e levavam sua bolsa.

Ela não se surpreendeu. Na verdade, ela ficou com uma raiva enorme, muita raiva, e fez o retorno com o carro enquanto tentava lembrar o que havia perdido desta vez: “Não foi grande coisa: um óculos de sol, carteira de motorista, documentos do carro e, ai!, aquela blusa de lã preta novinha em folha! Os óculos de sol tinham grau, custaram uma grana alta! Que ódio!”.

E, enquanto vasculhava a sua memória e, ao mesmo tempo, procurava encontrar a delegacia de polícia mais próxima, viu um dos meninos de longe, correndo com sua bolsa na mão. Pensou em voltar o carro para surpreendê-lo. Mas conteve o impulso. Não valia a pena.

Tentou respirar fundo e se acalmar, mas foi aí que olhou pra sua mão. Estava sangrando. “Quatro assaltos e pela primeira vez eu me machuco”. E chorou. Chorou de nervoso e de medo.

Na delegacia, pediu para parar na vaga com uma placa que avisa “reservado para autoridades”. E o policial deixou. Saiu do carro e, mesmo com o vidro quebrado, ligou o alarme. “Ligar o alarme pra quê, moça?”, quis saber o guarda. Ela sorriu amarelo e só respondeu: “Foi automático”. Se sentou na sala de espera e se preparou para o inevitável chá de cadeira que iria passar noite adentro.

Foi só então que ligou para o marido, em casa:

— Oi. Estouraram o vidro de novo no farol e estou na delegacia.

— Pô, de novo? Você tá bem?

— Me cortei um pouco, estou sangrando, mas estou bem! — disse, sem tentar esconder o choro.

E, então, do outro lado da linha, veio a reação inesperada: “Ah! Então, vê se resolve tudo rapidão aí e vem pra casa, tá? Tô te esperando”. Simples assim, como se ela estivesse fazendo compras no shopping.

Ana teve um ataque de pânico. Pânico mesmo. Afinal, o que ele achava que ela era? Tão forte, tão independente, tão eficiente que era capaz de resolver tudo, tudo rápido. A mulher maravilha.

“Como rápido? Você tá louco? Eu estou numa delegacia, pô! São 10 da noite! Tá chovendo! E isso é um plantão!”. E disse isso com um nó na garganta, sufocando a voz gritada. Teve vergonha.

“Ah, tá! Desculpa. Não quis dizer isto”, ele respondeu do outro lado.

Mas disse. E desculpou-se assim, já completamente sem paciência. Nem menção de ampará-la. Nem menção de socorrê-la.

— Tchau, então! — Ana disse.

Ato falho. Freud explica.

Só Por Capricho


Publicada em 6 de janeiro de 2008
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A rosa era vermelha. Estava encaixada na persiana da janela azul, de madeira. A flor se destacava de longe. Quando Simone acordou, encontrou lá a rosa. Nas folhas, frases de amor escritas com caneta preta. “Rosa de amor só vale se for roubada”, ela havia dito a Diogo na noite anterior. E elefez a sua vontade. Pulou o muro da vizinha e arrancou a rosa do jardim. A menina se encantou com aquele costume do interior. E, até por ser da cidade grande, lhe choviam pretendentes. E ela decidiu namorar aquele que cumprisse um certo ritual.

Diogo foi o primeiro namorado de Simone. Ela 15, ele 18. Ela linda, ele tímido. Ela virgem, ele no ponto. A paixão foi tão avalassaladora que toda a cidadezinha se envolveu. Torciam por eles. O pai na cidade grande ameaçou. “Se souber de algo que estrague nossa reputação você não volta praí”. A parentalha se ocupou de protegê-los. As tias os levavam para as suas casas, não os deixavam namorar nas praças, nas escadarias da igreja. Os beijos mais íntimos eram dados dentro de saletas, nas varandas das chácaras, longe dos olhos maldosos.

Mas as férias acabaram e ela partiu. Ele ficou, prometendo amor e fidelidade eternos. Meses de namoro à distância eles tiveram. Mas os hormônios da adolescência não param de ferver. E um dia chegou a carta derradeira: “Desculpe, mas me apaixonei por outra aqui. Vamos terminar”.

A traição é um tipo de navalha que entra no coração das pessoas. E foi a dor de um corte que Simone sentiu com aquela carta. Não que fosse fiel. Na verdade, na sua cidade, já ficava com vários. Mas a mulher traída, mesmo a adolescente, é ardilosa. Simone tinha um capricho a ser realizado.

E quando, no Natal, voltou para a cidadezinha, não sossegou enquanto não reencontrou Diogo. Ao vê-la, quase enlouqueceu de desejo. Estavam em um baile. Ele levou a namorada para casa mais cedo. Simone também partiu, mas foi ficar à espreita, no portão da casa dele, na penumbra. E, quando ele chegou, lá estava ela. Linda e cínica, perguntou chorosa: “Mas, por quê?”. E não sossegou até arrancar-lhe um longo beijo. Despedida? Não. Vingança. Simone dormiu feliz aquela noite. Já Diogo não dormiu. Sua consciência pesava.

Vinte anos se passaram. Diogo se casou com a namorada. Parece feliz. Simone teve vários homens, se divertiu pela vida, rodou o mundo, mas um dia também cansou e resolveu parar. Casou e teve filhos. De vez em quando, volta à cidadezinha e encontra Diogo por acaso. E ela ainda se diverte, porque até hoje ele não tem coragem de encará-la como alguém comum. Fica corado e finge que nunca a conheceu. É que até hoje ele sente culpa por causa daquele beijo no meio da madrugada, na frente do seu portão.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Um Olhar de Prazer


Publicada em 30 de dezembro de 2007


Aline conheceu Marcelo durante um réveillon. Corpo moreno do verão, roupas brancas e Copacabana inundada de gente, velas e flores para Iemanjá. Na festa, ela se sentia tão linda, que sabia que era a caça. E também caçava.
Ao amanhecer, Marcelo a chamou e eles voltaram juntos para a praia. Foram molhar os pés. De lá, seguiram para um apartamento e, em um quarto, se afundaram no colchão. No meio da manhã, enquanto ele dormia, Aline se foi. Mas, à tarde, Marcelo ligou.
“Vamos sair hoje mais uma vez?”.
Foram jantar e passearam de mãos dadas, como velhos namorados. Ficaram mais uma noite e fizeram todas as promessas que nunca devem ser feitas a ninguém. E, no dia seguinte, ela partiu para São Paulo. Mas ele não sumiu.
Telefonemas, cartões, e-mails, tudo dele a alcançava. Nos primeiros meses, ele ia vê-la e os dois se curtiam em hotéis de luxo dos Jardins. Alugaram no carnaval uma quitinete em Copacabana e passaram o feriadão felizes, andando na orla, dançando em bailes chiques, comendo em lanchonetes festivas.
Na Quaresma, porém, a vida começou a mudar. Algo, ela sentia, não ia bem.
Na Páscoa, Aline foi para o Rio. Lá, nada de intimidades em apês simpáticos. Ficaram no quartinho que ele alugava no fundo da casa de um senhor, muito longe da praia.
Foi aí que Marcelo lhe fez a acusação que doeu como uma facada:
“Você mente para mim”.
O ataque enjoou o seu estômago. A desconfiança é uma péssima companhia do amor.
No inverno, Marcelo perdeu o emprego no Rio e foi morar com a mãe em São Paulo. Marcava encontros com Aline em hotéis decadentes do Centro. Até que chegou o aniversário dela. Faria 22. Era um domingo. Ligou para ele:
“Vamos sair?”.
“Não, vem para a minha casa.”
Ele, então, explicou onde morava: um ônibus e depois outro, até o ponto final, do outro lado da cidade.
O frio congelava os ossos de quem estava na rua. Na pequena casa, a mãe fazia coxinhas para fora, enquanto ele, os irmãos e os sobrinhos se amontoavam sob cobertores em dois sofás. Assistiam televisão.
Aline entrou e ninguém se mexeu. Nem ele. Ficou na cozinha com a velha senhora, ele vendo TV e a tarde passando. No início da noite, ela pediu: “Me leva até o terminal?”.
Mal-humorado, Marcelo trocou de roupa e foi com ela. Quase uma hora de viagem, os dois quietos, sentados no fundo do ônibus.
Ao chegarem, ele já grosseiro, Aline olhou para aquele chuvisco cinza, e finalmente percebeu o quanto estava cansada. Encarou Marcelo com um certo prazer. Chegara a sua vez de dar o troco. Ele não esperava: “Quer saber? Foda-se!”.
E ela o largou lá, sem ação, com a dor de quem leva uma facada no orgulho. Nunca mais soube dele. Nem ele dela. Os dois pegaram seus ônibus e choraram até suas casas.
Depois, simplesmente se esqueceram.

Um Lindo Rostinho


Publicada em 23 de dezembro de 2007

Insinuante. Este era o atributo exato para Maria Dejanira. Sempre foi assim: era muito bonita, mas fingia ser o que não era, ter feito o que nunca alcançou oportunidade, só para provocar os outros, desestruturar amizades, colocar dúvidas em relacionamentos sérios. Era uma marca de sua personalidade. Na maioria das vezes se dava bem.
Lembro que Maria Dejanira quase provoca uma briga em um ônibus da escola, que nos levava a uma excursão. Meu professor de biologia foi com a namorada, moça liberal se comparada com as mulheres mais velhas que eu conhecia até então. Mas era quieta, ria com a molecada adolescente sem se meter nas brincadeiras.
Os meninos da minha turma adoravam falar bobagens. E, para brincar com o professor, diziam que, para tirar boa nota na prova, tinham até que beijá-lo na boca. Mas Maria Dejanira parou insinuante ao lado da poltrona do casal e disparou: “Se é assim eu já passei, né, ‘fessor’?”.
O ônibus calou. A namorada do professor fulminou a menina. Entendeu a provocação, e todo mundo esperou um escândalo. Mas o professor apertou a sua perna, como que implorando para ela não fazer nada. E Dejanira se sentiu ignorada.
Anos depois, encontrei uma amiga. Estava furiosa. Jandira tinha acabado de ter uma discussão feia com a ex-secretária de seu noivo. Confiava em Rodrigo, mas aquela mulher intrometida a tirava do sério.
“Meu noivo era o gerente da empresa, e, por trabalhar com ele, ela achava que mandava ali”.
E começou a me contar o quanto a secretária dava palpites na vida do patrão e na dela.
“Rodrigo sofreu uma cirurgia, e ela me ligava para contar o que ele fazia de errado em relação à saúde. Depois, começou a dizer que eu e ele tínhamos que sair mais para ele se divertir. E, por fim, acabou se convidando para ir junto!”.
Jandira chegou a pedir para Rodrigo despedir a moça.
“Era tão atrevida que espalhou pela empresa um boato de que eles tinham um caso. Eu ficava com ciúmes, porque ela é bonita, tem presença”.
O clima entre o casal por causa da secretária estava azedo, quando os dois foram demitidos. “Fiquei aliviada. Ela não ia mais me encher”.
Mas qual não foi a surpresa de Jandira quando a garota ligou para reclamar que o ex-patrão não atendia seus telefonemas, e que queria voltar a trabalhar com ele.
“Eu surtei. Marquei um encontro com ela e disse que o Rodrigo ia para eles conversarem. Quando ela chegou no bar, estava toda enfeitada e feliz: ‘Cadê o Rodrigo?’, quis saber”.
“E você, fez o quê?”, perguntei, já ansiosa para chegar ao fim daquela história.
“Acabei com o lindo rostinho dela”.
Ah! O nome da ex-secretária: Maria Dejanira.