quinta-feira, 13 de outubro de 2011

De pantufas de leão

Gilberto bem que gostou daquela vida que acabara de descobrir.

Débora era diferente de toda mulher que havia conhecido. Ela era bonita, formada em administração, tinha um bom emprego, um carro e apartamento próprio, onde vivia sozinha com sua poodle Fifi. Mas, melhor do que tudo, ela era muito boa de cama e ainda não se importava em sair cedo para trabalhar, enquanto ele ficava em sua casa.

Gilberto aproveitava a solidão e dormia até mais tarde. Valorizava aquele tempo para pensar no que queria da vida. O rapaz de 23 anos estava numa fase pela qual muitos passam: tinha dúvidas quanto ao futuro, à profissão a seguir, a que curso fazer. Não conseguia decidir se deveria estudar perto de casa ou escolher uma faculdade em outro lugar. Já tinha prestado vestibular e iniciado a faculdade de direito. Por isso, morou seis meses no interior, em uma república. Mas percebeu que não tinha vocação para leis e pensou em fazer odontologia. Desistiu do curso de direito e voltou para casa.

Seus pais não estavam nada satisfeitos. Foi nessa fase de dúvidas que ele conheceu Débora. Na casa dos pais, sentia-se pressionado.

— Eles querem apressar a minha decisão — queixava-se aos amigos.

Por isso, quando seu caminho cruzou com o de Débora e ele percebeu que poderia passar muito tempo no apartamento dela, Gilberto vibrou. Ela, 15 anos mais velha, parecia não ligar para as dúvidas dele. Gostava de sua companhia, comprava tudo o que ele gostava de comer e ainda deixava livre o controle remoto da TV. Era a vida perfeita.

Mas Gilberto, de fato, não conseguia olhar além do próprio umbigo. Débora podia parecer liberal, até gostava, mas também buscava mais do que noites de bom sexo na sua cama. E as dúvidas existenciais do rapaz começaram a cansá-la.

— Tudo bem que ele tenha desistido do curso direito, mas quem quer fazer odonto precisa estudar. E eu nunca vi uma apostila sequer em casa. Aquilo começou a me irritar. Ele parece uma criança — desabafou.

Débora morava em um bom bairro na sua cidade. Seu apartamento era considerado de classe alta. Um dia, esqueceu um documento do escritório em casa e iria precisar dele para uma reunião. Então, lembrou que tinha deixado Gilberto dormindo e ligou para pedir um favor: que ele pegasse o papel e descesse em meia hora. Eram 11 horas.

— Quando cheguei, quase morri. Ele estava sentado no degrau do portão do meu prédio cheio de frescuras, com a bermuda do pijama, sem camisa, todo despenteado, segurando a Fifi pela coleira e, nos pés, usava as minhas pantufas de leão. Foi a gota d’água. Acabou. Pantufas de leão não dá!

Publicado na Diário DEZ! em 28 de setembro de 2008

terça-feira, 4 de outubro de 2011

28/11/2010 - Fora da linha reta

O carro que ia logo à nossa frente, na Bandeirantes, não conseguia seguir reto, em uma única faixa. Eu e minhas amigas rezávamos. Era tudo o que a gente podia fazer. Nele, seguiam Airton, Marília e a filha dela, de apenas 3 anos. Airton estava completamente bêbado. E, na sua teimosia, não quis entregar o volante para Marília.



Era noite de domingo. Nós tínhamos ido até Valinhos para a festa de aniversário de uma colega da faculdade. Airton e Marília namoravam há seis meses. Ainda estavam na fase de “só beijos e abraços”. Naquele dia, entraram na fase de “brigas intermináveis”. Mesmo assim, o relacionamento deles durou três anos.


Marília era a mulher mais linda da faculdade. Airton era o mais inteligente. Era aquele casal que combinava em tudo. Ela tinha saído de um casamento atribulado, com um marido violento. Ele lhe deu apoio na etapa pós-separação e depois também, quando resolveram morar juntos. Mas Airton não podia beber. E só descobriu isso durante o relacionamento com ela.


Começou com as bebidas no happy hour. Ele passou a chegar em casa carregado por amigos, deitava no sofá e dormia. Depois, vieram os problemas no trabalho. A empresa o aconselhou a buscar ajuda e se ofereceu para bancar uma internação. Ele ficou limpo, mas, seis meses depois, voltou a beber. Até que xingou o chefe e perdeu o emprego.


Uma vez, a polícia ligou para Marília. Airton havia sido encontrado caído numa calçada. Ele voltou para a internação. Uma vaquinha entre amigos pagou o tratamento desta vez. Limpo de novo, voltou a trabalhar, mas em Campinas. Queria distância dos amigos bebuns. Ela topou a mudança para o bem dele. Até que um dia Airton apareceu em casa alterado de novo. Ela brigou e ele lhe deu um tapa na cara. Foi a gota d’água. Marília pegou a filha e foram embora. Ele nunca conseguiu o seu perdão.


A última vez que vi Airton foi em Paranapiacaba. A charmosa vila inglesa construída no meio da Serra do Mar no final do século 19 promove um festival de inverno nos meses de julho. Estávamos em uma casa de chá. Era uma tarde bem típica: fazia frio e uma garoa fina caia por tudo.


Logo percebi que Airton estava meio “alto”. Fazia uns cinco anos que não o via, desde a separação. Airton me abraçou com uma empolgação que só os bêbados têm. Mas ele era um alcoólatra contido. Depois da festa inicial, nos sentamos e começamos a conversar. Eu estava com o meu namorado e estranhei quando vi que meu amigo estava só. A vila é ótima para curtir a dois e perguntei:

– Por que alguém sai de Campinas, atravessa São Paulo e vem sozinho, sem carro, para Paranapiacaba?


– É que eu gosto daqui – e pediu para ficar conosco.


Ele era adorável. Meu namorado logo se encantou com sua simpatia e inteligência. Depois de acabar com o bule de chá, resolvemos passear pela vila. Mas Airton sugeriu:


– Antes vamos pedir um conhaque para esquentar?


Ele tomou duas doses em seguida. Saímos para andar. Eu queria ver os shows, entrar nas lojas, comprar artesanato, enfim, curtir o lugar. Mas a cada quadra Airton parava para entrar em um bar.


Muitas paradas depois, ele me puxou de lado e disse, com lágrimas nos olhos e língua já enrolando:


– Vou te falar por que eu vim aqui. É que achava que ia ver a Marília. A gente sempre vinha nesse festival. E ela adorava.

21/11/2010 - Balas todos os dias

Ela saiu cedinho de uma casa para ir para a escola e, no final da tarde, quando a mãe foi buscá-la, já a levou direto para outro lugar. Julinha ficou surpresa. Ela não sabia que ia mudar. A mãe, a avó e a tia fizeram tudo às escondidas. A mãe, com medo da reação da menina, montou um quarto novo para elas, todo cor-de-rosa, para compensar a mudança brusca. Mas a menina não entendeu nada. Ficou confusa. O quarto lindo não compesaria o mal feito.




Também pudera: Julinha tinha 8 anos quando isso aconteceu. Sem ser preparada ou mesmo avisada, ela foi tirada de uma casa térrea, com quintal e jardim, num bairro central da cidade, e levada para um apartamento apertado de um conjunto habitacional popular, bem mais modesto.





Mas o tamanho não era exatamente o problema. A casa onde morava com a família e o padastro ficava em uma rua tranquila, com várias crianças vizinhas, menininhas como ela, que se reuniam sempre para brincar. Julinha não poderia mais brincar com as suas amigas. E nem teve tempo de dizer tchau, dar o novo endereço ou algo assim. Então, a solidão foi o primeiro problema, mas viriam vários outros.





Logo na primeira noite no apartamento, nem ela e nem as mulheres conseguiram dormir. Do lado de fora do prédio, que era vizinho de uma favela, ponto de tráfico conhecido do bairro, elas ouviam cirenes de carros de polícia, gritaria e tiroteio. Ficaram apavoradas. Onde moravam antes era muito mais tranquilo. Mas não tinha mais como voltar atrás ou procurar outro lugar para morar. O aluguel de lá foi pago adiantado, três meses.





No dia seguinte, a menina precisou sair de casa ainda mais cedo para ir para a escola (já que apartamento era mais longe). Não dava mais para ir a pé. Ela e a tia precisavam se espremer no ônibus até a escola. Ela odiou a novidade.





Ao longo do dia, Julinha sentiu dores de estômago e teve febre quando chegou a hora de ir embora. Não queria voltar para o apartamento. Queria ir para a casa “velha”.





Nos dias que se seguiram, seu desempenho na escola despencou. Um mês depois, a escola pediu para a mãe encaminhá-la para uma psicóloga.







O que lhe explicaram é que tinham mudado porque não gostavam mais do padastro. Julinha também não gostava de Roberto. Ele era quieto, pouco divertido e sempre chamava a sua atenção quando fazia algo errado. Mas ele era o homem que ela conhecia como sendo seu padrasto no último ano. E era o relacionamento mais estável que a sua mãe tinha tido desde que se entendia por gente. Antes dele, havia um homem diferente na casa a cada mês. E a menina não gostava nada daquilo.





Um dia após a mudança, a mãe lhe apresentou quem ela logo percebeu quem poderia ser seu novo “padrasto”:





– Filha, esse é o Agenor, um amigo. Ele vai precisar dormir aqui hoje – disse Leonor.





A mãe não precisou dizer mais nada. Julinha entendeu o que devia fazer só de olhá-la. E, então, como numa cena já ensaiada, fez o pedido, sabendo que era exatamente o que a mãe queria que ela fizesse.





– Mãe, hoje eu posso dormir no quarto da vovó?





Julinha está cada vez mais triste. Às vezes chora e diz que é saudades. Mas não se atreve a pedir para voltar para a velha casa. Outro dia, disse à avó.





– Minha mãe bem que podia casar logo com o Agenor. Ele, pelo menos, me traz balas todos os dias.

14/11/2010 - batida para sempre

batida para sempre O corpo dela se projetou para frente com a batida. Andreia estava no banco do passageiro, sem o cinto de segurança. E bateu com o peito no console. Não foi displicência dela. Naquela época, não era costume usar o cinto, não havia a lei que multa, os jornais não faziam tanta campanha de segurança no trânsito. Mas, aparentemente, ela não tinha se machucado, pois o que se via eram apenas alguns arranhões nos braços.




Já Eduardo enfiou o rosto no vidro, quebrou os dentes, o nariz, fraturou a mão, se cortou todo com o vidro, desmaiou. Todos achavam que ele poderia morrer.





Não tinha motivo para o acidente. Eduardo não estava correndo (o velocímetro provou isso), ele e Andreia não haviam brigado e nem estavam conversando, o que poderia distraí-lo. Ele também não tinha bebido e nem tomado nenhum remédio. Por isso, até hoje, ninguém entende como o carro foi parar naquele poste. Foi perda total.





Andreia não soube explicar nada. Na verdade, tinha adormecido. Estava cansada porque tinham saído muito cedo e andado durante toda a manhã atrás de boas ofertas. Talvez Eduardo também tenha cochilado na mesma hora, dado uma daquelas “pescadas” que duram um segundo. E, naquele “frame”, ele perdeu o controle do carro. Mas Eduardo nunca reconheceu isso. Preferimos não questionar. O “como foi o acidente” ficou na conta do destino. “Era o destino deles passar por aquilo”, diz a mãe de Eduardo.





Passava um pouco das quatro, o casal voltava do Brás, onde tinham ido comprar roupas no atacado para a loja que pretendiam inaugurar no próximo fim de semana. O pai de Andreia era contra. Aliás, seu Fernandes também era contra aquele namoro da sua única filha. Ele odiava “aquele rapaz com cara de maconheiro”, sempre dizia. O acidente acabou com os planos que tinham para o futuro e mudou a vida dos três.





O Resgate chegou rápido. Ali, eles já foram separados. Cada um foi levado para um hospital. Ele, desmaiado, foi atendido em regime urgência, submetido a uma cirurgia (corria o risco de perder o movimento da mão).





Andreia, ao contrário, foi conversando na ambulância com os paramédicos, que constataram apenas escoriações superficiais no seu corpo. Foi só no pronto-socorro, uma hora depois do acidente, que ela começou a sentir dores. Naquela altura, ela já tinha feito alguns exames, que constataram lesões internas, com hemorragia grave. Quando o pai dela chegou, só teve tempo de assinar a autorização da primeira operação – eram incontáveis as lesões de Andreia.





Na primeira oportunidade, o homem transferiu a filha para um hospital do convênio, onde ela ficou internada por quase dois meses. Eduardo, ao contrário, teve alta rápido. Em 15 dias, já estava em casa. Ele, então, quis visitar a namorada. Mas o pai dela proibia as visitas do rapaz e dos amigos dele. Ele tentava todos os dias. O velho, porém, dizia à filha que o namorado não a procurava: “Vê agora, que está toda quebrada, que ele não a ama? Nunca a amou. Eu sempre disse isso!”





Fragilizada e presa na cama, ela não tinha como contestar. Cada vez mais só e deprimida, Andreia foi tomada por uma infecção generalizada. Só quando estava à beira da morte, o pai, com medo de Deus, permitiu a visita de Eduardo. Mas não deu tempo. Andreia morreu naquela manhã.

7/11/2010 - pra mudar vai demorar

pra mudar vai demorar – Ela me enfeitiça!




É assim que Anderson justifica o fato de ainda estar com Claudete. Ele não a ama, garante. Mas não consegue lhe dizer um definitivo “Não te quero mais, acabou!”. E isso mesmo sabendo tudo o que Claudete lhe fez.





Anderson e Claudete moraram juntos por dois anos. No começo, eram só os dois. A família dele ajudou a montar a casa, porque o rapaz é pedreiro, ganha pouco, e ela não trabalha. Um ano depois, Claudete trouxe para morar junto com eles a mãe e a filha de 10 anos, que teve quando era adolescente. Mais um ano e Claudete quis se separar. Mas não disse nada para Anderson. Só os amigos e a família dela sabiam. Um belo dia, quando o rapaz voltou do trabalho, encontrou sua casa vazia. A moça tinha partido e deixado um bolo para ele comer em cima da mesa. Anderson quase enlouqueceu. Descobriu que tinha sido traído, que um outro homem havia financiado os móveis da nova casa dela, da mãe e da filha. Mesmo assim, queria revê-la. Com a desculpa da raiva, ele insistiu em encontrá-la para lhe dizer “poucas e boas”. Até que conseguiu. Mas eles, para espanto de todos, voltaram a namorar.





– Ela explicou que não queria me deixar, que foi pressionada pela mãe – me contou.





– Mas e a traição? E o outro homem?





– Eu não sei o que fazer. Eu sei disso. Também sei que ela só gasta, não trabalha nada. E, pensando friamente, nem gosto tanto dela assim. Mas ela me enfeitiça! – me respondeu.





Anderson parece sofrer de uma “síndrome” que já vi em alguns outros homens, que temem decidir o rumo da própria vida e vão deixando as coisas se resolverem sozinhas, mesmo quando estão infelizes. É como se pensassem assim: “Estou com ela, está ruim, mas dá trabalho terminar. Então, vou ficando até quando ela resolver ou cansar.”





– Quero lhe dizer uma coisa: estou com uma mulher que não amo. Ela me atormenta e me paralisa – foi com essa frase que Álvares começou seu desabafo comigo. E continuou:





– Há dois anos, comecei um namoro com a Maria achando que ia ser muito bom, diferente. Mas o nosso relacionamento virou um tormento. Eu ando triste como nunca, imobilizado para a vida. Já falei para ela que temos que terminar, porque nós só fazemos mal um para o outro. Mas ela não se convence e eu não consigo resolver, mandar ela embora.





– Como assim? Se não gosta, não dá certo, termina. É muito simples, não é? – respondi, sem compreender como alguém pode manter uma situação infeliz tendo nas mãos os instrumentos para resolver o problema.





– Não é tão fácil. Eu não sei brigar... – assim, lacônico.





Fui, então, conversar com um outro amigo, um exemplo para mim. O cara teve três noivas, terminou com as três depois de estar com as casas montadas, e casou com uma quarta, sem noivar e nem ter casa. Hoje está solteiro, mas há mais de um ano que “fica” com Joana, uma ex-namorada, sempre afirmando que vai acabar de vez “amanhã”. Perguntei porque os homens se comportam assim.





– É que tem alguma coisa na mulher que, mesmo que o homem não queira admitir, ele gosta. Ele diz que não gosta dela, mas tem algo que o envolve e que é difícil mesmo de se desvencilhar. Geralmente é o sexo. Olha só o meu caso: já terminei com a Joana, mas para largá-la de vez, só se eu mudar desse país. Então, vai demorar.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

31/10/2010 - Ele é muito ingrato

ele é muito ingrato Parecia muito bom para ser verdade. Mas era. Cleonice, enfim, estava namorando.




Não era mais a mulher solitária, largada do marido com uma filha para criar. Nos últimos cinco anos, tinha visto sua auto-estima despencar e, depois, ser reconstruída mas muito lentamente. Após a separação, em seis meses, engordou dez quilos, sua pele ficou péssima, seu cabelo, sem brilho, e suas unhas viviam lascadas. Não que estivesse propositalmente desleixada. Mas uma tristeza tinha se abatido sobre ela. Chorava a qualquer hora e por qualquer coisa.


Sozinha, sem grana para se bancar, precisou voltar a morar com os pais. Por mais que o casal de velhos amasse a neta, não tinha paciência para as artes da pequena e a lista de proibições na casa só crescia. A liberdade que só se tem na própria casa, acabou.





No trabalho, a produtividade também caiu. Cleonice estava atrapalhada, esquecia tarefas, faltava muito, deixava migalhas por onde passava (porque sempre tinha um pacote de algo na mão para comer). Só se manteve no emprego porque tinha cinco anos de casa – e de crédito junto ao dono da empresa, que a conheceu nos bons tempos.


Depois de passado o impacto do divórcio, Cleonice se deu conta de quanto estava só. Não saia mais, os amigos tinham desistido de chamá-la. Só uma amiga era mais fiel:



– Cleonice, você tem que sair dessa fossa, se cuidar – sempre lhe aconselhava.

Então, quase dois anos depois da separção, teve, enfim, coragem de se olhar seriamente no espelho. E levou um susto. Decidiu que era hora de voltar ao que era antes, pelo menos fisicamente. Fez matrícula em uma academia, começou a fazer dieta, procurou um dermatologista, enfim, resolveu investir nela mesma. Também voltou a sair. Primeiro, com a amiga fiel, depois com os novos colegas da academia, e assim, foi retomando a vida.

Mas o problema da solidão persistia. Há quase três anos estava sem sexo e precisava urgentemente de um namorado, o que não era fácil de arrumar.

Começou a frequentar baladas, a beber mais e se soltar. Quem sabe, bêbada, não encontrava alguém? Com a razão embaçada, podia ser menos exigente e cair na gandaia com quem aparecesse. E não é que funcionou? Mas nada que, no dia seguinte, tenha a deixado feliz ou orgulhosa.

– A noite foi boa, mas nem trocamos telefone. E, pior, estou com uma baita dor de cabeça – foi o que disse na primeira vez. Mesmo assim, o sexo desse jeito rolou umas duas vezes. E isso em dois anos.


Até que conheceu Silvio num site daqueles que buscam seu par ideal. Viúvo, pai de dois meninos já crescidos, quase 50, morava só. Era perfeito. Marcaram um encontro, depois outro e mais outro. Enfim, começaram a namorar.


O apartamento de Silvio era bem mobiliado, não faltava nada. Os filhos não viviam lá, mas tinham total liberdade no lugar. Seis meses de namoro, Cleonice já se sentia no direito de dar palpites. Começou com um quadro da sala que cismou que devia ir para o lixo, depois implicou com as cortinas, e ainda com o quanto os filhos dele comiam. Mas deixou ele roxo quando perguntou, assim como quem não quer nada, se não seria bom ela ir morar com ele. Silvio a mandou embora. Disse que não poderia resolver em seis meses as carências que ela tinha acumulado em cinco anos. Ela ficou surpresa. E até hoje diz que ele é muito, mas muito ingrato.

24/10/2010 - Um efeito contrário

um efeito Contrário Quando o barato bateu, Nina resolveu ir embora. Começou a se perguntar o que fazia ali, no meio da madrugada, em uma praça, compartilhando um baseado com cinco garotos, quatro deles desconhecidos. Eles tinham idade para ser seus filhos! Mas ela não era do tipo antiquado. Podia muito bem namorar com um homem mais novo. E era isso que estava fazendo. Só não imaginava que ele ia lhe arrastar para uma aventura tão juvenil.



– Vamos tomar mais uma cerveja ali na esquina? – sugeriu um dos garotos.


Ela encarou Fred como a implorar que respondesse “não, está tarde, já vamos embora”. Mas não foi isso que ouviu. O menino até retribuiu o seu olhar, mas não captou a sua súplica, e respondeu:

– Lógico, cara. Estou nessa.

Internamente, Nina explodiu. Não entendia no que a conversa chata daqueles guris atraia Fred. Ela queria ir para a casa dele, ali do lado, um quarto e cozinha de estudante universitário, com móveis de segunda mão, muito bagunçado, mas com tudo cheirando fresco. O frescor da juventude que ela mesma se esforçava para não perder. Mas naquele momento, chapada, refletia que tinha coisas da juventude que não eram para ela.

– Vou embora, então! – ela declarou, pegando a chave do carro e fazendo cara feia.

Fred levou um susto:

– Não! Espera aí! Eu vou com você! Achei que estava tudo bem, poxa!
– E está. Você pode fazer o que acha melhor. Eu não estou a fim e vou embora – ela respondeu, já dentro do carro.

Nessa hora, a cabeça de Nina rodava. Desacostumada com drogas, seu corpo reagia de uma maneira inesperada. A intenção era que ela relaxasse, mas ao contrário, se instalava nela um mau humor sem precedentes. Tudo parecia superlativo. Racionalmente, sabia que a irritação era desproporcional, mas não conseguia evitar.

Fred entrou no carro e seguiram para a casa dele. Ela se assustou porque as ruas pareciam largas, os prédios, enormes. Com o pouco de razão que lhe restava, dirigia o mais devagar que conseguia. Decidiu entrar mais por precaução do que por desejo - não podia ficar no volante daquele jeito.


Mas a noite tinha acabado para ela. O namorado bem que se esforçou, mas Nina já não achava mais graça em nada que ele fazia. Primeiro, cozinhou para ela: macarrão instantâneo, típico da dispensa de estudantes. Ela engoliu. Há uma semana, o mesmo prato tinha sido para ela como um jantar à luz de velas.
Começou a olhar ao redor e a bagunça que antes achava tão “fofa” era agora insuportável. Quando percebeu, Fred parecia ser muito mais jovem do que era e se sentiu como se fosse sua mãe. Começou a reclamar, primeiro da arrumação, depois da limpeza dos lençóis, da pia cheia de pratos, das cuecas penduradas no box do banheiro, enfim, de tudo o que ela nunca havia se importado. Falava tanto, e ele retrucando, que aquela falação virou uma discussão frenética, que ela não lembra como terminou.


Também não sabe como dormiu. Mas acordou no meio da manhã seguinte, na cama dele, de roupa e tudo. Fred dormia num tapete. Ela saiu sem fazer barulho e foi direto para casa. Já se passou mais de mês e ela ainda espera que ele ligue. Mas não tem muita convicção. É que, do pouco que lembra do bate-boca, tem quase certeza que chamou Fred de “meu filho”. Para uma amante mais velha, ela sabe, isso é igual a dizer “é o fim”.

17/10/2010 - A ponto de implodir

a ponto de implodir Renato parecia perfeito. Quase 50 anos, vida econômica estável, separado, sem filhos. Também era bonito, não aquela beleza perfeita, que atrai todos os olhares femininos. Mais um jeito, que deixava Ângela hipnotizada.




Se conheceram na tarde de um sábado, em um sambão. Da dança para a conversa, da conversa para o beijo, do beijo para uma carona, quando viram, já estavam no apartamento dela. A noite parecia ser muito promissora.





Conversaram sobre tudo. De poesia a futebol. De música à culinária. Os dois já haviam morado na Europa e tinham planos de voltar, a passeio. Os dois tinham cachorro. Os dois adoravam fotografar. Tudo entre eles parecia coincidir.





Deslumbrada, aos 45, Ângela se apaixonou. Só uma coisa, porém, a intrigou. Apesar de ficarem horas a sós, eles só trocaram beijos, e Renato não quis ir adiante no sexo. Deixou-a no meio da madrugada a ponto de implodir. Ângela suspeitou que ele não tinha ficado tão excitado quanto ela, mas preferiu acreditar que tinha sido só sua impressão. Pela manhã, esqueceu suas dúvidas quando recebeu dele um buquê de flores com um cartão cheio de palavras carinhosas:





– Encontrei um homem que se comporta à moda antiga: nada de sexo no primeiro encontro! Isso não é o máximo? – me disse naquele dia uma Ângela empolgada.





Uma semana e vários e-mails trocados depois, os dois se encontraram de novo. Foram ao cinema, jantaram e um restaurante francês e, de novo, terminaram no apartamento dela. Ângela tinha deixado tudo preparado. Vinho gelando, velas, lençóis limpos e perfumados, tudo para dar um clima perfeito ao encontro. Mas Renato, de novo, não “compareceu”. E, pior, desta vez Ângela teve certeza: ele não tinha conseguido ficar excitado.





O sonho de amor perfeito da minha amiga começava a se transformar em um pesadelo. Ela estava subindo pelas paredes e o homem que desejava não conseguia satisfazê-la. Chorosa, me ligou:





– Vi, ele não consegue. O cara é perfeito, é tudo, mas não consegue... O que faço?





A situação era tragicômica:





– Calma... Se está tão interessada, vale a pena insistir, tentar conversar, ver o que é.





Lá foi Ângela para um terceiro encontro. Marcaram um café num domingo à tarde. Falaram da infância, riram a valer. Era alto verão, fim de tarde, e resolveram dar um passeio no Ibirapuera. O coração de Ângela acelerou quando ele pegou na sua mão. Pareciam namorados. Ele, então, a levou para casa. Mas não quis subir. Ela estava inconformada:





– Chega. Não posso com isso. Não vou mais procurá-lo!





Renato parece que pensou o mesmo. E, por duas semanas, não se falaram. Ângela ficou triste e saudosa. Até que, numa quinta, ele lhe ligou. Ela ficou feliz e o chamou para jantar – ia cozinhar para ele.





O moço levou vinho e flores. Ela fez um risoto e salada picante, tudo delicioso. De sobremesa, creme de papaia com licor de cassis. No sofá, ao som de música romântica, Ângela só pensava: “Agora vai!”.





Mas não foi. Ele não conseguia... Ela tentou tirar a roupa dele, mas Renato a impediu. Descontrolada, ela sugeriu:





– Olha, vamos já numa farmácia comprar Viagra! Não é possível que não dê jeito!





O rapaz se esquivou e disse, com cara de indignado:





– Não! Você não entende! Eu não preciso disso!





E foi embora. Nunca mais apareceu.

10/10/2010 - Um mundo perfeito

um mundo perfeito Muita gente invejava Isadora. Ela sim, diziam, tinha uma vida perfeita. Apartamento próprio e bem montado na Vila Mariana, carro do ano, marido com bom emprego, filha linda, férias todos os anos. Ela mesma tinha uma empresa de consultoria de mercado imobiliário e sempre fechava ótimos negócios. Ganhava um bom dinheiro.




Mas, mais do que o sucesso de Isadora, quem a conhecia invejava a capacidade que ela tinha para organizar a própria vida. Seus amigos diziam que ela era uma pessoa que fazia tudo como planejou e no tempo que planejou. E, mais incrível, garantiam que tudo saia como ela queria.





Reclamavam, porém, que a moça era muito hermética e raramente estava disponível. Para alguém visitá-la, por exemplo, era preciso marcar com muita antecedência. Ela era capaz de não permitir que um amigo subisse ao seu apartamento se não tivesse lhe telefonado antes para combinar.





Em compensação, quem conseguia marcar uma ida a sua casa era recebido com toda a pompa. Podia ser almoço, jantar ou um singelo chá durante a tarde, Isadora sempre colocava a mesa com capricho – toalhas impecáveis, quitutes e bebidas de primeira. Mas tinha hora para chegar e para sair. A mulher era sistemática.





O que não sabiam os amigos é que Isadora tinha o hábito de se afastar do que não se encaixava no seu projeto de vida. Até o que pertencia ao seu passado e a desagradava, tentava ignorar. Ela não tinha tido uma infância difícil, mas por algum motivo, que nunca revelou, não se relacionava com seus pais. Eles não frequentavam sua casa. E ela, que era filha única, raramente ia à casa deles, apesar de religiosamente mandar dinheiro para os dois. A família, é lógico, criticava:





– Ela é fria. Nem a nossa neta traz aqui – reclamava sua mãe. – Parece que tem vergonha da gente – completava.





E Isadora tinha. O casal de idosos eram muito humilde para a vida que tinha proposto para ela. O lugar onde moravam – e onde ela cresceu, em Sapopemba, – seus modos ríspidos e pouco estudo não combinavam com o mundo que ela buscava. Então, os mantinha afastados e se irritava quando eles protestavam.





– Não falta nada para eles! – dizia, a quem lhe perguntava sobre os dois.





Mas a vida sempre pode fazer os planos perfeitos da gente se desmanchar. E foi o que ocorreu. Com 14 anos, Gabriela, filha de Isadora teve um tipo raro de leucemia e caiu de cama. Ela precisava de um transplante de medula. Mas o dinheiro de Isadora e o marido não comprava a cura – uma medula compatível, cuja a chance de encontrar fora da família era de uma para um milhão.





Foi só então que Isadora buscou os parentes. Todos fizeram o teste e ninguém era compatível. Mas seu pai, Juarez, teve uma ideia. Bem relacionado no bairro, passou a bater na porta dos conhecidos explicando o caso e pedindo para que fizessem o teste. A cada família, ele pedia mais indicações. Vários aceitaram. Foi um trabalho que durou meses, mas Juarez era incansável. Até que encontrou Jorginho. Filho de um varredor de rua, o garoto semianalfabeto tinha acabado de sair da Febem e aceitou fazer o teste mais por curiosidade do que por solidariedade. E ele era compatível.





Gabriela sobreviveu e hoje Jorginho e ela são grandes amigos. Isadora nunca mais se afastou dos pais. E ela nem lembra mais que um dia quis ter uma “vida perfeita”.

03/10/2010 DE CARA COM a amante

O lugar dava medo. Ficava em uma sobreloja, com acesso por uma escadaria estreita. Na meia luz do salão, Lourdes perguntou para a mulher da recepção se Zilda estava.




– Quem quer falar com ela?





– Diga que é a Lurdinha, uma amiga do bairro onde ela morava até o ano passado. Preciso muito falar com ela.





– Espera aqui, então.





Lourdes ficou observando o salão. Havia um sofá vermelho encardido em um canto da sala. Nele, um homem gordo tinha no colo uma moça bem mais moça, que usava um top e uma minissaia. Ela tinha idade para ser filha dele. Cortinas pesadas, de feltro azul escuro com enfeites dourados, fechavam as janelas. O lugar cheirava a cigarro e bebida. Tudo era muito pior do que ela imaginava ser um prostíbulo.





Poucos minutos se passaram quando a mulher que a atendeu voltou.





– A Zilda disse que você pode entrar. É o segundo quarto. Mas não demora muito.





Lourdes encontrou Zilda na cama meio dopada, mas com um olhar curioso.





– Afinal, o que você faz aqui? – perguntou.





Lourdes ainda estava atordoada com os últimos acontecimentos, mas só tinha uma certeza: queria arrancar de Zilda a verdade. Saber se ela era mesmo a amante de seu marido, como tinham lhe dito horas atrás. A notícia havia feito ela descobrir onde Zilda estava e, sem pensar muito nas consequências, já de noite, a tinha levado até o prostíbulo, que ficava em um bairro perigoso. Por isso, não queria fazer escândalo. Então, começou a improvisar uma história. E, conforme Zilda ouvia as palavras de sua inusitada visita, ficava mais vermelha. Lourdes disse:





– Oi, Zilda você lembra de mim, não é? Eu sou a mulher do Olavo. Eu estou aqui na mais santa paz. É que é uma emergência. É o seguinte: o Olavo morreu. É chato eu vir aqui te contar isso, porque sei que vocês eram amantes. Sabe, a gente era um casal aberto, ele me contava de você.





Nessa hora, Zilda reagiu.





– Do que você está falando, mulher? Quem é esse Olavo?





– Meu marido! Seu amante! Eu sei que ele comprou um apartamento pra você. Mas ele morreu e eu preciso de uns documentos dele. Mas não achei em lugar nenhum e achei que podiam estar no seu apartamento... aquele que ele te deu.





– Eu não tenho nenhum amante! Bem que queria ter um. Você é louca?





– Jura que não tem nada com ele, com o Olavo?





– Posso ser puta, mas não sou burra. Se tivesse um homem que me sustentasse não ia estar aqui, neste pardieiro. Mas ele tá morto?? Coitado!





Lourdes começou a chorar. Acabara de descobrir que o marido era fiel. Abraçou a puta e começou a agradecê-la.





– Ele não morreu. Eu é que inventei essa história pra você confessar. É que chegou no meu ouvido hoje que vocês eram amantes. Tinha que tirar a limpo. E eu dei um jeito de te achar. Fui na casa da sua antiga inquilina, que me disse onde você morava agora. É isso. Obrigada, obrigada!!





– Mas quem disse que eu e ele éramos amantes?





– A Fátima, uma portuguesa lá da rua. Você lembra?





– Já entendi tudo! A gente era amiga. E agora lembro quem é o seu marido. É o bonitão que ela vivia falando. Mas ficou com raiva dele porque nunca, nunca mesmo olhou para ela. E eu também briguei com a Fátima por causa de uns clientes. Essa fofoca foi vingança: mulher rejeitada sabe ser bem vingativa.

19/09/2010 - Sebastiana Aparecida

SEBASTIANA APARECIDA Sebastiana Aparecida era o seu nome. E ela o odiava. Desde menina, acostumara-se a ser chamada por apelidos. Os de casa a chamavam de Tiana. Para os de fora, ela era Cidinha ou simplesmente Diana, como a “Diana” cantada na música de Jerry Adriani, que estava na moda naqueles anos 1960.




Quando moça, era com um certo orgulho que ela ouvia os rapazes da escola cantarem em coro para ela: “Não se esqueças, meu amor, que quem mais te amou fui eu. Sempre foi o teu calor, que minh’alma aqueceu. E no sonho para dois, viveremos a cantar. A cantar o amor, Diana...”





E de tanto a chamarem de Diana, ela às vezes até esquecia que se chamava Sebastiana Aparecida. Cada vez mais se identificava como Diana e se sentia contrariada quando alguém citava seu nome verdadeiro. Morria de vergonha da Sebastiana Aparecida.





Como toda moça na sua idade, chegou um dia a sua vez de se apaixonar. Nelson era o nome dele. Rapaz claro, alto, bonito, de boa família. Ele também se apaixonou por ela. Já namoravam há quase um ano quando ele começou a falar em casamento.





Foi só então que Diana se deu conta que Nelson não sabia o seu nome verdadeiro. A moça caiu em desespero. Decidiu revelar a verdade, mas não tinha ideia de como fazer. Ele ia ter vergonha dela? Ia achar que ela havia mentido para ele? O nome seria motivo para ele desistir do noivado? A moça vivia nesse drama pessoal quando, num certo dia, acordou decidida a contar a verdade. Foi com toda a seriedade que ela começou a conversa, sentada com ele no sofá da sala de sua casa.





– Nelson, preciso falar uma coisa muito importante para você.





– O que foi Diana? Pode falar.





– Olha, Nelson, queria te dizer uma coisa que eu nunca tive coragem de contar, mas agora, como nosso namoro está mais firme, acho que tenho que falar.





O moço começou a ficar preocupado. Afinal, que segredo era esse?





– Ora Diana, fala logo. O que é?





– É que eu estou com muita vergonha de contar... Olha, deixa pra lá, falo outro dia.





Diana suava frio e Nelson já imaginava coisas. Será que ela não gostava dele? Será que Diana tinha outro? Será que já tinha tido outro?! E, pior, será que ela não era mais virgem?





Nelson já estava nervoso, com o rosto vermelho e ansioso para saber do que se tratava. Então, ele insistiu mais uma vez, quase brigando com ela para que falasse:





– Diga logo, Diana, o que é, pelo amor de Deus. Começou a falar, termina criatura!





Diana percebeu pelo olhar do namorado o que ele pensava, sua desconfiança. E viu que confusão poderia estar criando se não contasse a verdade. Então, ainda sem coragem de falar, pegou sua identidade, jogou para ele e saiu correndo para o seu quarto.





Nem um minuto depois, Diana escutou uma gargalhada vindo da sala. Saiu devagar do quarto e viu que Nelson mal conseguia falar. Chorava de tanto rir.





– Era esse o segredo?! Sebastiana Aparecida!!!! – caindo de novo na risada.





Naquele dia não teve namoro. Diana ficou furiosa e o mandou embora.





– O que é, está achando graça do meu nome?!





Mas é lógico que Nelson voltou no dia seguinte. Casaram-se, tiveram três filhos e são felizes até hoje.

12/09/2010 - Surpresa de aniversário

SURPRESA DE ANIVERSÁRIO Eunice tinha 60 quando entrou, pela primeira vez, em um sex shop. Mas era por uma causa nobre. Ela havia pensado muito antes de decidir qual presente daria para a filha mais velha, que faria 40 anos. Eunice queria algo especial, que a filha nunca esquecesse e que também fosse útil. Carmem estava separada e sem namorado há três anos. Então, Eunice sabia exatamente do que ela precisava.


– Boa tarde – disse ela alegremente para a atendente da loja, que a observava curiosa – e continuou:



– Eu quero um consolo para a minha filha que faz aniversário. Mas um bem bonito. Ela está há um tempão sozinha.





Era a primeira vez que a moça atendia uma mãe que queria comprar um vibrador para a filha. Ela saiu rindo e foi buscar no estoque os modelos mais caros que vendia na loja. Eunice pegava todos na mão e observava atenta cada detalhe. Tamanho, cor, textura, vibração, detalhes.





– Escuta, estes parecem ótimos, mas são muito artificiais e bonitos. Mas minha filha tem como fantasia transar com um homem negro e forte. Você não tem nenhum modelo assim, mais real?





A atendente saiu de novo e voltou com uma prótese bem escura.



– Ah, não, assim é muito escuro. Não tem um mais café com leite? Tipo mulato?



E lá foi a moça procurar o modelo certo.



– Mas este não faz um movimento? Preciso saber se funciona direito. Não vou ter como trocar se der defeito.





Munida de pilha, a atendente ligou o aparelho.



– Ah, agora sim. Este é perfeito. Você pode embrulhar para presente?





O dia seguinte era o aniversário de Carmem. Eunice chegou cedo à casa dela. À noite, haveria uma festinha lá e Eunice tinha prometido ajudar a organizar a recepção.



Antes de dar o presente, Eunice quis ter certeza de que o neto não estava por perto e tirou o presente da sacola.



– É para você, minha filha.



A moça começou a desembrulhar.



– Ah, mãe, eu não acredito...



Eunice achou que a filha ia ficar brava com a brincadeira. Afinal, Carmem era mais séria que a mãe. Mas, a filha ficou emocionada – adorou o presente. Tanto que, na hora da festa, ela dizia para as amigas.



– Tenho um namorado novo. Quer conhecer?

05/9/2010 - amante Paraguaio

amante paraguaio O romance parecia que ia engatar. Lina conheceu Gustavo em uma festa. Os olhares se cruzaram no meio da pista e quando os dois se aproximaram para conversar, as amigas (sempre as amigas) decretaram que iam embora. Lina não se intimidou. Entregou a ele um cartão e recebeu no rosto um beijinho. Na mesma noite, o moço ligou:




– Olá! Como está? Sou Gustavo. Você me entregou seu cartão agora, na festa...





Lina logo percebeu o sotaque e imaginou que ele era argentino. Marcaram de sair na sábado, um jantar perto da casa dela. No restaurante, Gustavo contou sua história. Era paraguaio, estava no Brasil a trabalho, gostava de comida italiana e de boa música. Tudo entre os dois convergia. Lina ficou encantada. Só ficou com medo de uma coisa: confessar que era fumante. “Vai que o bofe não gosta. Ele parece tão certinho”, pensou.





Na segunda, ele ligou de novo, tinha ingressos para um show de jazz naquela noite. Lina topou. Depois da apresentação, ela o convidou para um café no seu apartamento...





– Foi tudo de bom! Perfeito. Só fiquei preocupada porque, depois do sexo, não aguentei e fumei um cigarro. Mas, no dia seguinte, cadê o paraguaio? Lina mandou mensagem, e nada. Ligou no celular e o aparelho estava desligado.





Frustrada, ela parou de insistir. Mas ficou com a consciência pesada. “Foi aquele cigarro. Quando ele me viu acendendo, fez uma cara de horror”.





Mas ainda bem que a vida passa. Dois anos depois, estava Lina com uma amiga em um outro show de jazz. De repente, a amiga diz:





– Olha lá o meu amigo chileno!





Quando Lina se volta, quem é o chileno? Gustavo, o paraguaio que sumiu do mapa.





O rapaz ficou bem desconcertado.





– Olá, com está? – perguntou, com o seu velho e bom portunhol.





Ela decidiu esnobar.





– Oi, há quanto tempo... Mas, como é mesmo o seu nome? Desculpe, eu esqueci.





Enquanto o rapaz voltava ao bar para pegar uma bebida, Lina se apressou paraa contar a amiga.





– Eu sai com este cara e ele sumiu. Disse pra mim que era paraguaio e não chileno.





– Eu também sai com ele e o cara também sumiu. Mas hoje ligou e disse que tinha ido ver os pais no Chile. A mãe está doente. Me disse que só estudava aqui no Brasil.





O cara um mentiroso profissional. Lina ficou com tanta raiva que precisou fumar um cigarro. Saiu para o fumódromo e lá estava ele.





– Mas, você fuma?





– É, só unzinho de vez em quando!

29/08/2010 - meninas de família

meninas de família O traficante do bairro não se contentava em passar as drogas e ficar na dele. Achando que tinha costas quentes por causa da “profissão” e dos “chefões”, Cabelão insistia em aterrorizar a vida da mocinhas da comunidade. Gostava daquelas que pareciam mais sérias. Os colegas bem que avisaram:




– Você ainda vai se dar mal – diziam.



Mas ele não se importava. Sua primeira investida foi contra Sueli. Garota estudiosa, pai operário, mãe dona de casa, daquelas que não deixa os filhos sozinhos... mas Cabelão queria namorá-la. Ficava horas na frente da casa da família analisando os passos da menina-moça. Ela percebeu, reclamou com os pais, mas decidiram não fazer nada. Um dia, porém, enquanto ela ia até uma vizinha, Cabelão a abordou com um presente:





– É pra você. Quero você, entendeu? – disse.





Sueli era forte e tinha uns 16 anos. A raiva foi tanta e a reação tão instintiva que ela até hoje não sabe explicar. Mas o que se viu foi um homem apanhando de uma moça no meio da rua até desmaiar. E, ao contrário do que todos pensavam, os colegas da boca não correram para defendê-lo.





– A gente já tinha avisado pra ele não se meter com menina de família aqui do bairro. Pode deixar, moça, que ele não vai mais te encher, eu garanto – Foi a resposta que Sueli ouviu quando, depois da surra, decidiu ir conversar com o “chefe” de Cabelão. É que ela não queria ficar fugindo ou se escondendo dentro do seu próprio bairro.





Os anos se passaram, Sueli ia se casar quando Cabelão tentou outra investida. Bêbado, foi convencê-la a mudar de ideia levando debaixo do braço um pacote de dinheiro vivo. Não deu certo. Ela e o resto da família botaram o bandido pra correr. E ela se casou e só então saiu do bairro.





Mas Cabelão continuou por ali. E logo encontrou uma nova amada. Era Gabriela, a filha de 14 anos de um açougueiro. Primeiro, ele tentou agarrá-la na saída da escola. Ela correu e contou para o pai. O homem passou a segui-la. Até que numa tarde flagrou o bandido no momento de um novo ataque à filha. O açougueiro puxou um facão e matou Cabelão. E a Justiça inocentou o homem: foi em defesa da honra da filha.





Mas o açougueiro morria de medo de voltar para casa e virar vítima de uma vingança da quadrilha. Foi então que bateram na porta de Sueli.





– Eu sei que você não mora mais no bairro, mas podia ir lá falar com o “chefão”? Meu pai está com medo de voltar pra lá. E me contaram que você nunca teve medo dos bandidos.





Lá foi Sueli enfrentar o manda-chuva de novo:





– Tranquila menina. O Cabelão não tinha jeito. Cansou de ser avisado que com você e Gabriela, meninas de família, malandro não pode mexer. Diz pro açougueiro voltar, porque não aguento mais ir longe quando quero fazer um churrasco.

22/08/2010 - o experimento

o experimento “Uma mulher que só amou uma vez na vida!”


Era assim que Sueli se autodefinia. Ela era apaixonada por Edmar. Desde a primeira que o viu, há mais de 15 anos, sabia que ele era “o cara”. Mas não era um romance fácil. Como num enredo de novela, era um relacionamento repleto de desencontros. Brigas, rompimentos que duravam meses e reconciliações emocionadas eram rotina. Beirando os 30, Sueli estava cansada de tantas idas e vindas.





Desde o último rompimento com Edmar já haviam se passado seis meses. Desta vez, ela não pretendia ceder ao retorno. Sabia que ele sempre se virava com outras. Aliás, normalmente, era esse o motivo das brigas dos dois: o seu eterno amor estava sempre envolvido com mais alguém. Então, Sueli decidiu: também queria mais. E saiu à caça com um discurso na ponta da língua:





– Quero fazer como os homens. Sempre achei que só conseguiria transar com alguém por amor. Aliás, dizem isso das mulheres, que nós só nos relacionamos quando estamos apaixonadas. Mas chega! Quero transar sem compromisso, sem me envolver. Chega de paixão! Viva a Samantha!!





Samantha é a personagem do seriado “Sex and the City” que evita se envolver com quem transa.





A busca de Sueli durou pouco. No happy hour de uma quinta-feira ela conheceu Bob, um homem bonito e boa pinta. A atração foi recíproca. Três chopps e meia hora de conversa depois, os dois já estavam se pegando. Pareciam adolescentes.





Naquela noite, Sueli ainda se fez de difícil. Na verdade, precisava depilar. Mas, no sábado, estava pronta para completar o que chamou de “o experimento”: transar só pela atração física.





O encontro foi no meio da tarde, em um café na Paulista. De lá, foram para o apartamento de Bob, na Vila Mariana. Estava tão excitada que nem precisou de preliminares. Quando saiu de lá, quase meia-noite, estava nas nuvens.





– Satisfeita, eu diria. Mas o melhor foi o dia seguinte. Nada de suspiros, nem um pouco de saudades. O experimento foi perfeito. Não tem aqui nenhum resquício de afeto! – falava em tom de vitória, colocando a mão no coração.





Nem uma semana depois, a velha paixão volta a procurá-la. Edmar estava com saudades. Ele também estranhou o fato de Sueli, naqueles seis meses, não ter feito nenhum movimento para encontrá-lo. Só de ouvir a voz do ex, Sueli estremeceu. “É meu amor”, pensou. Marcaram um jantar, ele foi pegá-la em casa e levou flores. Na volta, ele entrou para mais uma taça de vinho e para todo o resto que eles desejavam. De novo, Sueli foi às nuvens.





– E a qual conclusão você chegou depois do seu experimento? Qual sexo foi melhor?





– Os dois foram ótimos. Mas, o que eu conclui é que, com amor, além de satisfeita, no final, a gente fica mesmo é muito, mas muito mais feliz!

15/08/2010 - direto ao ponto

direto ao ponto Às quartas, o salão do centro espírita nunca estava cheio. Por isso, Lucimara estranhou quando justo naquela quarta, quando ela faria o seu primeiro atendimento no local, o número de pessoas era tão acima do esperado. Parou na porta e pensou, sinceramente, em fugir dali. Mas seus guias já a haviam advertido que, quando ela começasse a atender, a permitir que eles lhe inspirassem para ajudar outras pessoas, tudo em sua vida mudaria para melhor. E também disseram que o primeiro atendimento seria marcante. E assim, parada na porta, refletindo sobre o que faria em seguida, que ela avistou “ele” no meio da multidão.




– Foi como se um feixe de luz só iluminasse ele no meio de um palco. Deixei de “ver” as outras pessoas. E ele também parou para me olhar.





Lucimara estremeceu e se apressou para entrar. Foi para a área reservada, trocou de roupa, rezou e se concentrou para o novo trabalho. Deveria estar com a cabeça livre dos seus próprios problemas e sintonizada com o alto para captar os bons fluidos e conseguir captar o que os seus mentores lhe inspirassem. Estava convicta: tinha que ajudar as pessoas. Mas, quando seu primero “paciente” foi o homem que lhe chamou a atenção no meio da multidão, Lucimara pensou que seus guias estavam brincando. Gilberto era o seu nome.





– Só pode ser uma provação – pensou.





Com um esforço sobre-humano, ela se concentrou e até que conseguiu dar bons conselhos a Gilberto para o rapaz. Soube logo que ele era casado e que o casamento não ia lá muito bem – a esposa o evitava. “Ouviu” de seus mentores que deveria ter paciência e não se separar. Ele se foi agradecido e ela ficou aliviada. Tinha sobrevivido.





Na quarta seguinte, lá estavam os dois de novo no centro. Os olhares se cruzando e ela vibrando por dentro, só lembrou ao final da sessão de agradecer a Deus porque ele não calhou de se consultar com ela de novo. Mas, do lado de fora, lá estava Gilberto, a esperando. A acompanhou até o ponto, disse que tinha se simpatizado muito por ela, pediu seu telefone. Lucimara gostou.





Naquela semana, Gilberto lhe ligou e convidou para um café, depois do trabalho. Num restaurante discreto, já na mesa, ele foi direto ao ponto:





– Sabe, assim que te vi, me encantei. Mas sou casado, tenho filhos, minha mulher é doente e não vou largá-la. Mas preciso de alguém para conversar, trocar carinho, transar. Alguém que fique só comigo. Eu não vou ter outra pessoa. Você aceita?





Lucimara não pensou duas vezes. Conversaram umas duas horas e, depois, foram direto para um motel. Nem sei quanto tempo vivem assim. Só sei que quando o e-mail dele chega perguntando “Você pode hoje?”, minha amiga sai mais cedo do trabalho e volta deslumbrante no dia seguinte. E nunca, nunca mesmo é numa quarta-feira.

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Coração negro

Ela não imaginava que ganharia um presente daquele. Dentro da caixinha de madeira, um anel com uma pedra negra, escondido entre chocolate:

— É o meu coração — disse Álvares. — Para você tomar conta.

Eliza quase parou de respirar. Seu próprio coração batia tão forte que ela teve a impressão de que ele podia ouvir.

Ela não sabia o que responder. Talvez porque estivesse apaixonada, talvez porque o tenha reencontrado num momento muito solitário da vida, ou talvez porque era dezembro, perto do Natal, período mágico do ano em que a maior parte das pessoas está mais sensível.

Mais certo ter sido a conjunção de todas essas coisas que a fez realmente acreditar que tinha um coração para cuidar. Sentiu o peso bom daquela responsabilidade. E a confiança total naquele amor.

Então, colocou o anel no dedo e decidiu que não o tiraria tão cedo. Aquele coração-anel de ônix negro passaria a valer para ela muito mais do que um diamante.

Começou o ano exultante. Pena que não poderiam passar o 1º de janeiro juntos. Ela tinha marcado uma viagem com os pais. Mas, com o anel no dedo, se sentia protegida, poderosa e junto dele, mesmo distante por alguns dias.

No retorno do feriadão, estava explodindo de saudades. Mas um sentimento ruim se apossou dela após telefonar para ele pra dizer um “oi, voltei”.

A voz de Álvares não era a mesma. Estava carregada de uma disfarçada e irritante indiferença.

— Você nem ligou no Ano Novo! — ele disse.

— Não dava pra te ligar de onde eu estava — ela explicou.

— Olha, eu até arrumei uma namoradinha!

Álvares caiu do pedestal. Como era possível alguém, em menos de um mês, trocar de amor com tanta rapidez. Ele percebeu o choque.

— Não, boba, é só provocação — emendou.

Ela aceitou, mas não acreditou. A brincadeira doeu demais. E foi o primeiro passo do afastamento que se seguiu.

Instintivamente, o anel saiu do dedo. Virou pingente, sempre entre seus seios.

Depois, ela descobriu que a namoradinha tinha sido verdadeira. E vieram as brigas. Eliza não reconhecia mais o cara do Natal, mas continuava apaixonada, carregando aquele coração cada vez mais pesado.

Até que numa manhã o anel caiu no chão e rachou. Ficou ali um risco gravado no meio da pedra lisa, que mais parecia um sinal tenebroso. Álvares ainda tentou minimizar o fato.

— Rachou, mas não quebrou. É sinal que é forte... Este amor é forte! — insistiu.

— Só que eu não quero nada assim, trincado. E, do jeito que vamos, no próximo tombo, ele vai ficar é bem espatifado.

Publicada na Diário DEZ! em 21 de setembro de 2008

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Assunto de família

Eles não aguentavam mais a monotonia de suas vidas. Então, decidiram ser amantes.

Pelo menos três vezes por semana, Ricardo frequentava a casa de Hercília, sempre às tardes. Ele entrava pelos fundos e ela sintonizava um programa vespertino na TV, aumentando o volume. E se jogavam na cama do quarto.

E assim foram tocando o seu romance secreto, durante dois anos. Aos domingos, se a família se reunia na casa dos sogros deles, os dois mantinham distância. Na mesa onde sempre sentavam mais de dez parentes, Hercília escolhia o lado do marido, Marcos, ou de um dos filhos, enquanto Ricardo ficava solícito ao lado da mulher, Matilde.

Marcos e Matilde eram irmãos. Ricardo e Hercília, cunhados.

No início do ano, Hercília passara por uma fase feliz. O marido tinha ido viajar por alguns meses. Mas, o que ela não esperava era que o filho mais velho precisaria voltar mais cedo para casa, sem avisar. E o rapaz flagrou a mãe com tio na cama.

Foi um perereco. O rapaz foi direto para a casa dos avós desabafar sua indignação e desespero. A família toda foi convocada. Pais, irmãos, tios, filhos e sobrinhos dos dois casais se reuniram para debater o caso e o futuro dos traidores.

Mas Hercília mantinha a altivez e a razão que a paixão lhe conferiam. Disse que foi sem querer, que não contaram antes por falta de coragem.

— Sinto muito, mas vocês têm que entender. Foi sem querer — pediu, sem perceber que todos sabiam que aquilo não terminaria sem o flagrante.

Ricardo não estava muito convicto, mas, acuado, anunciou a sua separação. Matilde só chorava. E o resto da família defendia Marcos, o ausente.

O veredicto foi que Hercília deveria sair da casa do marido e Ricardo, da casa da mulher. Não havia mais o que falar. Qualquer palavra era um insulto. E Hercília e Ricardo se foram. Quando fecharam a porta, um silêncio de morte tomou conta da casa. Então o interfone tocou e, do outro lado da linha, a Hercília falou para o primeiro que atendeu:

— Oi. Pede pro meu filho trazer aqui no portão os meus óculos que ficaram aí?

— Ela esqueceu os óculos aqui — alguém disse.

Todos se entreolharam e nos seus lábios sorrisos sarcátiscos se desenharam. E várias mãos voaram para pegar a armação na mesa:

— Óculos, nem vi! — falou Manuela, a irmã mais nova de Matilde, enquanto o acessório deslizava de suas mãos para o chão e era espatifado com uma pisada.

— Será que é esse aqui? — perguntou Matilde, firmando a ponta da bota na lente de dois graus. — Filipe, leva lá pra sua mãe. Diga que é uma pena, mas a gente não viu e, sem querer, pisou nele.

Publicado na Diário DEZ em 14 de setembro de 2008

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Milagres acontecem

Yone não conseguia explicar ao certo o porquê, mas se emocionou desde o primeiro dia em que a viu. Médica pediatra especialista em problemas gástricos, ela estava acostumada a atender crianças com saúde debilitada. Mas, quando Luísa e sua mãe foram ao seu consultório, ela se sentiu estranhamente tocada. Pediu exames e, ao receber os resultados, ficou ainda mais impressionada:

— O que ela sofria provocaria em qualquer pessoa uma dor muito intensa. Mas a menina nunca chorava. Só tinha expressão de dor.

Luísa estava com 2 anos, mas não se desenvolvia como as demais crianças. Com um problema mental severo, ela tinha reações de um bebê de 3 meses. Também havia adquirido um refluxo crônico e, por causa disso, sofria com várias irritações no seu aparelho digestivo. De tempos em tempos, a menina tinha crises e não conseguia comer. Nestes períodos, a família era obrigada a interná-la para que não desidratasse. Ela podia morrer em casa. Mas a pequena nunca chorava.

Médica experiente, Yone sabia que o mal da garotinha era raro e muito difícil de tratar. Curá-la, então, impossível. Na conversa que deveria ter com a mãe para dar o diagnóstico, pensou: “Devo ser honesta. Ela não vai sobreviver muito tempo”.

Cara a cara com a mãe, porém, teve que engolir o nó na garganta que quase a fez chorar. E disse:

— Vamos tratá-la da melhor forma possível. O caso é complicado, mas a gente nunca pode deixar de acreditar que milagres acontecem.

Yone sentiu o olhar admirado da mãe de Luísa atravessá-la. Acostumada a lidar com médicos, a mulher se surpreendeu com aquele “milagres acontecem”, que não tinha nada a ver com a racionalidade dos doutores que conhecia. Yone também se assustou. Não era religiosa e sentia como se não fosse ela quem tivesse dito aquilo.

O tempo passou e as crises da menina foram rareando. Luísa ganhou peso e novas expressões. Após alguns meses, outros exames mostraram que as irritações haviam desaparecido. Comendo normalmente, a menina parecia mais feliz. Não tinha mais expressão de dor e passou a sorrir.

Mas Luísa tinha mesmo um problema grave e qualquer doença simples podia derrubá-la. Foi o que ocorreu. Uma infecção de garganta comum a toda criança, com uma febre de mais de 40 graus, a fez voltar às crises do dia para a noite e ela não resistiu. Morreu numa tarde de primavera.

Yone não se conformou. E, então, foi a mãe da menina quem lhe explicou o que aconteceu.

— A senhora disse que a gente tinha que acreditar em milagres. E ele aconteceu, não percebe? O milagre foi Luísa ter vivido tão bem e feliz neste final de vida que ainda tinha neste mundo.

Publicado na Diário DEZ em 07 de setembro de 2008

domingo, 3 de julho de 2011

Trabalho estável

Todos os dias, sem falta, lá pelo fim da tarde, Priscila e Ronaldo chegavam juntos para trabalhar. Vinham de carro e estacionavam no mesmo lugar: na esquina da rua, muito próximo ao portão da garagem de minha casa.

Priscila descia vestida discretamente: geralmente de calça jeans e camiseta, cabelo preso num coque ou num rabo de cavalo. Já ele usava seu uniforme de guarda noturno preto, impecável e bem passado.

Como eu costumava ler neste horário, sentada na varanda, o casal já me conhecia e nunca deixava de me cumprimentar: “Boa tarde!”, diziam, e seguiam rua abaixo, mãos dadas, como namorados.

Às vezes, davam uma paradinha para passar a mão na cabeça da cadela ou perguntar se podiam pegar uma muda de uma planta.

Um dia, Ronaldo comentou:

— A gente vem trabalhar e deixa o carro aqui porque parece mais seguro. Você não se importa, né?

— Claro que não — respondi com pressa, sem querer esticar a conversa.

A rotina era sempre a mesma: os dois voltavam logo depois de amanhecer para pegar o carro e partir.

Eu morava num bairro central. Área que um dia havia sido industrial, mas que, naquela época, era decadente. Fábricas tinham se mudado, havia muitos galpões fechados e poucas casas habitadas.

Pelo bordado no uniforme, descobri que Ronaldo trabalhava em uma das poucas empresas ainda em atividade.

Um dia, voltando de uma festa tarde da noite, o vi ao lado da guarita, tomando um café de garrafa térmica. A fábrica ficava a uns dois quarteirões de casa.

Mas e Priscila, o que fazia?

Comecei a ficar curiosa quando percebi que, em seis meses, a vida financeira do casal parecia melhorar. Primeiro tinham uma velha Variant verde oliva, fabricada na década de 70. Em seis meses, trocaram de carro duas vezes. E o último era zero quilômetro.

Priscila começou a chamar a minha atenção: cada dia estava mais bonita e vestia roupas melhores. Morando onde eu morava, não foi difícil matar a charada. Parte do meu bairro também tinha se transformado em área de prostituição. Boates e casas de stripers faziam muito sucesso por lá. As moças ficavam nas ruas, buscando os clientes nos carros.

Uma noite, quando eu olhei melhor no rosto de uma delas, descobri Priscila. Estava com peruca ruiva, um biquíni minúsculo, uma blusa transparente por cima e uma sandália plataforma. Era hostness de uma das melhores boates do bairro.

Numa bela tarde, Priscila chegou só, dirigindo o próprio carro. Desceu como sempre discreta e, quando me viu, cumprimentou. A cadela tinha dado filhotes e ela parou para ver a ninhada:

— E o Ronaldo? Não vem hoje? — perguntei.

— Ele não vem mais, foi mandado embora. Mas, tudo bem. Disse a ele para ficar em casa e cuidar das crianças, não se preocupar tanto. O que eu ganho dá bem pra sustentar a família toda e ainda sobra.


Publicado na Diário DEZ em 31 de agosto de 2008 

quinta-feira, 30 de junho de 2011

08/08/2010 Quarto e cozinha

quarto e Cozinha Diana parou o carro em frente ao portão enferrujado e tentou não pensar no que estava prestes a fazer. Aquele lugar não tinha nenhum charme. Na verdade, era um sobrado modesto, em uma rua sem saída, na beira de uma favela. Diana só repetia para si mesma que Adriano, o homem que tinha conhecido há algumas horas, era lindo, insinuante, e que aquilo seria somente uma aventura, um momento, uma noite.


O “quarto e cozinha” onde Adriano morava ficava no fundo do terreno, que se elevava em um morro atrás do sobrado. Era o último puxadinho. Diana desceu do carro e olhou a escadaria disforme que margeava o imóvel – parecia não ter fim. Ociosa, com vários quilos a mais, estava pouco acostumada a exercícios. Sentiu-se como numa escalada no Himalaia quando galgou os degraus, puxada pelas mãos dele.

Várias portas saiam para esta escadaria, o que mostrava que a dona do imóvel (Diana imaginava que aquele tipo de projeto era coisa de mulher) tinha, ao longo do tempo, aumentado a construção com pequenos conjugados, para alugar. Dona de um duplex na Zona Sul, aquele era o lugar onde ela nunca imaginou estar um dia, ainda mais de madrugada. Mas, pensava, o motivo valeria a pena. Diana era pura excitação.





Quando chegou à “casa” de Adriano, estranhou que nem estava esbaforida. Respirou fundo e entrou com os olhos curiosos. Já que estava ali, decidiu “saborear” cada detalhe que visse, até para entender o melhor aquele homem com quem pretendia ver amanhecer o dia.







No cubículo, Adriano tinha tudo que um homem solteiro precisava. No espaço reduzido, ele mantinha uma organização que ela, nos seus 200 metros quadrados, nunca tinha conseguido sozinha. Na pia, nenhuma louça suja. Sobre a mesa, uma xícara e talheres limpos, prontos para o próximo café da manhã. No quarto, a cama de solteiro arrumada com lençóis brancos e perfumados e um cobertor dobrado nos pés. Tudo acolhedor.





E foi na cama que eles passaram o resto da madrugada, se amando de todas as maneiras que desejaram. Ela nem fez conta do espaço apertado.





Diana saiu de lá um pouco antes da aurora. Estava nas nuvens. Pegou seu carro importado e voltou para casa bem devagar. Mas não quis olhar para trás. Pensava que, apesar de a experiência ter sido ótima, não podia ser algo para se repetir. Ela e Adriano viviam em mundos muito diferentes.





Chegou em casa quase às 6h e sua família ainda dormia. Ninguém percebeu que tinha passado a noite toda fora. Tomou um banho quente e demorado e se deitou na sua cama king size. Dormiu umas duas horas, levantou num pulo, já atrasada para uma reunião que teria ainda pela manhã.





Nunca mais viu Adriano.

01/08/2010 Um justa partilha

UMA JUSTA PARTILHA Foi muito rápido que a paixão acabou. Depois de seis meses sem um poder ficar nem um dia longe do outro, eles, agora, pensavam em se separar. Estavam brigando e, por isso, nem na cama as coisas rolavam como antes. O maior entrave, porém, era a vida prática. Como montariam duas casas? De onde tirariam dinheiro para mobiliar de novo um outro apartamento?


Eles, de fato, tinham se precipitado. Jorge vivia no interior quando decidiu morar com Marcela, em outro estado. E levou o filho, que ele criava. Ela também tinha um filho, que recebia pensão. O sonho era construir a família que nunca tinham conseguido em relacionamentos anteriores.

Para mudar, Jorge largou seu trabalho e entregou sua casa com praticamente tudo o que tinha dentro. Além disso, como ia viver no apartamento dela, tinha gastado suas economias para comprar, principalmente, novos eletrodomésticos.

– Eu só tinha um tanquinho e sempre quis uma máquina de lavar. Então, decidimos dar o tanquinho e ele comprou uma lavadora moderna, daquelas que lavam e secam! – conta Marcela.

A chegada da máquina no apartamento de Marcela foi quase uma festa. O casal, ainda no auge da paixão, fez questão de comemorar com champanhe importada, degustada no jogo de taças também novo, um dos poucos presentes que tinham recebido logo que anunciaram para amigos e parentes que iam morar juntos.

Então, quando perceberam que até se gostavam, mas, sob o mesmo teto, com duas crianças, não se davam tão bem, foram os problemas práticos que mais os incomodaram. Como dividiriam as “tralhas”? Afinal, ele já tinha um trabalho novo e até conseguiria alugar e financiar parte de uma nova mobília, mas não dava para comprar tudo. E ela não tinha emprego fixo, vivia de bicos.

A situação, porém, já estava insustentável, e Jorge resolveu sair, com o principal que tinha levado – a máquina de lavar roupas. Ela ficou com o resto e, jura, sem rancores.

– As crianças brigavam muito. Não tinha jeito.

Mas, o problema das roupas para lavar poderia parecer brincadeira, mas para ela era muito sério. Não lavaria nada na mão. Então, entraram em um acordo que eu, particularmente, nunca vi.

– Eu lavo a roupa dela e do filho toda a semana. Quando ela não leva a sacola de roupas sujas no meu apartamento, eu passo no dela e pego. Mas, só tem um detalhe: o sabão em pó é ela quem compra – conta Jorge.

– E o resto das coisas, como ficaram? – eu quero saber.

– Ele queria levar o jogo de taças. Mas esse eu não dou. É meu. Então, quando a gente quer matar saudades, eu levo as taças. E, depois, trago de volta. É lógico...

25/07/2010 - Elisa ficou em paz

Elisa ficou EM PAZ Elisa estava arrasada. Tinha descido do prédio da repartição no meio da tarde para comer algo e acertar as ideias. Mas não conseguia ficar em paz. Apesar de se esforçar para se convencer que a sua decisão era a mais correta, estava chateada.


Sentada numa mesa no canto do seu boteco preferido, o garçom puxava conversa.

— A vida está difícil aí no seu trabalho, não é?

— É, Zé, está mesmo. Mas as coisas vão se ajeitar — ela tentava desconversar.

Estava faminta. O encontro na hora do almoço havia lhe cortado o apetite. E enquanto devorava o salgado mal assado, ela se lembrava da conversa que tinha enfrentado horas antes. Na hora de pagar a conta, o garçom de novo. Ele percebe no ar a distância da moça e pergunta:

— O que aconteceu, Elisa?

— Ah, Zé, tive um encontro na hora do almoço que acabou com o meu apetite.

Então, como se conseguisse perceber tudo no ar, o garçom disse, com olhar luminoso:

— Você viu o homem que você ama, é isso?

A moça ficou espantada com a ousadia. Como ele podia adivinhar? Será que ela estava dando bandeira? Fez um sim tímido com a cabeça e só.

Mas ele nem se importou. E exclamou com um ar feliz, carregado de sotaque nordestino:

— Eita, mas isso é muito bom! É muito bom!

E Zé, como quem sabe muito bem o que fala, começou a lhe dar conselhos de psicólogo.

— Olha, Elisa, se você viu o homem que ama, por que toda essa tristeza? Falou o que para ele?

— Terminei, Zé. E ele ficou lá, com cara de quem não tem o que fazer.

— Então, menina. Não tem que brigar. Se é o homem que ama, liga pra ele e diz isso. É só o que basta. Para de tristeza.

Então, Elisa percebeu o quanto era bizarra a sua a situação. Estava sentada em um boteco, recebendo conselhos de um garçom baiano que tinha idade para ser seu pai. E ele, com uma frase, tinha feito ela mudar de ideia sobre tudo que tinha falado há horas atrás — da boca do garçom, saiu a frase mais pacificadora do dia. Saiu de lá rindo por dentro, pegou o celular e ligou para a Álvares.

— Oi, sou eu. Só queria dizer mais uma coisa. Estou com saudades. E querendo ficar com você.

Aquela noite, Álvares e Elisa se amaram como nunca. Enfim, Elisa estava em paz.

18/07/2010 A sabedoria da tia-avó

07/18/2010 a sabedoria da tia-avó Meire deveria ter dado ouvidos à sua tia-avó. Mas, no auge dos seus 24 anos, achava que a opinião de uma velha viúva de 70 anos, mesmo sendo a pessoa mais avançada que conhecia, era uma grande bobagem. Afinal, seus pensamentos só podiam estar poluídos por preconceitos. A opinião da senhora sobre o novo namorado de Meire foi direta. Num domingo, quando a família estava reunida para o almoço, a tia quis saber o porquê de tanta felicidade da sua sobrinha preferida. — Estou namorando, tia. Ele é o máximo. Virá aqui hoje e vou apresentá-lo a todos. — Nossa, quero conhecer. Como ele é, quantos anos tem? Já estão pensando em casar? — Lógico que não, tia. Ele é 15 anos mais velho que eu e acabamos de nos conhecer. É um homem centrado, maduro. E já foi casado... três vezes. — Olha, minha filha, se já teve três mulheres, desiste logo porque é fria. A moça ficou desconcertada. Nunca tinha imaginado que a tia-avó tão moderna, que morou sem casar com um homem, que foi a primeira a fumar da família, que até pulou de paraquedas, pudesse ter uma opinião tão careta. Só podia ter regredido. Decidiu deixar pra lá. Naquele mesmo dia, a tia querida e o resto da família conheceram Carlos e todos se apaixonaram por ele. Ela e a tia não tocaram mais no assunto. Um ano depois, Meire e Carlos resolveram morar juntos. O casal era impecável. Daquele tipo que todos, amigos e parentes, dizem ser perfeito. Combinavam em gostos e opiniões. Nunca brigavam. Até sobre os filhos, que os dois tinham tido em relações anteriores, eles concordavam. A sintonia era tanta que apenas morar juntos não bastava. Resolveram casar, fazer festa, formalizar sua felicidade. Ela, relações públicas, e ele, administrador de empresas, montaram um belo apartamento na Vila Mariana. Ela levou a filha, que já tinha 7 anos. Ele montou um quarto para o filho, que estava com 9. A vida dos dois, aos olhos de quem via de fora, era perfeita. Mas, dentro de casa, a vida íntima do casal era cada vez mais tensa. Durante o namoro, Meire diz que não gostava de algumas manias de Carlos. Mas, apaixonada, achava que era coisa da cabeça dela. Hoje, se arrepende de ter deixado de lado sua intuição. — Quando íamos ao motel, eu não gostava, mas achava natural vê-lo sempre colocar a TV no canal de filmes adultos. Já tinha tido outros namorados que também gostavam. Mas um dia tivemos que mudar de quarto porque o canal pornô do nosso estava fora do ar. Ele fez um escândalo. Casada, Meire começou a perceber que o amor nunca tinha preliminares. Ela reclamava, mas Carlos não mudava. Depois do jantar, ele sempre ficava no computador. Quando ela se aproximava, percebia que estava em um site pornográfico. A situação passou a incomodá-la demais na medida que constatou que, imediatamente após desligar o computador, ele a procurava na cama, sem nenhum jogo de sedução para excitá-la. — E, depois do sexo, virava e dormia. Se eu gostei, ele nem queria saber — lembra. Foram dois anos de convivência. O “problema” a fez ficar doente e perder o emprego. Até que, numa reunião de família, reencontrou a velha tia-avó. A idosa era dona de uma ótima memória. Vendo a sobrinha tão abatida, quis saber: — Então, filha? Pelo jeito, já descobriu por que seu marido já se separou três vezes, não é?

11/07/2010 Loira e cheia de cachos

07/11/2010 loira e cheia de cachos Verônica entrou esbaforida na cozinha e gritou: — Mãe, descobri, mãe, eu descobri!!! A menina de 5 anos queria contar à mãe com urgência quem queria ser. Ou melhor, com quem queria parecer. Pegou a mãe pela mão e a puxou até a sala. Na TV, o filme da “Sessão da Tarde” era “A Queridinha do Vovô”. A personagem principal, Priscila, era vivida por Shirley Temple. Verônica até suspirava. — Ela é como eu te disse que quero ser, mãe, loirinha e de cabelos encaracolados. E também quero olhos bem verdes. E ter o nome dela: Priscila. Que lindo nome!! É melhor do que Verônica. A mãe da menina não aguentava mais aquela história. Ela entendia que Verônica estava na fase de ter fantasias, mas não conseguia evitar um certo incômodo com o sonho da filha. É que Verônica, assim como toda a família, era morena e tinha os cabelos pretos e bem lisos. Os olhos dela eram amendoados, de um castanho escuro brilhante. Um belo dia, porém, a menina começou a falar que queria ser mesmo loira encaracolada e parecia sofrer por ser diferente do que imaginava. Falava tanto e chegava a chorar quando diziam que era impossível. Assustados, os pais procuraram ajuda profissional. A psicóloga sugeriu que a família não desse tanta importância àquilo, e que também brincasse com a história, entrasse na fantasia, sempre mostrando para a filha que aquilo, como todos os outros faz-de-conta, tem um fim. A mãe, então, comprou uma peruca loira e cheia de cachos para Verônica e começou a chamá-la de Priscila em alguns momentos, sempre em tom de brincadeira. No começo, a menina curtiu a peruca como um novo brinquedo, mas conforme foi crescendo a cabeleira foi ficando de lado. Verônica, a garota morena e de olhos escuros, se transformou na adolescente mais bonita da rua e da escola. E a peruca loira e cheia de cachos — e toda a história que a envolvia — eram só motivo de boas risadas na família. Mas, se Verônica tinha alguma explosão de mau-humor, era de Priscila que a chamavam. Perto dos 17, Verônica se apaixonou pela primeira vez por um rapazote da mesma escola que ela. Precavida, a mãe sempre tentava levar o casalzinho para dentro da sua casa, mas o menino não gostava. A paixão seguiu por alguns meses, até o que o ano acabou e o garoto saiu da escola. Foi a deixa para o namoro acabar. Verônica parecia que ia morrer quando recebeu um e-mail dele, terminado tudo. Como chorou a garota! Mas, como toda jovem nesta fase, também se recuperou rápido. Em pouco mais de duas semanas, já estava se divertindo. E foi num passeio no shopping, com o grupo de amigas da escola, que ela encontrou o ex de mãos dadas com a nova namorada. O encontro foi tão inesperado que Verônica nem teve tempo de desviar o caminho, fingir que não os tinha visto. Ficaram os três frente a frente, e o garoto, então, teve de lhe apresentar a nova namorada: — Oi, Verônica, esta aqui é a Priscila — e ela era loira, com cachos lindos e olhos verdes. Verônica parou de respirar. Lembrou na mesma hora de Shirley Temple e da sua peruca loira jogada em algum canto dentro do guarda-roupas. Pediu desculpas e saiu correndo para casa. Entrou esbaforida na cozinha e gritou: — Mãe, descobri, mãe, eu descobri porque é que eu queria ser loira!!!

04/07/2010 Um corte preciso

07/04/2010 um corte preciso Não era por ciúmes que ela fazia aquilo. E nem por despeito. Era por raiva, pela mais pura e legítima raiva. A tesoura parecia se mover sozinha na sua mão, e deslizava pelas peças de roupa dele, seu marido, pais de seus dois filhos, o menor deles com apenas um mês de vida. Beatriz sentia seus peitos, antes repletos de leite, agora duros de pedras. Não conseguia amamentar. Era a consequência da raiva, do estresse pelo desrespeito com que Anselmo a estava tratando e à sua família. O marido havia saído no final da tarde de sexta para “jogar uma bola” com os amigos. Tarde da noite, ele ainda não tinha voltado. O celular estava “fora de área”. Primeiro, ela se preocupou de verdade, achou que Anselmo tinha sido sequestrado. Procurou os pais dele e todos passaram à noite praticamente em claro. Só no sábado que conseguiram, enfim, um contato pelo celular do rapaz, perto da hora do almoço. Foi a sogra quem falou. — Menina, você sabe que ele é um homem casado e acabou de ter um filho?!! — dizia a matrona para a mulher que havia atendido o telefone com voz sonolenta. Chorando, a sogra nem quis contar à nora o que mais ouviu. Não precisava. Beatriz já havia entendido tudo. Só lhe restava ficar sozinha, cuidar das crianças e esperar o reaparecimento do marido no conforto do apartamento bem montado, de 200 metros quadrados, à beira mar. Mas, após a segunda noite de solidão, sentiu o impulso. Não podia ficar indiferente. E lá estava a tesoura, pronta para dar cortes precisos. Primeiro, foram camisetas, cortadas como se tivessem sofrido uma cirurgia no peito. Depois as camisas, que perderam as faixas das casas e dos botões, além das golas. Em seguida, vieram as gravatas, colocadas uma ao lado da outra, no chão do quarto, e partidas ao meio. As bermudas perderam o zíper, as cuecas, a frente. Dos calçados, a tesoura arrancou as línguas. Até as peças que estavam para lavar e passar foram devidamente retalhadas. Nem os chinelos sobraram. Beatriz só dava uma trégua para a tesoura para alimentar e cuidar dos filhos. — Para cada ligação não atendida que eu dava para o celular dele, eu cortava uma coisa — lembra Beatriz, com um certo prazer. Destruído todo o guarda-roupas do marido, Beatriz partiu para os cristais, todos legítimos, usados com orgulho por Anselmo para servir os amigos. As taças viraram cacos pelo chão da sala de jantar. Então, ela se lembrou da coleção de carros em miniatura, a maioria deles comprados em viagens ao exterior. — Era uns 20 carrinhos. O maior xodó dele. Lancei todos, um a um, contra a parede. Só então, no fim da tarde de domingo, Anselmo apareceu, com uma cara tranquila, de cabelo molhado e cheiro de perfume barato de mulher. — Por que tanta ligação para meu celular? — quis saber, com um cinismo. Preparada para uma guerra, ela se refugiou no quarto das crianças. Antes, trancou o próprio closet. Ele esbravejou. Quase derrubou a porta. Mas, aos pouco, acabou dormindo. No dia seguinte, Anselmo vestiu as roupas do porteiro e foi às compras. Voltou com sacolas e mais sacolas de roupas para ele, mas também algumas peças novas — e lindas — para ela. Beatriz não entendeu. — Mas o que é isso? — É que, de verdade, desta vez, eu realmente vacilei.

27/06/2010 O primeiro baile

06/27/2010 o primeiro baile A escadaria à sua frente parecia monumental. De salto alto, Cibele tratou de subir cada degrau bem devagar, com medo de tropeçar e chamar a atenção. Já estava só, o que era o suficiente para se sentir constrangida. Não precisava de um desequilíbrio gratuito por causa de um degrau estúpido. Era seu primeiro baile. Tinha combinado ir com um casal de amigos que, na última hora, não pode comparecer. — Desculpe, Ci, mas a Belinha está com febre. Fica pra próxima — foi a desculpa da amiga. Cibele tinha duas opções: desistir do baile ou enfrentá-lo sozinha. Optou pela segunda. Antes, ligou para uma amiga, mais acostumada a ser descasada. — Abre um vinho e bebe uma taça antes de sair. Não, bebe duas — foi o conselho. — E não chega cedo e nem senta em mesa. Fica no bar, observando. Se tiver clima para ir para uma mesa sozinha, vai. Cibele bem que tentou cumprir as dicas à risca. Solene, abriu o vinho argentino que tinha em casa e sorveu uma taça. Mas, ansiosa do jeito que estava, quando viu, já tinha tomado a garrafa quase inteira. Cochilou um pouco no sofá enquanto a novela das oito passava e, quando acordou, olhou o relógio da parede e levantou num susto: — Deus, vou chegar tarde demais ao baile! Trocou-se rapidamente e colocou a sandália vermelha de salto, a mais bonita que tinha, sem nem se lembrar que não era a mais confortável. Maquiagem básica, chiclete de menta na bolsa, celular, batom e pronto. Estava cheia de coragem para enfrentar o baile sozinha. Pegou o carro e saiu com o mapa na mão. Seu carro não tinha GPS. Se perdeu um pouco e, quando achou o lugar, o estacionamento estava praticamente lotado. Mas ainda conseguiu vaga: “Por enquanto, tudo bem!”. Só lamentou a sandália que calçou quando viu a escadaria. Mas sentiu-se vitoriosa quando chegou ao topo. Ao entrar no salão, porém, o pânico voltou. Procurou o bar, mas ele não existia. Só mesas ao redor da pista, a maioria já ocupada por grupos de amigos e casais. Sorte que, aparentemente, ninguém reparava nela. Começou a andar displicentemente entre as mesas, como se estivesse procurando alguém. E, na verdade, estava. “Alguém conhecido, pelamordedeus!”, pensava. Até que, do outro lado do salão, lá estavam elas: algumas colegas da aula de dança, que tinham dito que não iam ao baile. — Não tinha o seu número para avisar que vínhamos! — disse Amélia, a mais divertida delas. Cibele respirou aliviada e pediu uma cerveja. De repente, avistou Gil, outro colega da escola. Já tinham flertado. Meio sem jeito, dançaram uma e depois mais uma. Para um primeiro baile, estava bom. Ela ainda nem dançava direito e o que mais queria de verdade logo viria. E naquela mesma noite.

20/06/2010 Morte no piscinão

06/20/2010 MORTE NO PISCINÃO Uma tarde tive de fazer a matéria sobre a morte de dois garotos na obra de um piscinão na periferia de São Paulo. Morreram afogados num dia de muito calor. Não é uma pauta agradável, mas era parte do meu trabalho. E lá fui eu. Cheguei à rua de um bairro pobre e feio onde os meninos moravam. A contragosto, bati na casa de um deles. Ninguém atendeu. Um vizinho disse que o corpo já estava no velório e que a família do outro garoto tinha ido viajar. “Que droga!”, pensei. Não queria ir a um enterro para conseguir a história. Mas não tinha alternativa. Cheguei à capela e, de longe, observei que boa parte das mulheres usava saias longas e cabelos compridos. Era uma família de evangélicos. Achei difícil conseguir conversar com eles, mas fui em frente. Tinha uma missão. Do lado de fora, perguntei a um homem com cara amistosa quem era da família. Solícito, ele me mostrou, ao lado do caixão, a mãe e o pai. O pai parecia mais tranquilo, então me aproximei dele. Disse o que estava fazendo ali. Esperava mesmo ser maltratada. Então, veio a primeira surpresa. Ele secou as lágrimas com uma manga da camisa e disse, com calma, mais como um pedido: — A senhora pode esperar um pouco? Eu vou falar, porque não quero que aconteça isso com mais ninguém. Fiquei envergonhada pela pré-avaliação, preconceituosa até. Com a consciência pesada, fiquei lá, observando o sofrimento daquelas pessoas. Quando acabou o enterro, o pai me convidou para ir até a casa dele. A mãe só me olhava, com uma tristeza imensa, misturada a uma compreensão assustadora. Não tinha nada da resistência que eu esperava. Voltando à casa, o casal começou a contar o que tinha acontecido: que o lugar do piscinão era uma antiga fazenda, que antes tinha um laguinho onde as crianças do bairro brincavam, que começou a obra e nada foi cercado ou sinalizado, que a obra parecia abandonada. Então, o pai propôs: — A senhora pode ir até lá? Eu mostro que não tem segurança nem aviso. É bem pertinho. A gente vai a pé. Conforme andávamos, mais e mais pessoas se juntavam atrás de nós, muitas delas crianças. Era uma multidão de gente simples, vestida com shorts e chinelos. Era mesmo muito perto. Virando a primeira esquina já começava uma estrada de terra e podíamos ver uma mata, em seguida um descampado e o lago do piscinão. O pai se aproximou e me mostrou onde os meninos costumavam mergulhar, contou como os corpos tinham sido encontrados, me apresentou o rapaz que tentou salvá-los. Sempre abraçado ou de mãos dadas com a mulher. De repente, ele diz a ela: — Olha, bem, a camiseta dele ainda está aqui. Aquilo parecia um trapo. Estava lá, na beira da lagoa, molhada e suja de barro. Mas a mãe pegou como se fosse uma relíquia. Talvez porque ainda estivesse anestesiada pelo impacto da morte tão recente, lidou com aquilo como se fosse normal. Parecia um peça de roupa do filho que ela devia cuidar, lavar e passar para depois ele usar de novo. Nenhuma lágrima. Nenhum grito. Nenhum lamento. Mas muita dignidade. Me emocionei. Já era hora de ir embora. No carro, enquanto voltava para a redação com a minha história, só sentia uma coisa esquisita no coração, um amargo na boca e uma admiração enorme por aquelas pessoas tão simples, tão crédulas e, naquele momento, tão fortes.

13/06/2010 Surpresa no elevador

06/13/2010 surpresa no elevador A velha senhora chorou como há anos não chorava, quando descobriu que Tadeu estivera lá várias vezes, no mesmo prédio onde ela morava, e que em nenhuma delas tinha ido visitá-la. Por que ele a ignorava? Por que era tão indiferente e frio com ela? Tadeu era seu filho. O caçula. Por ele, Alzira seria capaz de tudo. Sempre o mimou mais do que aos outros. Mas ele era considerado esquisitão por todos. E parecia que a odiava. Desde a adolescência era assim — a rebeldia natural da idade e as brigas com os pais, naturais da fase, permaneceram depois que ele se transformou em um adulto. Com quase 40, Tadeu continuava a se comportar como um rapaz de 16 anos. E ela não entendia o porquê. Aquilo, porém, tinha sido demais. Por um acaso, descobriu que a namorada dele morava no mesmo prédio que ela há pelo menos seis meses e, neste período, ele não lhe disse nada. E também nunca foi vê-la. Só haviam conversado poucas vezes por telefone. E ele normalmente ligava para pedir dinheiro, que ela mandava depositar em sua conta. Como não tinha percebido antes? Tinha quase 70, saía pouco, o condomínio era enorme e ela não gostava de jogar conversa fora nos corredores. Tinha outros filhos, mas Tadeu também mal falava com eles. Então, ninguém na família sabia da vida do rapaz. Naquela tarde, recebeu a visita de uma amiga e, quando ela ia embora, foi levá-la até hall de entrada do apartamento. E, quando o elevador parou no 3 andar, Tadeu estava lá. E com uma moça. Os dois com aparência de banho recém-tomado, arrumados para sair. Alzira arregalou os olhos: — Oi, mãe — ele disse, e lhe deu um beijo na face, sem sair do elevador. — Esta aqui é a Valquíria, minha amiga. A moça estendeu a mão visivelmente constrangida. — Tadeu, meu filho, você não veio me ver? — Alzira quis ter certeza. — Hoje, não, mãe. Estamos atrasados. — Mas você não me liga há meses. Há seis não te via. — Tá, mãe, mas eu volto outro dia — respondeu, contrariado, puxando a porta do elevador e fechando-a na cara da senhora. Alzira voltou para o seu apartamento abalada. Chorou por uma hora. Mas, de repente, lhe deu uma raiva tão grande que resolveu se mexer. Queria descobrir quem era a moça e desde quando ele ia à casa dela. E foi fácil. Ligou para a portaria e, por sorte, estava lá o porteiro mais antigo. E também o mais fofoqueiro. A namorada do filho morava lá havia oito meses, no oitavo andar. E Tadeu, quando vinha vê-la, deixava o carro na vaga da mãe. Nenhum porteiro impedia. Afinal, ele estava autorizado por ela. Ele visitava a namorada quase todos dias. E muitas vezes dormia lá. — Lógico que está autorizado para entrar na minha garagem. Todos os meus filhos podem. Ou melhor, podiam. Naquela noite, quando Tadeu voltou para o apartamento da namorada, não pode entrar com o carro na garagem. Alzira tinha cancelado a autorização para o filho caçula. Ele tocou a campainha no apartamento da mãe, mas ela não atendeu. Também telefonou, e nada. Alzira tinha saído. Naquela noite foi dormir na casa da irmã. Mas o fato é que não se importou mais com ele. A decepção foi tão grande, que não o via mais como um filho. Um mês depois, a velha senhora saiu do prédio. Foi viver no interior. Tadeu nunca mais voltou a vê-la.

06/06/2010 com lençóis novos

06/06/2010 com lençóis novos Respirei fundo e subi o lance de escadas, puxando a minha mala gigante e superpesada. Estava muito cansada. Havia trabalhado o dia inteiro e ainda ido a um curso à noite. Mas estava animada, acesa de verdade. Era o início da madrugada, 1h da manhã para ser mais exata e, pela primeira vez na minha vida, dormiria no meu próprio apartamento. E sozinha. Ele era novo, comprado por um financiamento que iria me comprometer por anos. Abri a porta, acendi as luzes, entrei e agradeci à vida, a Deus, a mim. “Consegui”, pensei. “Enfim, estou aqui. É meu espaço. Depois de tanto tentar, tantas dúvidas, tanto empenho, estou aqui. Feliz e sozinha. Mas estou no que é meu.” Fiz questão de sentir o silêncio do ambiente. Tirei os sapatos e meias e deixei o frio do piso de cerâmica subir pelas minhas veias, atiçar os meus músculos, me energizar ainda mais. Andei devagar pelos cômodos — sala, cozinha, banheiros e três quartos — , acendi todas as luzes e deixei o brilho das lâmpadas fluorescentes alegrar ainda mais a minha alma. Meu coração estava calmo, nada de palpitações exageradas. “Estranho”, pensei. Deveria estar excitada? Acho que não. Mas achei que estaria nervosa. E não estava. Ao contrário, estava tranquila, segura mesmo daquela decisão de acabar com um casamento de 15 anos e tentar a vida sozinha. Fui à geladeira, peguei um pouco de chá verde de caixinha, aqueci no micro-ondas. Abri um pacote de bolachas de água e sal, que era o disponível na despensa, ainda bem vazia. Mas seria o meu jantar. Para mim, naquele momento, aquilo equivalia a uma grande ceia. E bastou. Depois, apaguei todas as luzes e tirei a roupa para dormir no jogo novo de lençóis, branco com flores rosas. Demorei um dia a mais para mudar exatamente por causa dele, do jogo novo de lençóis. Para mim, era impossível passar a primeira noite lá com lençóis velhos, trazidos da outra casa, desgastados por uma antiga história de amor que havia acabado. A primeira noite não! Teriam que ser novos. Então, naquela manhã, tinha ido à loja correndo, só para escolher um novo. E eles estavam lá, na cama arrumada e perfumada, me convidando para a primeira noite de sono. Ao deitar, um reflexo comum — me apertei no canto direito... Então, me repreendi: “Para com isso, a cama é toda sua!” Respirei o cheiro do tecido novo, engomado, e me arrastei para o meio, entre os desenhos de rosas. Lá, no centro da minha cama, dormi profundamente e em paz. E foi assim que começou a segunda metade da minha vida.