sábado, 14 de junho de 2008

A MACHADINHA


Publicada na coluna ELAS SABEM DEMAIS em 4 de novembro de 2007



Hilda tinha uma machadinha . Ganhou de presente do Doca. Mas não foi um presente qualquer. Não que ganhar uma machadinha de presente do marido seja coisa comum. Mas poderia ser um presente, digamos... terno, carinhoso ou até exótico se o marido tivesse ido até uma loja, olhado cada objeto com atenção e escolhido o que mais refletia o amor que sentia pela mulher. Mas não foi assim. Hilda foi quem pediu a machadinha . Pediu não: exigiu. Quis a machadinha quando descobriu que Doca a traia. Pois ele de birra foi à loja, escolheu um belo exemplar, de cabo vermelho, amolou bem amolado e levou para a mulher. Ela recebeu, não agradeceu, enrolou em um pano de pratos e guardou no meio de suas calcinhas. “Eu ainda te mato com essa machadinha !”, declarou. A traição foi assim: o casal e dois filhos viviam numa cidadezinha da Paraíba. Já tinham passado por São Paulo, guardado algum dinheiro e, como boa parte dos migrantes, resolvido voltar pra terrinha. Depois de um tempo, o calor, o ócio e a falta de dinheiro voltaram a apertar e eles decidiram apostar de novo no Sul. Hilda decidiu voltar pra São Paulo primeiro. Tinha contatos, antigas patroas e, avaliou, podia conseguir um emprego e preparar o retorno da família. Mas a solidão é um osso difícil de roer para o homem que adora dizer que é macho. Dois meses sem uma mulher foi o limite para Doca: arrumou uma amante, mulher de um vigia noturno. Tinham encontros todas as noite, na casa dela. Ele esperava as crianças dormirem e, pra não fazer barulho e correr o risco de acordar alguém, saía e chegava em casa empurrando a moto. Grande idéia essa do Doca! O plano era perfeito, as crianças tinham sono pesado, mas (olha aí o imponderável) a família tinha uma vizinha. E ela ligou para Hilda. A mulher enfurecida comprou uma passagem de avião à prestação e voltou no dia seguinte pra sua cidade. Foi direto pra casa da vizinha e lá passou o dia escondida. Ouviu o marido brigando para os meninos irem logo pra cama. Viu as luzes do quarto dos garotos se apagarem. Viu ele empurrando a moto da garagem sorrateiramente. E estava lá, na sala, quando ele voltou de madrugada, quase amanhecendo. Foi um Deus nos acuda! Pra encurtar a história, até levar a mulher pra conhecer a amante ele foi obrigado. Depois da fúria, Hilda, de verdade, se divertia com a covardia do marido. E aí veio a idéia da machadinha . Hilda mantém até hoje a bichinha guardada, embrulhada no pano de pratos, no meio de suas calcinhas. Quando a coisa aperta, ela só fala: "Olha, Doca, que um dia eu ainda vou usar essa machadinha."

sexta-feira, 6 de junho de 2008

OS PÉS DE FLORA

Publicada na coluna ELAS SABEM DEMAIS em 28 de outubro de 2007




De todas as histórias que já ouvi sobre dormir de meias, a mais curiosa foi a de Flora. Minha amiga não é nada burguesa, mas nunca dispensa o par de meias na hora de ir para a cama.
Suas meias têm estampas infantis, combinam com suas camisolas e pijamas coloridos e não importa a temperatura da noite: elas estão sempre lá, protegendo seus pés.
Flora explica que dorme de meias desde os 20 e poucos. O motivo? Um grande amor, talvez o único de sua vida, que acabou casando com outra que engravidou primeiro.
Mesmo com tanta desilusão, ela se ilumina quando lembra que o amava perdidamente. Que os beijos eram doces, o sexo era ótimo, os orgasmos freqüentes, mas que, depois do rompimento,
o que nunca conseguiu esquecer mesmo foi daquela sensação dos pés do outro nos seus pés. “Era como se nossos quatro pés fossem um único pé, entende?”, pergunta, chorosa.
Se peço para ela contar mais, dar mais detalhes pra eu entender essa história, Flora fecha os olhos e entra em transe.
Primeiro um sorriso se desenha no seu rosto e ela suspira ao lembrar da antiga paixão. Diz que sente imediatamente o volume e o frio dos pés do outro, a aspereza dos seus calcanhares masculinos, o toque das unhas mal aparadas e até o roçar dos pêlos que ele tinha sobre o peito do pé. E aí solta outro suspiro.
De repente, quando percebo, Flora já está aos prantos e diz que só deseja que ele também suspire sempre, com a lembrança dela e de seus próprios pezinhos delicados, número 33. São minúsculos os pés de Flora.
“E foi por isso que passei a dormir de meias. A
cada novo namorado, a cada novo amante, mais que companhia e sexo bom, o que procuro é a mesma sensação nos pés. O pior é que são mais de 20 anos nesta busca”.
É assim que ela se comporta: no primeiro encontro nunca usa as meias. É a esperança de reencontrar a sensação que alimenta a sua loucura. Mas, a partir do segundo encontro, colocá-las é inevitável. É como um impulso doentio que não consegue evitar. Não usar meias lhe provoca náuseas e tremedeiras.
Flora diz que é por causa dessa obsessão que sempre está só. Os homens com quem sai nunca conseguem satisfazê-la. E, além de tudo, é lógico que acham a meia brega.
Mas, penso, eles até devem ter razão!
Minha amiga exagera. Imagina só, no meio da empolgação, nua em pêlo, a mulher sempre pára tudo, abre a bolsa, cata um par de soquetes e o calça. E sem dar a menor explicação.