quinta-feira, 30 de junho de 2011

08/08/2010 Quarto e cozinha

quarto e Cozinha Diana parou o carro em frente ao portão enferrujado e tentou não pensar no que estava prestes a fazer. Aquele lugar não tinha nenhum charme. Na verdade, era um sobrado modesto, em uma rua sem saída, na beira de uma favela. Diana só repetia para si mesma que Adriano, o homem que tinha conhecido há algumas horas, era lindo, insinuante, e que aquilo seria somente uma aventura, um momento, uma noite.


O “quarto e cozinha” onde Adriano morava ficava no fundo do terreno, que se elevava em um morro atrás do sobrado. Era o último puxadinho. Diana desceu do carro e olhou a escadaria disforme que margeava o imóvel – parecia não ter fim. Ociosa, com vários quilos a mais, estava pouco acostumada a exercícios. Sentiu-se como numa escalada no Himalaia quando galgou os degraus, puxada pelas mãos dele.

Várias portas saiam para esta escadaria, o que mostrava que a dona do imóvel (Diana imaginava que aquele tipo de projeto era coisa de mulher) tinha, ao longo do tempo, aumentado a construção com pequenos conjugados, para alugar. Dona de um duplex na Zona Sul, aquele era o lugar onde ela nunca imaginou estar um dia, ainda mais de madrugada. Mas, pensava, o motivo valeria a pena. Diana era pura excitação.





Quando chegou à “casa” de Adriano, estranhou que nem estava esbaforida. Respirou fundo e entrou com os olhos curiosos. Já que estava ali, decidiu “saborear” cada detalhe que visse, até para entender o melhor aquele homem com quem pretendia ver amanhecer o dia.







No cubículo, Adriano tinha tudo que um homem solteiro precisava. No espaço reduzido, ele mantinha uma organização que ela, nos seus 200 metros quadrados, nunca tinha conseguido sozinha. Na pia, nenhuma louça suja. Sobre a mesa, uma xícara e talheres limpos, prontos para o próximo café da manhã. No quarto, a cama de solteiro arrumada com lençóis brancos e perfumados e um cobertor dobrado nos pés. Tudo acolhedor.





E foi na cama que eles passaram o resto da madrugada, se amando de todas as maneiras que desejaram. Ela nem fez conta do espaço apertado.





Diana saiu de lá um pouco antes da aurora. Estava nas nuvens. Pegou seu carro importado e voltou para casa bem devagar. Mas não quis olhar para trás. Pensava que, apesar de a experiência ter sido ótima, não podia ser algo para se repetir. Ela e Adriano viviam em mundos muito diferentes.





Chegou em casa quase às 6h e sua família ainda dormia. Ninguém percebeu que tinha passado a noite toda fora. Tomou um banho quente e demorado e se deitou na sua cama king size. Dormiu umas duas horas, levantou num pulo, já atrasada para uma reunião que teria ainda pela manhã.





Nunca mais viu Adriano.

01/08/2010 Um justa partilha

UMA JUSTA PARTILHA Foi muito rápido que a paixão acabou. Depois de seis meses sem um poder ficar nem um dia longe do outro, eles, agora, pensavam em se separar. Estavam brigando e, por isso, nem na cama as coisas rolavam como antes. O maior entrave, porém, era a vida prática. Como montariam duas casas? De onde tirariam dinheiro para mobiliar de novo um outro apartamento?


Eles, de fato, tinham se precipitado. Jorge vivia no interior quando decidiu morar com Marcela, em outro estado. E levou o filho, que ele criava. Ela também tinha um filho, que recebia pensão. O sonho era construir a família que nunca tinham conseguido em relacionamentos anteriores.

Para mudar, Jorge largou seu trabalho e entregou sua casa com praticamente tudo o que tinha dentro. Além disso, como ia viver no apartamento dela, tinha gastado suas economias para comprar, principalmente, novos eletrodomésticos.

– Eu só tinha um tanquinho e sempre quis uma máquina de lavar. Então, decidimos dar o tanquinho e ele comprou uma lavadora moderna, daquelas que lavam e secam! – conta Marcela.

A chegada da máquina no apartamento de Marcela foi quase uma festa. O casal, ainda no auge da paixão, fez questão de comemorar com champanhe importada, degustada no jogo de taças também novo, um dos poucos presentes que tinham recebido logo que anunciaram para amigos e parentes que iam morar juntos.

Então, quando perceberam que até se gostavam, mas, sob o mesmo teto, com duas crianças, não se davam tão bem, foram os problemas práticos que mais os incomodaram. Como dividiriam as “tralhas”? Afinal, ele já tinha um trabalho novo e até conseguiria alugar e financiar parte de uma nova mobília, mas não dava para comprar tudo. E ela não tinha emprego fixo, vivia de bicos.

A situação, porém, já estava insustentável, e Jorge resolveu sair, com o principal que tinha levado – a máquina de lavar roupas. Ela ficou com o resto e, jura, sem rancores.

– As crianças brigavam muito. Não tinha jeito.

Mas, o problema das roupas para lavar poderia parecer brincadeira, mas para ela era muito sério. Não lavaria nada na mão. Então, entraram em um acordo que eu, particularmente, nunca vi.

– Eu lavo a roupa dela e do filho toda a semana. Quando ela não leva a sacola de roupas sujas no meu apartamento, eu passo no dela e pego. Mas, só tem um detalhe: o sabão em pó é ela quem compra – conta Jorge.

– E o resto das coisas, como ficaram? – eu quero saber.

– Ele queria levar o jogo de taças. Mas esse eu não dou. É meu. Então, quando a gente quer matar saudades, eu levo as taças. E, depois, trago de volta. É lógico...

25/07/2010 - Elisa ficou em paz

Elisa ficou EM PAZ Elisa estava arrasada. Tinha descido do prédio da repartição no meio da tarde para comer algo e acertar as ideias. Mas não conseguia ficar em paz. Apesar de se esforçar para se convencer que a sua decisão era a mais correta, estava chateada.


Sentada numa mesa no canto do seu boteco preferido, o garçom puxava conversa.

— A vida está difícil aí no seu trabalho, não é?

— É, Zé, está mesmo. Mas as coisas vão se ajeitar — ela tentava desconversar.

Estava faminta. O encontro na hora do almoço havia lhe cortado o apetite. E enquanto devorava o salgado mal assado, ela se lembrava da conversa que tinha enfrentado horas antes. Na hora de pagar a conta, o garçom de novo. Ele percebe no ar a distância da moça e pergunta:

— O que aconteceu, Elisa?

— Ah, Zé, tive um encontro na hora do almoço que acabou com o meu apetite.

Então, como se conseguisse perceber tudo no ar, o garçom disse, com olhar luminoso:

— Você viu o homem que você ama, é isso?

A moça ficou espantada com a ousadia. Como ele podia adivinhar? Será que ela estava dando bandeira? Fez um sim tímido com a cabeça e só.

Mas ele nem se importou. E exclamou com um ar feliz, carregado de sotaque nordestino:

— Eita, mas isso é muito bom! É muito bom!

E Zé, como quem sabe muito bem o que fala, começou a lhe dar conselhos de psicólogo.

— Olha, Elisa, se você viu o homem que ama, por que toda essa tristeza? Falou o que para ele?

— Terminei, Zé. E ele ficou lá, com cara de quem não tem o que fazer.

— Então, menina. Não tem que brigar. Se é o homem que ama, liga pra ele e diz isso. É só o que basta. Para de tristeza.

Então, Elisa percebeu o quanto era bizarra a sua a situação. Estava sentada em um boteco, recebendo conselhos de um garçom baiano que tinha idade para ser seu pai. E ele, com uma frase, tinha feito ela mudar de ideia sobre tudo que tinha falado há horas atrás — da boca do garçom, saiu a frase mais pacificadora do dia. Saiu de lá rindo por dentro, pegou o celular e ligou para a Álvares.

— Oi, sou eu. Só queria dizer mais uma coisa. Estou com saudades. E querendo ficar com você.

Aquela noite, Álvares e Elisa se amaram como nunca. Enfim, Elisa estava em paz.

18/07/2010 A sabedoria da tia-avó

07/18/2010 a sabedoria da tia-avó Meire deveria ter dado ouvidos à sua tia-avó. Mas, no auge dos seus 24 anos, achava que a opinião de uma velha viúva de 70 anos, mesmo sendo a pessoa mais avançada que conhecia, era uma grande bobagem. Afinal, seus pensamentos só podiam estar poluídos por preconceitos. A opinião da senhora sobre o novo namorado de Meire foi direta. Num domingo, quando a família estava reunida para o almoço, a tia quis saber o porquê de tanta felicidade da sua sobrinha preferida. — Estou namorando, tia. Ele é o máximo. Virá aqui hoje e vou apresentá-lo a todos. — Nossa, quero conhecer. Como ele é, quantos anos tem? Já estão pensando em casar? — Lógico que não, tia. Ele é 15 anos mais velho que eu e acabamos de nos conhecer. É um homem centrado, maduro. E já foi casado... três vezes. — Olha, minha filha, se já teve três mulheres, desiste logo porque é fria. A moça ficou desconcertada. Nunca tinha imaginado que a tia-avó tão moderna, que morou sem casar com um homem, que foi a primeira a fumar da família, que até pulou de paraquedas, pudesse ter uma opinião tão careta. Só podia ter regredido. Decidiu deixar pra lá. Naquele mesmo dia, a tia querida e o resto da família conheceram Carlos e todos se apaixonaram por ele. Ela e a tia não tocaram mais no assunto. Um ano depois, Meire e Carlos resolveram morar juntos. O casal era impecável. Daquele tipo que todos, amigos e parentes, dizem ser perfeito. Combinavam em gostos e opiniões. Nunca brigavam. Até sobre os filhos, que os dois tinham tido em relações anteriores, eles concordavam. A sintonia era tanta que apenas morar juntos não bastava. Resolveram casar, fazer festa, formalizar sua felicidade. Ela, relações públicas, e ele, administrador de empresas, montaram um belo apartamento na Vila Mariana. Ela levou a filha, que já tinha 7 anos. Ele montou um quarto para o filho, que estava com 9. A vida dos dois, aos olhos de quem via de fora, era perfeita. Mas, dentro de casa, a vida íntima do casal era cada vez mais tensa. Durante o namoro, Meire diz que não gostava de algumas manias de Carlos. Mas, apaixonada, achava que era coisa da cabeça dela. Hoje, se arrepende de ter deixado de lado sua intuição. — Quando íamos ao motel, eu não gostava, mas achava natural vê-lo sempre colocar a TV no canal de filmes adultos. Já tinha tido outros namorados que também gostavam. Mas um dia tivemos que mudar de quarto porque o canal pornô do nosso estava fora do ar. Ele fez um escândalo. Casada, Meire começou a perceber que o amor nunca tinha preliminares. Ela reclamava, mas Carlos não mudava. Depois do jantar, ele sempre ficava no computador. Quando ela se aproximava, percebia que estava em um site pornográfico. A situação passou a incomodá-la demais na medida que constatou que, imediatamente após desligar o computador, ele a procurava na cama, sem nenhum jogo de sedução para excitá-la. — E, depois do sexo, virava e dormia. Se eu gostei, ele nem queria saber — lembra. Foram dois anos de convivência. O “problema” a fez ficar doente e perder o emprego. Até que, numa reunião de família, reencontrou a velha tia-avó. A idosa era dona de uma ótima memória. Vendo a sobrinha tão abatida, quis saber: — Então, filha? Pelo jeito, já descobriu por que seu marido já se separou três vezes, não é?

11/07/2010 Loira e cheia de cachos

07/11/2010 loira e cheia de cachos Verônica entrou esbaforida na cozinha e gritou: — Mãe, descobri, mãe, eu descobri!!! A menina de 5 anos queria contar à mãe com urgência quem queria ser. Ou melhor, com quem queria parecer. Pegou a mãe pela mão e a puxou até a sala. Na TV, o filme da “Sessão da Tarde” era “A Queridinha do Vovô”. A personagem principal, Priscila, era vivida por Shirley Temple. Verônica até suspirava. — Ela é como eu te disse que quero ser, mãe, loirinha e de cabelos encaracolados. E também quero olhos bem verdes. E ter o nome dela: Priscila. Que lindo nome!! É melhor do que Verônica. A mãe da menina não aguentava mais aquela história. Ela entendia que Verônica estava na fase de ter fantasias, mas não conseguia evitar um certo incômodo com o sonho da filha. É que Verônica, assim como toda a família, era morena e tinha os cabelos pretos e bem lisos. Os olhos dela eram amendoados, de um castanho escuro brilhante. Um belo dia, porém, a menina começou a falar que queria ser mesmo loira encaracolada e parecia sofrer por ser diferente do que imaginava. Falava tanto e chegava a chorar quando diziam que era impossível. Assustados, os pais procuraram ajuda profissional. A psicóloga sugeriu que a família não desse tanta importância àquilo, e que também brincasse com a história, entrasse na fantasia, sempre mostrando para a filha que aquilo, como todos os outros faz-de-conta, tem um fim. A mãe, então, comprou uma peruca loira e cheia de cachos para Verônica e começou a chamá-la de Priscila em alguns momentos, sempre em tom de brincadeira. No começo, a menina curtiu a peruca como um novo brinquedo, mas conforme foi crescendo a cabeleira foi ficando de lado. Verônica, a garota morena e de olhos escuros, se transformou na adolescente mais bonita da rua e da escola. E a peruca loira e cheia de cachos — e toda a história que a envolvia — eram só motivo de boas risadas na família. Mas, se Verônica tinha alguma explosão de mau-humor, era de Priscila que a chamavam. Perto dos 17, Verônica se apaixonou pela primeira vez por um rapazote da mesma escola que ela. Precavida, a mãe sempre tentava levar o casalzinho para dentro da sua casa, mas o menino não gostava. A paixão seguiu por alguns meses, até o que o ano acabou e o garoto saiu da escola. Foi a deixa para o namoro acabar. Verônica parecia que ia morrer quando recebeu um e-mail dele, terminado tudo. Como chorou a garota! Mas, como toda jovem nesta fase, também se recuperou rápido. Em pouco mais de duas semanas, já estava se divertindo. E foi num passeio no shopping, com o grupo de amigas da escola, que ela encontrou o ex de mãos dadas com a nova namorada. O encontro foi tão inesperado que Verônica nem teve tempo de desviar o caminho, fingir que não os tinha visto. Ficaram os três frente a frente, e o garoto, então, teve de lhe apresentar a nova namorada: — Oi, Verônica, esta aqui é a Priscila — e ela era loira, com cachos lindos e olhos verdes. Verônica parou de respirar. Lembrou na mesma hora de Shirley Temple e da sua peruca loira jogada em algum canto dentro do guarda-roupas. Pediu desculpas e saiu correndo para casa. Entrou esbaforida na cozinha e gritou: — Mãe, descobri, mãe, eu descobri porque é que eu queria ser loira!!!

04/07/2010 Um corte preciso

07/04/2010 um corte preciso Não era por ciúmes que ela fazia aquilo. E nem por despeito. Era por raiva, pela mais pura e legítima raiva. A tesoura parecia se mover sozinha na sua mão, e deslizava pelas peças de roupa dele, seu marido, pais de seus dois filhos, o menor deles com apenas um mês de vida. Beatriz sentia seus peitos, antes repletos de leite, agora duros de pedras. Não conseguia amamentar. Era a consequência da raiva, do estresse pelo desrespeito com que Anselmo a estava tratando e à sua família. O marido havia saído no final da tarde de sexta para “jogar uma bola” com os amigos. Tarde da noite, ele ainda não tinha voltado. O celular estava “fora de área”. Primeiro, ela se preocupou de verdade, achou que Anselmo tinha sido sequestrado. Procurou os pais dele e todos passaram à noite praticamente em claro. Só no sábado que conseguiram, enfim, um contato pelo celular do rapaz, perto da hora do almoço. Foi a sogra quem falou. — Menina, você sabe que ele é um homem casado e acabou de ter um filho?!! — dizia a matrona para a mulher que havia atendido o telefone com voz sonolenta. Chorando, a sogra nem quis contar à nora o que mais ouviu. Não precisava. Beatriz já havia entendido tudo. Só lhe restava ficar sozinha, cuidar das crianças e esperar o reaparecimento do marido no conforto do apartamento bem montado, de 200 metros quadrados, à beira mar. Mas, após a segunda noite de solidão, sentiu o impulso. Não podia ficar indiferente. E lá estava a tesoura, pronta para dar cortes precisos. Primeiro, foram camisetas, cortadas como se tivessem sofrido uma cirurgia no peito. Depois as camisas, que perderam as faixas das casas e dos botões, além das golas. Em seguida, vieram as gravatas, colocadas uma ao lado da outra, no chão do quarto, e partidas ao meio. As bermudas perderam o zíper, as cuecas, a frente. Dos calçados, a tesoura arrancou as línguas. Até as peças que estavam para lavar e passar foram devidamente retalhadas. Nem os chinelos sobraram. Beatriz só dava uma trégua para a tesoura para alimentar e cuidar dos filhos. — Para cada ligação não atendida que eu dava para o celular dele, eu cortava uma coisa — lembra Beatriz, com um certo prazer. Destruído todo o guarda-roupas do marido, Beatriz partiu para os cristais, todos legítimos, usados com orgulho por Anselmo para servir os amigos. As taças viraram cacos pelo chão da sala de jantar. Então, ela se lembrou da coleção de carros em miniatura, a maioria deles comprados em viagens ao exterior. — Era uns 20 carrinhos. O maior xodó dele. Lancei todos, um a um, contra a parede. Só então, no fim da tarde de domingo, Anselmo apareceu, com uma cara tranquila, de cabelo molhado e cheiro de perfume barato de mulher. — Por que tanta ligação para meu celular? — quis saber, com um cinismo. Preparada para uma guerra, ela se refugiou no quarto das crianças. Antes, trancou o próprio closet. Ele esbravejou. Quase derrubou a porta. Mas, aos pouco, acabou dormindo. No dia seguinte, Anselmo vestiu as roupas do porteiro e foi às compras. Voltou com sacolas e mais sacolas de roupas para ele, mas também algumas peças novas — e lindas — para ela. Beatriz não entendeu. — Mas o que é isso? — É que, de verdade, desta vez, eu realmente vacilei.

27/06/2010 O primeiro baile

06/27/2010 o primeiro baile A escadaria à sua frente parecia monumental. De salto alto, Cibele tratou de subir cada degrau bem devagar, com medo de tropeçar e chamar a atenção. Já estava só, o que era o suficiente para se sentir constrangida. Não precisava de um desequilíbrio gratuito por causa de um degrau estúpido. Era seu primeiro baile. Tinha combinado ir com um casal de amigos que, na última hora, não pode comparecer. — Desculpe, Ci, mas a Belinha está com febre. Fica pra próxima — foi a desculpa da amiga. Cibele tinha duas opções: desistir do baile ou enfrentá-lo sozinha. Optou pela segunda. Antes, ligou para uma amiga, mais acostumada a ser descasada. — Abre um vinho e bebe uma taça antes de sair. Não, bebe duas — foi o conselho. — E não chega cedo e nem senta em mesa. Fica no bar, observando. Se tiver clima para ir para uma mesa sozinha, vai. Cibele bem que tentou cumprir as dicas à risca. Solene, abriu o vinho argentino que tinha em casa e sorveu uma taça. Mas, ansiosa do jeito que estava, quando viu, já tinha tomado a garrafa quase inteira. Cochilou um pouco no sofá enquanto a novela das oito passava e, quando acordou, olhou o relógio da parede e levantou num susto: — Deus, vou chegar tarde demais ao baile! Trocou-se rapidamente e colocou a sandália vermelha de salto, a mais bonita que tinha, sem nem se lembrar que não era a mais confortável. Maquiagem básica, chiclete de menta na bolsa, celular, batom e pronto. Estava cheia de coragem para enfrentar o baile sozinha. Pegou o carro e saiu com o mapa na mão. Seu carro não tinha GPS. Se perdeu um pouco e, quando achou o lugar, o estacionamento estava praticamente lotado. Mas ainda conseguiu vaga: “Por enquanto, tudo bem!”. Só lamentou a sandália que calçou quando viu a escadaria. Mas sentiu-se vitoriosa quando chegou ao topo. Ao entrar no salão, porém, o pânico voltou. Procurou o bar, mas ele não existia. Só mesas ao redor da pista, a maioria já ocupada por grupos de amigos e casais. Sorte que, aparentemente, ninguém reparava nela. Começou a andar displicentemente entre as mesas, como se estivesse procurando alguém. E, na verdade, estava. “Alguém conhecido, pelamordedeus!”, pensava. Até que, do outro lado do salão, lá estavam elas: algumas colegas da aula de dança, que tinham dito que não iam ao baile. — Não tinha o seu número para avisar que vínhamos! — disse Amélia, a mais divertida delas. Cibele respirou aliviada e pediu uma cerveja. De repente, avistou Gil, outro colega da escola. Já tinham flertado. Meio sem jeito, dançaram uma e depois mais uma. Para um primeiro baile, estava bom. Ela ainda nem dançava direito e o que mais queria de verdade logo viria. E naquela mesma noite.

20/06/2010 Morte no piscinão

06/20/2010 MORTE NO PISCINÃO Uma tarde tive de fazer a matéria sobre a morte de dois garotos na obra de um piscinão na periferia de São Paulo. Morreram afogados num dia de muito calor. Não é uma pauta agradável, mas era parte do meu trabalho. E lá fui eu. Cheguei à rua de um bairro pobre e feio onde os meninos moravam. A contragosto, bati na casa de um deles. Ninguém atendeu. Um vizinho disse que o corpo já estava no velório e que a família do outro garoto tinha ido viajar. “Que droga!”, pensei. Não queria ir a um enterro para conseguir a história. Mas não tinha alternativa. Cheguei à capela e, de longe, observei que boa parte das mulheres usava saias longas e cabelos compridos. Era uma família de evangélicos. Achei difícil conseguir conversar com eles, mas fui em frente. Tinha uma missão. Do lado de fora, perguntei a um homem com cara amistosa quem era da família. Solícito, ele me mostrou, ao lado do caixão, a mãe e o pai. O pai parecia mais tranquilo, então me aproximei dele. Disse o que estava fazendo ali. Esperava mesmo ser maltratada. Então, veio a primeira surpresa. Ele secou as lágrimas com uma manga da camisa e disse, com calma, mais como um pedido: — A senhora pode esperar um pouco? Eu vou falar, porque não quero que aconteça isso com mais ninguém. Fiquei envergonhada pela pré-avaliação, preconceituosa até. Com a consciência pesada, fiquei lá, observando o sofrimento daquelas pessoas. Quando acabou o enterro, o pai me convidou para ir até a casa dele. A mãe só me olhava, com uma tristeza imensa, misturada a uma compreensão assustadora. Não tinha nada da resistência que eu esperava. Voltando à casa, o casal começou a contar o que tinha acontecido: que o lugar do piscinão era uma antiga fazenda, que antes tinha um laguinho onde as crianças do bairro brincavam, que começou a obra e nada foi cercado ou sinalizado, que a obra parecia abandonada. Então, o pai propôs: — A senhora pode ir até lá? Eu mostro que não tem segurança nem aviso. É bem pertinho. A gente vai a pé. Conforme andávamos, mais e mais pessoas se juntavam atrás de nós, muitas delas crianças. Era uma multidão de gente simples, vestida com shorts e chinelos. Era mesmo muito perto. Virando a primeira esquina já começava uma estrada de terra e podíamos ver uma mata, em seguida um descampado e o lago do piscinão. O pai se aproximou e me mostrou onde os meninos costumavam mergulhar, contou como os corpos tinham sido encontrados, me apresentou o rapaz que tentou salvá-los. Sempre abraçado ou de mãos dadas com a mulher. De repente, ele diz a ela: — Olha, bem, a camiseta dele ainda está aqui. Aquilo parecia um trapo. Estava lá, na beira da lagoa, molhada e suja de barro. Mas a mãe pegou como se fosse uma relíquia. Talvez porque ainda estivesse anestesiada pelo impacto da morte tão recente, lidou com aquilo como se fosse normal. Parecia um peça de roupa do filho que ela devia cuidar, lavar e passar para depois ele usar de novo. Nenhuma lágrima. Nenhum grito. Nenhum lamento. Mas muita dignidade. Me emocionei. Já era hora de ir embora. No carro, enquanto voltava para a redação com a minha história, só sentia uma coisa esquisita no coração, um amargo na boca e uma admiração enorme por aquelas pessoas tão simples, tão crédulas e, naquele momento, tão fortes.

13/06/2010 Surpresa no elevador

06/13/2010 surpresa no elevador A velha senhora chorou como há anos não chorava, quando descobriu que Tadeu estivera lá várias vezes, no mesmo prédio onde ela morava, e que em nenhuma delas tinha ido visitá-la. Por que ele a ignorava? Por que era tão indiferente e frio com ela? Tadeu era seu filho. O caçula. Por ele, Alzira seria capaz de tudo. Sempre o mimou mais do que aos outros. Mas ele era considerado esquisitão por todos. E parecia que a odiava. Desde a adolescência era assim — a rebeldia natural da idade e as brigas com os pais, naturais da fase, permaneceram depois que ele se transformou em um adulto. Com quase 40, Tadeu continuava a se comportar como um rapaz de 16 anos. E ela não entendia o porquê. Aquilo, porém, tinha sido demais. Por um acaso, descobriu que a namorada dele morava no mesmo prédio que ela há pelo menos seis meses e, neste período, ele não lhe disse nada. E também nunca foi vê-la. Só haviam conversado poucas vezes por telefone. E ele normalmente ligava para pedir dinheiro, que ela mandava depositar em sua conta. Como não tinha percebido antes? Tinha quase 70, saía pouco, o condomínio era enorme e ela não gostava de jogar conversa fora nos corredores. Tinha outros filhos, mas Tadeu também mal falava com eles. Então, ninguém na família sabia da vida do rapaz. Naquela tarde, recebeu a visita de uma amiga e, quando ela ia embora, foi levá-la até hall de entrada do apartamento. E, quando o elevador parou no 3 andar, Tadeu estava lá. E com uma moça. Os dois com aparência de banho recém-tomado, arrumados para sair. Alzira arregalou os olhos: — Oi, mãe — ele disse, e lhe deu um beijo na face, sem sair do elevador. — Esta aqui é a Valquíria, minha amiga. A moça estendeu a mão visivelmente constrangida. — Tadeu, meu filho, você não veio me ver? — Alzira quis ter certeza. — Hoje, não, mãe. Estamos atrasados. — Mas você não me liga há meses. Há seis não te via. — Tá, mãe, mas eu volto outro dia — respondeu, contrariado, puxando a porta do elevador e fechando-a na cara da senhora. Alzira voltou para o seu apartamento abalada. Chorou por uma hora. Mas, de repente, lhe deu uma raiva tão grande que resolveu se mexer. Queria descobrir quem era a moça e desde quando ele ia à casa dela. E foi fácil. Ligou para a portaria e, por sorte, estava lá o porteiro mais antigo. E também o mais fofoqueiro. A namorada do filho morava lá havia oito meses, no oitavo andar. E Tadeu, quando vinha vê-la, deixava o carro na vaga da mãe. Nenhum porteiro impedia. Afinal, ele estava autorizado por ela. Ele visitava a namorada quase todos dias. E muitas vezes dormia lá. — Lógico que está autorizado para entrar na minha garagem. Todos os meus filhos podem. Ou melhor, podiam. Naquela noite, quando Tadeu voltou para o apartamento da namorada, não pode entrar com o carro na garagem. Alzira tinha cancelado a autorização para o filho caçula. Ele tocou a campainha no apartamento da mãe, mas ela não atendeu. Também telefonou, e nada. Alzira tinha saído. Naquela noite foi dormir na casa da irmã. Mas o fato é que não se importou mais com ele. A decepção foi tão grande, que não o via mais como um filho. Um mês depois, a velha senhora saiu do prédio. Foi viver no interior. Tadeu nunca mais voltou a vê-la.

06/06/2010 com lençóis novos

06/06/2010 com lençóis novos Respirei fundo e subi o lance de escadas, puxando a minha mala gigante e superpesada. Estava muito cansada. Havia trabalhado o dia inteiro e ainda ido a um curso à noite. Mas estava animada, acesa de verdade. Era o início da madrugada, 1h da manhã para ser mais exata e, pela primeira vez na minha vida, dormiria no meu próprio apartamento. E sozinha. Ele era novo, comprado por um financiamento que iria me comprometer por anos. Abri a porta, acendi as luzes, entrei e agradeci à vida, a Deus, a mim. “Consegui”, pensei. “Enfim, estou aqui. É meu espaço. Depois de tanto tentar, tantas dúvidas, tanto empenho, estou aqui. Feliz e sozinha. Mas estou no que é meu.” Fiz questão de sentir o silêncio do ambiente. Tirei os sapatos e meias e deixei o frio do piso de cerâmica subir pelas minhas veias, atiçar os meus músculos, me energizar ainda mais. Andei devagar pelos cômodos — sala, cozinha, banheiros e três quartos — , acendi todas as luzes e deixei o brilho das lâmpadas fluorescentes alegrar ainda mais a minha alma. Meu coração estava calmo, nada de palpitações exageradas. “Estranho”, pensei. Deveria estar excitada? Acho que não. Mas achei que estaria nervosa. E não estava. Ao contrário, estava tranquila, segura mesmo daquela decisão de acabar com um casamento de 15 anos e tentar a vida sozinha. Fui à geladeira, peguei um pouco de chá verde de caixinha, aqueci no micro-ondas. Abri um pacote de bolachas de água e sal, que era o disponível na despensa, ainda bem vazia. Mas seria o meu jantar. Para mim, naquele momento, aquilo equivalia a uma grande ceia. E bastou. Depois, apaguei todas as luzes e tirei a roupa para dormir no jogo novo de lençóis, branco com flores rosas. Demorei um dia a mais para mudar exatamente por causa dele, do jogo novo de lençóis. Para mim, era impossível passar a primeira noite lá com lençóis velhos, trazidos da outra casa, desgastados por uma antiga história de amor que havia acabado. A primeira noite não! Teriam que ser novos. Então, naquela manhã, tinha ido à loja correndo, só para escolher um novo. E eles estavam lá, na cama arrumada e perfumada, me convidando para a primeira noite de sono. Ao deitar, um reflexo comum — me apertei no canto direito... Então, me repreendi: “Para com isso, a cama é toda sua!” Respirei o cheiro do tecido novo, engomado, e me arrastei para o meio, entre os desenhos de rosas. Lá, no centro da minha cama, dormi profundamente e em paz. E foi assim que começou a segunda metade da minha vida.

30/05/2010 Eterna juventude

05/30/2010 eterna juventude Dona Elza quer usar aparelho auditivo. Já fez todos os exames e escolheu um modelo transparente. Aliás, dona Elza foi conquistada pelo aparelho “invisível”, como lhe explicou o seu médico. Dona Elza não escuta direito há anos, lhe incomoda só ver as cenas das suas novelas prediletas, sem escutar os diálogos. Mas nada seria pior do que reconhecer publicamente a sua surdez. Então, quando descobriu que poderia usar um aparelho praticamente imperceptível, rendeu-se. E feliz. Dona Elza sempre se supera. E surpreende quem a cerca. Com 91 anos, ela já foi “enterrada” várias vezes. Quando seu marido ainda era vivo, todos tinham pena dela. Alceu era tenente reformado da PM e, aparentemente, nada carinhoso. Digo “aparentemente” porque dona Elza sempre dava um risinho maroto quando alguma filha lhe dizia, indignada: “Mãe, como você aguenta ele???”. É que o “tenente Alceu” era machista, teimoso e autoritário. Tudo o que pedia era gritando, com grosseria. Mas eles foram casados por 50 anos e Elza cuidou dele com um carinho comovente até a sua morte. Alceu teve um problema pulmonar e, por anos, dependeu dela para praticamente tudo. Quando o marido partiu, a família acreditava que o sentido da vida da senhora tinha acabado. Foi quando veio a primeira surpresa. Durante o velório, ela não parecia desesperada e, após o enterro, anunciou às filhas que faria uma viagem. Nada de ficar em casa curtindo o luto. E seria só a primeira delas. A senhorinha, já com seus 70 anos, passou a fazer parte de grupos de terceira idade e ia em praticamente todas as excursões com as amigas. Até nas bebidas ela se aventurava. Um dia, a família recebeu um telefonema avisando que a mãe estava internada. Dona Elza havia sentido uma forte e crescente dor, chamou um táxi e foi sozinha ao hospital. Acabou internada. Exames a viraram de “ponta cabeça” e o prognóstico médico foi o pior possível: ela nunca mais voltaria a andar. As filhas, arrasadas, decidiram não revelar a ela a gravidade do problema. Compraram uma cadeira de rodas, adaptaram a casa, colocaram a cama hospitalar na sala, crentes de que aquela seria a realidade da mãe dali em diante. Mas, nova surpresa: em dois meses, a velhinha já estava em pé. E foi fazer ioga. Nas festas, dava cambalhotas no meio da sala, se exibindo para quem se impressionava com sua recuperação. Depois disso, ela ainda cuidou e enterrou uma filha, que morreu de câncer. Novamente, após a tristeza, veio uma recuperação surpreendente. Nada parece abatê-la. Já se aventurou em um cruzeiro só com as amigas da igreja, foi a um show do Roberto Carlos e sentou na primeira fila, com direito a champanhe, e agora planeja ir ver Cauby Peixoto. Hoje, a única coisa que ela diz é que não quer ficar velha. E acho nunca será.

23/05/2010 Mudança radical

05/23/2010 mudança radical Sua roupa colorida e bom humor constante causavam estranheza a quem só a conheceu quando jovem. Antes, Marta não costumava ser tão expressiva, tão sociável, tão aberta. A mudança de comportamento era surpreendente. E a própria Marta não reconhecia a jovem que foi. — Aquela menina era muito boba, não sabia aproveitar a vida — dizia. Marta costumava ser muito rigorosa com a vida. Casou cedo, com 20, e virgem por “convicção”, como ela mesma gostava de falar. Seu sonho era ter uma família, um casal de filhos, uma casa grande e bonita no melhor bairro da cidade. Não queria trabalhar fora. Queria ser dona de casa. E não ligava para quem a chamasse de antiquada. Para os filhos, antes mesmo de nascerem, já tinha planos. A menina seria sua companheira e, como ela, se casaria cedo. Mulher, definitivamente, não precisava trabalhar fora. Mas tinha que saber tudo de casa. O menino faria faculdade. Mas Marta era muito rigorosa e, para os jovens, tudo era proibido. Também não tinha uma relação de amigos e só visitava alguns parentes. Ninguém a visitava. Ela não insistia, pois não gostava de bagunça na sua casa. Então, quando os filhos cresceram e passaram desordenar a sua ordem, Marta se incomodou. As brigas eram diárias. Mas a gota d’água foi quando os dois, então com 15 e 16 anos, apareceram cada um com uma tatuagem. Marília desenhou uma borboleta no calcanhar esquerdo. E Emerson uma cobra no ombro direito. Marta chorava sem parar. O marido não dava a mínima. Então, depois de um mês de reclamações, e de quase 18 anos de silêncio, ele, que nunca falava nada sobre o que a mulher fazia, resolveu tomar uma atitude: fez a mala e foi embora. A filha, que descobriu estar grávida, foi com ele. Tudo o que Marta planejou perdeu o sentido. Com 36 anos, sem nunca ter trabalhado, ela agora vivia só com o filho num casarão. Ela podia ter adoecido. Tudo levava a crer que ela não ia aguentar. Mas, talvez porque o choque foi grande demais, a sua reação também foi surpreendente. Já que tudo o que ela defendia até então se desfez, ela partiu para fazer o que nunca imaginou que faria. Primeiro, tratou de trabalhar. Começou a cozinhar para fora e transformou a própria casa em um restaurante. Passou a fazer aulas de dança e, religiosamente, vai aos bailes aos sábados. Também mudou seu modo de se vestir e hoje o seu guarda-roupas é repleto de cor. E, por incrível que pareça, com 50, fez a primeira tatuagem. Agora já são quatro: uma fada no ombro, um flor na nuca, uma tribal no tornozelo e um pássaro azul na cintura.

16/05/2010 viagem de mentira

05/16/2010 viagem de mentira Foi um trabalho e tanto convencer o pai de Regina a deixá-la encarar aquela viagem. Marta e Suzete foram pessoalmente falar com o velho espanhol. Ele tinha um ciúmes doentio da filha e nunca a deixava sair à noite. Conseguir convencê-lo a deixar Regina ir num passeio para a praia seria um desafio e tanto. Marta falou primeiro: — Nós vamos para o apartamento do meu primo, no Guarujá. A mulher e os filhos dele estarão conosco. O senhor pode ligar para ele. Aqui está o endereço — mentiu. Na verdade, as três planejavam um passeio mais longo. A aventura incluia o litoral norte, com uma esticada até Paraty. O velho titubeou, falou grosso, disse que iria conferir o endereço, mas o olhar angelical das duas amigas de sua filha o convenceram. Os pais de Marta também não sabiam de toda a verdade. Ela disse para eles que só as meninas iriam à viagem, e até Bertioga. Ao pai, principalmente, jurou que o namorado não ia. Isso porque o cara sismou de aparecer na véspera da viagem, bêbado, na sua casa. — Este cara não vai viajar com você, vai? — quis saber o pai, fazendo cara de mau. — É lógico que não, né, pai. Nem conheço ele direito — outra mentira. E, durante o passeio, Suzete ainda teve a cara de pau de ligar para a mãe, quando estavam abastecendo em Caraguatatuba. — Aqui em Peruíbe está um sol danado, mãe. Não é de estranhar que tanta mentira tenha dado no que deu. Parecia até castigo. Os três casais viajavam em uma Kombi velha. Só o pneu da “lata velha” furou três vezes na ida. Na divisa com o Rio, foram parados pela polícia. — Podem abrir todas as malas que vamos revistar tudinho — mandou um oficial. Por sorte, a turma não carregava drogas, mas o carro ganhou três multas e só não foi retido porque as moças imploraram. Em Paraty, porém, mais problema: as pousadas estavam lotadas. — É Carnaval. Vocês não achavam que iam encontrar lugar fácil, né? — provocou a recepcionista da pensãozinha horrorosa onde encontraram um único quarto. Enquanto dois casais dividiram o quarto, o outro foi dormir no carro. No dia seguinte, num passeio pela cidade, Regina foi roubada. Na segunda noite, caiu uma tempestade na cidade e eles descobriram que o quartinho do hotel era cheio de goteiras. Decidiram voltar mais cedo para casa. Mas, em Ubatuba, o motor da Kombi fundiu. E lá se foi o resto do dinheiro que tinham. Terminaram o passeio com “chave de ouro”. Era a “cereja do bolo”. — E aí filha, foi legal o passeio? — quis saber a mãe de Marta, assim que ela chegou. — Foi mãe. Nunca me diverti tanto. Foi tudo, tudo ma-ra-vi-lho-so — mentiu, é lógico.

09/05/2010 - DE BRUXAS E BRUXINHAS

05/09/2010 de bruxas e bruxinhas Quando você é mãe, é engraçado como a percepção de que a criança está crescendo, às vezes, vem com um susto. Eu vivo me surpreendendo com a Bia. Cada resposta, cada tirada, cada frase que não fui eu quem lhe ensinou me causam um sobressalto. Sou o tipo de mãe que gosta de brincar. E também de testar a paciência da criança. Pode parecer uma tortura para quem está de fora, ou um grande defeito meu, mas percebo que a Bia também aprende com isso. E, principalmente, se diverte no final das contas. — Bia, eu sou uma bruxa, você sabe! — esta já foi uma de minhas provocações preferidas à minha menina. Sem dó nem piedade, comecei a disparar a afirmação assim que ela entendeu o que era uma bruxa. Viva os contos de fada! Até ela ter seus 5 ou 6 anos, chorava de verdade, gritava. E o escândalo era para me defender. — Não é não, mãe, não é! — Mas, Bia, eu sou sim. Até nome de bruxa eu tenho, sabia? Viviane, nome de bruxa, bruxa! E você é uma bruxinha! Filha de bruxa, bruxinha! — Para, mãe, não sou, você não é bruxa! — e partia para o ataque, vinha me empurrar. E eu, má como só uma bruxa, ria e ria e ria. Ela já passava dos 7 quando, numa tarde, estávamos lendo um livro na cama do meu quarto. A história era sobre uma festa em que só podiam entrar bichos, fadas e.... bruxas. — Oba, eu posso ir. Afinal, sou uma bruxa, você sabe! — provoquei, só para recomeçar a ladainha. — Não é! — Sou! — Não é! — Sou! E então, para meu deleite, ela percebeu que podia mudar o jogo. E fez o desafio: — Se é, faz então desaparecer a...—- procurando algo pelo quarto — esta televisão! Me surpreendi, já orgulhosa. “Uau, ela está crescendo”, pensei. Mas não perdi rebolado: — Fácil, fácil! — respondi. Com movimentos de mão teatrais, palavras “mágicas” inventadas na hora, olhar fixo na TV e, tcharam!!!! — Viu? A televisão sumiu! — fantasiei. — Ah, mãe, sumiu nada. Olha a televisão aí — apontou, rindo e me desdenhando. — Só você que está vendo a TV aí, Bia. Pra mim, ela sumiu! — Ahhh, tááá!! Então, eu sou uma bruxinha mesmo. Porque sou a única que tô vendo ali a televisão que você acabou de fazer desaparecer! É, eles crescem mesmo. Pode parecer uma pena. Mas, de verdade, é bom. É tudo de bom.

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Uma certa Maria

Maria se transformou num trapo humano. Sua pele como que se descolou dos seus ossos.

Se escuta, ninguém sabe. Mais parece que escolhe o que escutar. Ou então prefere fingir que ninguém fala, para não precisar falar.

Nada mais lhe pertence. E também não se pertence mais. Olhos parados, corpo parado, boca caída.

Só usa roupas largas, peças desconexas, nos pés só chinelos com meias e, na cabeça, uma touca de lã.

Não escolhe o que comer, não se importa onde a colocam, não opina sobre nada.

Mas sente. Percebo isso em alguns de seus raros olhares, brilhantes de lágrimas que nunca caem.

Eu me pergunto: onde está Maria? Aquela mulher que um dia foi a temida, a raivosa, a mais bela, a mais querida. E que também foi, muitas vezes, a mais odiada.

Ninguém quer mais Maria. Mas, pensando bem, vários tentaram e ela não deixou.

O primeiro que lhe amou foi Rômulo. Funcionário de escola, ele também foi o único que ela desejou. Mas, como ela, tinha um péssimo gênio. Trocavam juras de amor num dia para, no seguinte, brigarem aos gritos por causa de uma bobagem qualquer. Ele a queria tanto, e tinha tanto medo do seu querer, que buscava na agressão gratuita uma forma de se proteger. Enfim, não sabia o que fazer com aquele amor. Foram tantas idas e vindas, que um dia o pai dela, um italiano tradicionalista, decidiu: “Este namoro acabou!” Maria, obediente, aceitou. Mas seu coração amargou.

Então, vieram os outros.

Miguel, o mecânico, tinha um negócio próprio, uma oficina promissora. Vivia com quatro irmãs, todas amigas de Maria, que a achavam uma boa cunhada, ótima dona de casa. Mas o cheiro de Miguel não a agradava. Mesmo de banho tomado, água de colônia da melhor no corpo, a graxa impregnava o nariz de Maria. E ela o mandou embora.

Depois, apareceu o viajante, vendedor que trazia da capital as novidades da moda, os melhores perfumes, as mais belas roupas, os objetos mais raros. Tonico quis levar Maria com ele. “Juntos conheceremos o mundo”, ele disse, ao se encantar com o bom gosto da moça, sempre impecável, altiva, segura, linda. Mas tudo o que Maria não queria era sair do seu canto. E Tonico se foi só.

Por fim, se apresentou Adelino, um engenheiro viúvo que chegou para construir uma estrada e foi ficando pela cidade. Ele já era rico. Logo de cara, lhe deu uma pulseira de ouro e lhe ofereceu um casamento de princesa e uma casa de rainha. Mas Adelino era mais velho e, para ela, era como se estivesse aceitando se casar com um tio.

Além dos amores, quanto mais a vida andava, mais Maria recusava o afeto dos parentes e amigos. Usava a grosseria gratuita e o isolamento voluntário. Foi se afastando de todos até que todos se cansaram dela. Envelheceu com beleza e parecia feliz com sua independência. Agora que nem isso lhe sobrou, quem a vê só sabe dizer: “Coitada, como é só essa Maria!”

Publicado na Diário DEZ em 24 de agosto de 2008

terça-feira, 14 de junho de 2011

Ela viu um gatinho

O beijo foi recebido assim, num susto. Beatriz realmente não estava esperando por aquilo. Ele era quase um menino, estava sentado no banco de trás do carro e ela ao volante. Então, quando ela se virou para dizer um tchau, Fernando a surpreendeu. Beatriz não sabia o que fazer. Só não rejeitou o carinho, aquela boca macia de homem moço, sem barba por fazer, uma delícia de beijo. Ela se deixou levar e, por um longo minuto, simplesmente esqueceu quem era e por que estava ali.

Do lado de fora do carro, Vilma também levou um susto quando viu a cena. Ela havia saído primeiro do carro e, no meio da chuva, correu para abrir a porta de casa, já que era tarde da noite. Virou automaticamente a chave na fechadura e se voltou para trás para esperar por Fernando, seu filho caçula. Mas, ao invés de dizer o último tchau para Beatriz, sua melhor amiga, o que viu foi o seu filho aos beijos com ela.

Vilma não havia percebido nada de suspeito entre os dois. Nenhum clima durante a festa, para a qual ela levou o filho apenas para espairecer. Era o aniversário de uma amiga das duas.

 — Vamos, Fê, vai ser legal você conversar com gente mais experiente, que já está batalhando no mercado há um tempão — disse Vilma ao filho.

Fernando estava naquela fase de não saber o que estudar, que faculdade seguir. Já havia iniciado dois cursos e agora pensava num terceiro.

— Só vi que os dois conversaram a noite toda. Eu havia pedido para Beatriz dar uns conselhos pra ele, sobre a faculdade. Quando os vi aos beijos, achei muito engraçado.

Beatriz, porém, ficou preocupada. Mais de dez anos mais velha que o rapaz, ela não sabia como encarar Vilma. Terminou o beijo, expulsou o rapaz do carro, disse tchau rapidinho e arrancou.

— Calma, gatinha, não tem problema, não — Fernando garantiu. Mas ela estava envergonhada.

— Eu não sabia o que fazer, achei que tinha perdido a amiga. Vilma não me ligou no dia seguinte e eu entrei em pânico. Mas, ao mesmo tempo, havia adorado o beijo — lembra Beatriz.

Só a vida dos dias de hoje pode explicar o que aconteceu depois. Vilma foi a responsável pela aproximação do casal. Num domingo, marcou um almoço em casa, os dois conversaram e se acertaram.

— Você não tem ciúmes? — eu quero saber.

— Já senti de outras namoradas dele, mas não da Beatriz. Acho até que ela corre mais perigo que ele, porque Fernando está na fase de não saber direito o que quer. Pode mesmo machucá-la.

Beatriz, porém, diz que encara uns arranhões.

— É lindo quando ele me chama de gatinha. Então agora também não o chamo mais de Fernando. Só o chamo mesmo é de gatinho.

Publicado em 17 de agosto de 2008 na Diário DEZ!

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Um tipo de palhaça

 — Ele achou que eu era uma vagabunda — me disse Cinira.

Era assim que ela explicava o fim de seu caso com Narciso. Os dois se conheciam há quase um ano e há três meses começaram a transar eventualmente. Não havia um compromisso formal, mas cada vez que rolava os dois ficavam nas nuvens. Pareciam um casal de apaixonados, com aquela insegurança comum a todo início de relacionamento. Narciso é o tipo de homem maduro que adora bancar o intelectual. Não é bonito, mas seu charme sempre resolveu tudo.

— Seu amigo é muuuiiito legal — me disse Cinira no dia em que eu os apresentei.

Logo avisei: — Cuidado. O Narciso não é um cara fácil. Se envolver com ele pode ser uma roubada.

— Fica tranqüila. Tenho experiência — desconversou Cinira, que tinha 45 anos e há três estava separada  Ela vivia com os filhos gêmeos, de 9 anos.

Mas foi tiro e queda. Ela se encantou com o jeito romântico de Narciso, que enviava e-mails diários de bom dia, textos engraçados à tarde e outros insinuantes antes do fim do expediente. Cinira resistia, até que um dia decidiu topar uma cerveja. Chegou ao boteco animada, mas teve uma surpresa: ele estava com outra a tiracolo. Minha amiga não perdeu o rebolado e fingiu que nem ligou. Mas, quando entrou no carro, desabou a chorar e me ligou, já se iludindo.

— Tem algo de estranho aí, não acha? — ela disse, fungando. — A mulher estava lá, mas ele ficou o tempo todo do meu lado. Está confuso. Tá na cara que não gosta dela!

É. A paixão já havia tomado conta de Cinira. Mesmo assim, ela esperou um novo sinal dele. Alguns meses mais tarde, Narciso finalmente procurou a minha amiga. Ali começou um romance. Cinira gostava dele, mas não queria forçar um compromisso. Geralmente ficavam na casa dele. Numa noite, porém, ele propôs:

— Vamos a um motel qualquer dia desses curtir uma tarde toda?

Ela topou. Marcaram no meio de uma tarde. Ele escolheu o dia da semana e o horário. Cinira estava excitadíssima. Inventou uma desculpa no trabalho e arrumou uma babá para ficar com os filhos a noite toda, se precisasse. Fez depilação, passou creme, fez as unhas. Uma hora antes da marcada, porém, Narciso enviou uma mensagem de texto pelo celular avisando que ia atrasar. Um cliente chato queria vê-lo. Ela respondeu que esperava ele avisar a hora que iria sair. Ele demorou uma hora para responder ok. Duas horas depois, Cinira mandou outra mensagem, perguntando o que fariam. E ele respondeu: “Sorry, mas ainda espero o meu cliente”.

 — E isso é tudo, Vivi . Faz uma semana. Não deu mais sinal de vida. Como se ele tivesse me descoberto na sessão de classificados. Então, o que posso pensar? Que, para ele, mulher apaixonada é assim: um tipo de vagabunda com cara de palhaça.

Publicado na Diário DEZ! em 10 de agosto de 2008

21/05/2011 - Com o padre pode


 A igrejinha no topo do morro não lhe dizia nada. O prédio simples não lhe inspirava nenhum sentimento nem curiosidade. Anita, de verdade, não se importava com a religião. O que ela queria era sair de casa, deixar o cabresto do pai, que a proibia de frequentar festas, sair com a turma e namorar. E, de repente, a igrejinha no topo da morro lhe pareceu uma ótima saída.
Soraia, sua melhor amiga, foi quem deu a dica:
-  Eu vou este final de semana a um encontro de jovens lá da igreja. Vamos passar num sítio.
-  Mas sua mãe vai deixar você viajar com eles?
- É que o padre também vai.
O olho de Anita brilhou. Ela sempre sonhou viajar sem a família. E bem que tentou ir ao passeio, mas não pode. Foi conversar com o padre e só o que conseguiu foi descobrir que, para ser do grupo de jovens, tinha de frequentar a igreja.
Foi por esse motivo que Anita começou a ir à missa todos os domingos. Também tentou se inscrever no grupo de jovens, mas de novo não conseguiu: não tinha a primeira comunhão.
Sem desistir, ela entrou no catecismo. Todo domingo à tarde, antes da missa, lá estava ela tendo aulas com as crianças pequenas. Empenhada,  logo conseguiu tomar a hóstia.
- Estou impressionado com você - foi o primeiro elogio que recebeu do padre Pedro.
Ela corou, seu coração bateu mais forte e um arrepio desconhecido tomou conta do seu corpo.
Jovem e bonito, o pároco estava na igrejinha há pouco mais de dois anos. E, na verdade, não era só o  empenho de Anita que o admirava. Ele a desejava e evitava pensamentos com a jovem.
Mas um fogo tinha acendido na adolescente e ela decidiu que ia conquistar o padre. Sempre por perto, disponível e insinuante, Anita aos poucos conseguiu quebrar as resistências do religioso e, depois do primeiro beijo, não teve o que pudesse segurá-los. Eles se encontravam até na sacristia.
Aos 17 anos, Anita começou a ter um caso com o padre Pedro. Aos 18, o primeiro filho deles nasceu. Ela foi expulsa de casa, mas Pedro assumiu o relacionamento, largou a batina e os dois se casaram. No civil. Nunca mais, porém, tiveram coragem de pisar na igrejinha do topo do morro.

28/05/2011 - A Última barriga

 Juracina já não aguentava mais. Aquela era sua quinta e última barriga. Sentia que seu corpo já não suportaria mais as mudanças impostas pela gestação. Só rezava para que a derradeira barriga trouxesse uma menina. Juracina amava seus quatro moleques, mas sonhava com uma princesinha, que se chamaria Cibele.
A bolsa estourou no final de uma tarde. Osvaldo, o mais velho, correu para chamar a parteira no sítio vizinho. A mulher mal teve tempo de chegar. A criança nasceu fácil. Juracina era boa parideira.
- É um garotão lindo! - anunciou a parteira.
A mãe não escondeu a decepção. Chorou, reclamou com Deus. Mas não ia rejeitá-lo. Porém, toda tristeza caiu por terra quando ela pegou o bebê para dar o peito pela primeira vez. Ele era o mais bonito dos cinco. E por ele Juracina sentiu um amor indescritível. Ela o chamou de Cicinho.
O garoto cresceu grudado na barra de sua saia. Não jogava bola, não se envolvia com os meninos das redondezas, não fazia travessuras como os outros. Em compensação, tudo o que a mãe fazia em casa ele sabia. Aprendia só de olhar. Até panos de prato ele bordava. Quando chegou a adolescência, começou a pentear a mãe e, depois, as primas. Na escola, aprendeu a maquiar as meninas.
Os mexericos e insinuações começaram. Os irmãos chamaram a atenção da mãe, já viúva.
- O Cicinho parece uma mulherzinha, mãe! Ele precisa de uma sova pra virar macho - ameaçou Roberto, o do meio e o mais violento dos cinco.
- Só por cima de meu cadáver - disse a mãe.
Quando Juracina caiu doente, foi Cicinho quem cuidou dela. Ele a mantinha limpa, medicada e cheirosa. Nunca a deixava só. Vencida pela doença, a mulher decidiu se abrir com os filhos. Sentia culpa, mas acreditava que o caçula precisava de proteção.
- Filhos, Cicinho é diferente, especial, eu sei. Acho que é porque eu queria muito uma menina... Então, quando eu morrer, Cicinho, não fique por aqui. Segue seu coração e vai ganhar o mundo.
Cicinho deixou o lugarejo um dia depois de Juracina morrer.  Só manda notícias para a família por cartão postal. Em 15 anos, conheceu mais de 20 países. No último cartão, contou que fez a operação de mudança de sexo. E, feliz, assinou: Cibele!