domingo, 28 de novembro de 2010

Uma mulher moderna

Publicado em 25 de maio de 2008

Teresa era uma mulher moderna. Professora de sociologia, com pouco mais de 30 anos, mãe de um menino de 11, separada do primeiro marido desde os 21, Teresa tinha a convicção de que era uma mulher moderna. E ainda de muita sorte. Afinal, pensava, tinha ao seu lado um companheiro também moderno: o doce Paulinho.
Viviam o que chamavam de amor livre — estavam juntos, mas não abriam mão de outras experiências emocionais ou sexuais, caso aparecessem. Publicitário sem emprego fixo, Paulinho fazia o tipo alternativo. Adorava política, e vivia envolvido em reuniões de partidos de esquerda e em projetos sociais e sindicais. Morava sozinho num sobradinho da Vila Madalena, que mandou pintar de vermelho. Não tinha muitos móveis, mas dizia que possuía o suficiente para viver bem. Seu orgulho era a sua coleção de CDs de rock. Também cultuava uma estante cheia de livros, enfeitada por dois porta-incenso, três cinzeiros, um narguilé e uma caixinha.
Ele e Teresa se conheceram numa tarde de sol, durante um show no Parque do Ibirapuera. Ele estava sozinho e ela com o filho, na época com 7 anos, e algumas amigas. A camisa feita de pano de saco que ele usava logo chamou a atenção da professora, que também adorava roupas do tipo hippie-chique. Logo trocaram telefones, descobriram que moravam relativamente perto (ela vivia em Perdizes) e começaram a namorar.
Foram quatro anos onde tudo parecia perfeito, com idéias e discursos andando juntos.
— A minha relação com o Paulinho é muito madura — dizia Teresa, orgulhosa, sempre que encontrava um grupo de meninas curiosas e ávidas por um bom namoro.
Suas alunas tinham pouco mais de 20 anos, a maioria passando por aquela fase em que tudo do coração é urgente e, ao mesmo tempo, confuso. Para as jovens, Teresa era um exemplo de mulher madura e bem resolvida.
— Vocês, meninas, sofrem por não perceberem que relacionamento tem que ser aberto. Veja eu e o Paulinho. Eu canso dele, às vezes, sabe? E tenho os meus namorados, lógico. Aliás, o Paulinho está precisando namorar. Uma de vocês não quer namorar um pouco o Paulinho?
De tanto oferecer, uma vez, sua aluna Juliana topou a brincadeira. Mas ninguém imaginaria o que viria depois. Aquilo que começou como um empurrão da professora, uma brincadeira para o seu par relaxar e variar, transformou Paulinho. Juliana também gostou do que provou. E o “relacionamento perfeito” escorreu pelos vãos dos dedos de Teresa. Suas convicções sobre o amor livre não lhe serviram para nada. Teresa, que parecia tão equilibrada, enlouqueceu.
— Julianinha, sua vagabunda! Você roubou o meu homem! — gritou ela, durante uma madrugada, bêbada, na frente da casa da agora namorada de seu ex. A moça ficou só olhando, escondida atrás da persiana da janela.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Eles seriam felizes

Publicado em 18 de maio de 2008 da Diário Dez

Andréia tinha certeza: César fez o que era certo. Silenciou. Desapareceu. Na época, ela ficou triste. Aquele encontro, o primeiro depois de 25 anos, era o prenúncio de algo. Mas não devia prosperar.
Andréia e César eram colegiais quando namoraram. Juntos, conheceram o amor. Estavam apaixonados. Mas ela tinha 15 e ele, 18. E a família de César decidiu mudar de estado — o romance passou a ter data e hora para acabar.
Ficaram tristes, mas, na despedida, não houve choro ou promessas. Eram jovens e sabiam que não podiam esperar nada um do outro.
Durante dois anos, trocaram cartas e cartões de Natal. Mas, aos poucos, o distanciamento foi inevitável. A vida lhes deu uma profissão, casamento e filhos.
César se formou em Medicina. Andréia partiu para a Arquitetura. Nunca, porém, se esqueceram.
Um dia, por curiosidade, Andréia procurou o nome de César na internet. “E descobri o e-mail dele!”.
Mesmo com o coração acelerado, ela enviou uma mensagem cuidadosa, pois não sabia em que tipo de pessoa César tinha se transformado. Minutos depois, veio a resposta.
“Não acredito. É você mesmo? Que surpresa feliz!”.
Ficou decidido que iam se encontrar. Em duas semanas, ele participaria de um congresso e marcaram um almoço.
Na véspera, eles mal dormiram. Pela manhã, não fizeram nada direito. Meio-dia em ponto ela estava no saguão do hotel onde era o encontro. Ele já a esperava. Um se jogou nos braços do outro.
--Foi como um impulso. Era pura saudades”, ela lembra.
Caminharam até um restaurante ali perto, escolheram uma mesa ao lado de uma janela e começaram a contar o que fizeram da vida. Mostraram fotos dos filhos (cada um tinha dois) e dos companheiros e falaram de suas conquistas e perdas. E, em cada palavra, um percebia que o outro era feliz. Relembraram dos tempos de namoro e, quase ao mesmo tempo, pensaram: “Nós, juntos, também seríamos felizes”.
Num dado momento, sem que ela esperasse, César colocou a mão sobre a mesa e tocou a dela. Seus corpos tremeram.
Ao voltarem para o hotel, ele pôs o braço sobre os ombros dela e disse: “Eu não contei pra minha mulher que eu ia encontrar uma amiga”, ele disse. Andréia sorriu sem jeito porque, na sua casa, também havia feito segredo sobre o encontro.
A hora voou e eles tinham que voltar aos seus compromissos. Para ela, foi difícil entrar no táxi e deixá-lo novamente. Prometeram se ver mais e trocar mensagens. Ele pegaria o vôo para casa naquela noite. Depois de mais um longo abraço, Andréia entrou num táxi. Olhou para trás e acenou, até perdê-lo de vista.
Já se passaram três anos. Ela nunca mais soube dele.
— O que acha que aconteceu para ele nunca ter dado notícias? — eu lhe perguntei outro dia.
Sem nenhuma mágoa ou tristeza, ela respondeu:
— É que ele sabia que, se começássemos, nunca mais pararíamos.
:-)

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Saudades da vida

Publicado na revista Diário Dez em 11 de maio de 2008

Ela era mulher de 47 anos. Solteira por opção, Lenice era feliz: realizada no trabalho, vivia bem com a família e cercada de amigos. Mas (sempre há um mas), apesar de estar bem, às vezes caía numa certa melancolia.
Sentia um não-sei-quê de tristeza sem motivo, mais parecido com uma saudade de algo que não conhecia. Ao mesmo tempo, a sensação intuitivamente lhe dava uma estranha esperança por algo que não tinha a menor idéia do que podia ser.
Mais jovem, Lenice pensava em se casar. Sonhava com o vestido branco, a igreja enfeitada de flores, a lua-de-mel, a casa própria decorada do seu jeito. Mas, para ela, tudo isso só tinha lógica se fosse ao lado de um par perfeito.
Seu sonho, porém, nunca deu certo. Não aceitava traições e conheceu várias. E preferia se afastar quando o relacionamento começava a se transformar naquele jogo de inevitáveis ataques deliberados, iniciado sempre quando um parceiro quer magoar o outro.
No fundo, Lenice alimentava o sonho de encontrar um amor, mesmo sabendo que era um desejo que parecia adolescente e romântico demais para quem tinha 47.
Há pessoas que descobrem o amor de forma inesperada. Tem quem, num curto espaço de tempo, vive um romance intenso e sem pudores. E pares que, assim que se conhecem, parecem companheiros de longa data.
Foi um amor com todas estas características juntas que Lenice viveu.
O namoro começou num domingo, graças a uma amiga que lhe apresentou um colega de trabalho, Caetano.
“Eu já estava desencanada e pensei: ‘Mais um que vai virar amigo’. Mas conheci mesmo foi o meu príncipe encantado”, me contou outro dia.
A atração entre os dois foi imediata. Olhares curiosos, conversa mansa, desejo.
Lenice viu partir daquele homem uma ternura que não conhecia. E, depois daquele dia, pareciam estar juntos desde sempre. Famílias se conheceram, novos laços se formaram, e uma felicidade nunca vivida parecia que nunca ia acabar. Lenice lembrava-se da velha melancolia e sabia: “Era dessa vida que eu sentia saudades”.
Seis meses depois de se conhecerem, eles foram atropelados por uma realidade trágica, mais parecida com um drama de cinema: Caetano caiu doente. E não era uma bobagem, mas um mal incurável no estômago.
Nos três meses seguintes, Lenice praticamente não saiu de seu lado. E, a cada dia, ela acompanhava a dor do homem que amava sabendo que, aos poucos, ele morria. A ela só cabia esperar.
Caetano se foi há um ano. Lenice tenta tocar a sua rotina. Mas, depois da morte, a velha melancolia voltou a aparecer. Agora, porém, ela sabe do que sente saudades.
“Vivemos nove meses como se fossem uma vida inteira e intensa. E eu me sentia mulher dele, de verdade. Sei que encontrei um amor que poucas pessoas sentem, um amor que transcende o corpo e o sexo”.

Após a meia-noite

Publicado em 04/05/2008

Mariana tinha pouco mais de 14 anos quando descobriu que estava grávida. Não sabia quem era o pai. Estava louca no dia. E se desesperou tanto que pensou em abortar. O que faria com o bebê? O que seria de sua vida?
Mas, aos poucos, foi gostando da idéia de ter um pequeno ser para cuidar. Soube pelo ultra-som que seria uma menina. E, numa noite, depois de sentir pela primeira vez a criança mexer em seu ventre, lhe fez a seguinte declaração:
“Agora que passou o medo do escuro da meia-noite, posso dizer que aceito ser sua mãe. Serei uma mãe precoce, você sabe, mas, no futuro, a gente poderá ir juntas a algumas baladas. Só não vou me drogar tanto como já fiz. Mas talvez você, algum dia, tenha que me carregar para casa. Prepare-se.
Nos primeiros dias da gestação, chorei muito de desespero. Não se entristeça por isso, porque já passou.
Nesta tarde, senti você se mexer na minha barriga e nunca senti emoção e felicidade iguais.
A partir de hoje, vou colocar ao lado da barriga uma música legal pra você escutar toda noite e já ir se acostumando a sons de qualidade. Talvez algum rock progressivo, ou algo de Toquinho — ainda vou escolher —, mas você terá uma música para não se esquecer.
Tentarei ter um parto normal, mas, se na hora o médico disser que você corre riscos, permitirei a cesariana sem vacilar.
Pretendo lhe amamentar até os 2 anos, pra você crescer forte. E vou sempre te ninar no colo, tenha certeza, cantando baixinho a mesma canção que vou escolher daqui a pouco.
Mas não pense que sua vida será só moleza. Você não terá tudo o que quiser, e nem na hora que quiser. Quanto mais espernear, mais dura serei.
Vamos brigar a partir do momento em que você começar a andar, mas nunca vamos dormir sem nos falar, sem trocar beijos e afagos.
Você também não vai comer só tranqueiras. Não sei como farei isso, porque eu mesma adoro doces e salgadinhos, mas resistirei por você.
Quando entrar na escola, estarei ao seu lado nas lições de casa, irei às reuniões chatas de pais e babarei nas festinhas de final de ano, vendo você fantasiada de flor ou de borboleta, dançando sem jeito.
Seremos cúmplices, tenho certeza. Mas acho que na sua adolescência vou me atrapalhar, como minha mãe se atrapalha comigo. Como não brigar e não querer que você faça o que eu acho certo? Como evitar que caia nas mesmas ciladas em que eu caí, confiar na vida e deixar você seguir o seu caminho?
É, não vai ter jeito! Na idade adulta, você terá que me perdoar por todas as discussões feias que teremos. Mas vou preferir mil vezes pagar um terapeuta, com quem você falará sobre nossa tumultuada relação, do que perder você para sempre”.
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domingo, 25 de julho de 2010

01/02/2009 a promessa do Exu

Uma gargalhada vigorosa tomou conta do terreiro. Selma já nem se lembrava mais, mas Seu Zé Caveira tinha a memória boa. Logo que a viu, ele soltou a risada e emendou a pergunta: — E, aí? Tá satisfeita? Selma quase morreu de vergonha. Seu Zé perguntava na frente de todo mundo, ou seja, de todos os outros filhos de santo que estavam lá. Dezenas de olhares curiosos acompanhados de sorrisos maliciosos se viraram para ela, que corou como uma adolescente pega em uma mentira: — Não, Seu Zé, eu não pedi nada. O senhor sabe. — Não pediu, mas queria e eu dei. E caprichei, né? — ele dizia, enquanto a cutucava com o cotovelo, se divertindo com a falta de jeito de Selma. — Estou gostando sim, Seu Zé, estou — respondeu, concluindo que seria a única forma de fazer aquele Exu calar a boca. O motivo da conversa tinha começado uns seis meses antes. Selma frequentava o terreiro de umbanda do bairro onde morava desde menina. Sempre gostou de se aconselhar com o Preto Velho, de levar doces para as crianças e se divertia com o barulho que o Caboclo fazia quando chegava. Participava com prazer das giras, cumpria sem falta os rituais para Oxum, seu orixá, e sempre mantinha acesa a vela para o seu anjo da guarda. Só não gostava mesmo era da virada de esquerda, que tinha que ser realizada de tempos em tempos. Naquela noite de virada, Selma só foi porque era uma obrigação religiosa. Ela havia brigado com o namorado — tinham acabado pela quinta vez — e chegou cabisbaixa ao terreiro. Seria ótimo abrir o coração, mas não gostava do Exu e não queria falar do seu problema com ele. Mas não teve jeito. Ele puxou a conversa: —Tá assim por quê? Brigou com o macho, é? Ele não presta, e você é uma quenga porque quer ficar com ele — disse o Exu para ela, sem meias palavras. — Não é nada, Seu Zé. Eu só estou meio triste — respondeu, tentando encerrar ali a conversa. Foi então que ele soltou a promessa: — Eu sei o que te falta. Mas, pode deixar, vou arrumar um homem pra você. Deixa comigo! Selma nem deu bola. Meses depois, conheceu Ramiro e os dois começaram um namoro sem muito compromisso. Quando teve que ir a outra virada de esquerda, nem se lembrava mais da promessa do Exu: — E, aí? Tá satisfeita? Eu não disse que ia te arrumar um homem? E esse aí é dos bons, hein? Eu garanto — disse o Exu, com uma gargalhada sonora. Se conheceu Ramiro graças ao Exu, Selma não tem certeza. Mas o fato é que eles se casaram, tiveram três filhos e estão juntos há 15 anos. As crianças já eram grandes quando decidiu contar ao marido a história do Exu. Tinha medo da reação dele. Mas, quando soube, Ramiro deu uma bela gargalhada, bem parecida com aquela que o Exu soltava no terreiro.

25 /01/2009 um vício de mulher

 Ylana não era mais uma mocinha quando conheceu Vlad. Ela fazia parte de um grupo evangélico que pregava de casa em casa, quase sempre aos domingos de manhã. Mulher feita, madura e firme, ela tinha uma beleza incomum quase profana, que preferia reprimir com orações. Já Vlad fazia parte de um outro tipo de grupo: o do boteco da esquina, da turma que bebia de manhã até cair na madrugada. Vlad amanhecia quase todo dia no banco da praça, ou onde quer que a loucura da noite o levasse. Para os amigos, era um deus. Para os de casa, o incorrigível, o imprestável. Ele mesmo não ligava para o que diziam. Só queria saber de diversão, e de morrer com um copo na mão. — Assim o conheci. Numa manhã de domingo, ele na mesa do bar, cercado de homens, copos e garrafas. Seu olhar me atravessou — relembra Ylana. A cena era inusitada. Enquanto o pastor, cercado de crentes e com a bíblia na mão, tentava fazer um sermão, a turma do funil vaiava e gritava, mandando o grupo evangélico ir embora. Eles gritavam que não queriam perdão, nem redenção. Diziam ser felizes ali. Mas o pastor não se importava e levantava a voz, tentando de todas as formas converter alguma alma, para ele, perdida. Foi no meio daquela balbúrdia que Ylana e Vlad se viram pela primeira vez. E, por longos segundos, não pareciam pertencer àquele lugar — estavam hipnotizados um pelo outro. Ele, pela beleza dela. Ela, pelo carisma dele. Quando se deu conta do que acontecia, Ylana tentou disfarçar. Respirou fundo e entregou a Vlad uma revista e um panfleto com uma oração. Ele reagiu segurando forte o pulso da moça, que se esquivou e saiu do bar. Vlad se levantou no meio da confusão de vozes e protestos dos amigos e saiu também, a segui-la, trôpego. No meio da praça, percebendo que ele estava atrás dela, Ylana se virou: — Para de me seguir. Eu sei o que você quer e também quero. Mas você também quer a morte de tanto beber e eu não pretendo ver isso acontecer. Então, se a gente vai continuar daqui, você vai ter que se converter, se regenerar. E Vlad fez o que parecia ser improvável: parou de vez de beber. — Mas ele não deixou de ter um vício. Ou melhor, nós dois ficamos viciados um no outro — conta Ylana. Se Vlad deixou de ir ao botequim, Ylana também largou as orações. Para ela, Vlad era um desafio diário, um homem que a ensinava a ser a mulher que nunca tinha sido. Para ele, Ylana era um deleite que dispensava o acompanhamento da cachaça. Os dois se descobriam a cada instante e se bastavam. E, quando passava pelo bar e os velhos amigos perguntavam se tinha virado crente, ele respondia: — Deus me deu uma dádiva, mas a minha crença é só essa mulher chamada Ylana.

18/01/2009 o escravo branco

Paulo ficou com um ódio mortal de Leilane quando ela lhe disse não. Afinal, os dois estavam a sós, ao lado daquela cachoeira, nus, e ele louco de desejo. Mas Leilane parecia não se importar com a sua presença. Era como se ele fosse só mais um elemento daquela natureza praticamente intocada. O pior momento foi quando ela, descalça, não conseguiu andar pela mata, por causa de espinhos. Ele, então, como um escravo branco, a pegou no colo e a levou para um gramado macio. E, mesmo assim, mesmo percebendo e sentindo a força de Paulo, Leilane se manteve impassível, pior que uma virgem. — Que cena mais bucólica foi aquela. Eu, com esse meu tamanhão, pelado, no meio do mato, carregando aquela morena no colo, que também estava nuazinha, sem conseguir dar nem um beijinho nela! Só pensava numa coisa: o que a turma lá da Mooca vai falar de mim quando souber dessa história? Fiquei com tanta raiva que, no fim do passeio, até xinguei a menina — me contou Paulo, dia desses. Leilane não era uma moça como as com que Paulo estava acostumado conviver. Ela fazia o tipo “alternativa”: gostava de comida vegetariana, meditava e era naturalista. Se conheceram naquela viagem. Dividiram o banco traseiro da Parati de Fábio, vizinho de Paulo e namorado de Aline, amiga de Leilane. Também dividiram o quarto na pousada barata de Carrancas, cidade no sul de Minas que na época começava a atrair amantes de ecoturismo. Paulo soube depois que Leilane só aceitou viajar como parceira de um completo desconhecido porque queria desaparecer de São Paulo por uns dias. Estava deprimida por causa da morte de um parente. Quando o convidou para a viagem, Fábio não lhe contou isso. Disse apenas que Aline ia levar uma amiga para dividir o quarto com ele, e que a menina era bonita. Paulo logo se animou. Ao vê-la no carro, naquele início de feriado prolongado, só conseguia imaginar “tudo” o que os dois poderiam fazer juntos. Mas Leilane queria paz. A última coisa que procurava era uma aventura amorosa. E, para piorar, Paulo sentiu que não a atraiu em nada. A moça vivia se esquivando dele e procurando o isolamento. Ele insistia de todas as formas, mas ela parecia não se importar em ser cruel. — Eu ainda tentei catá-la durante a noite. No quarto, eram duas camas de solteiro. Antes de apagar a luz para dormir, eu puxei a cama dela e a encostei na minha. E sabe o que ela fez? Me deu um beijo no rosto, me disse “boa noite”, apagou a luz e virou as costas para dormir. Me segurei para não fazer uma bobagem. No dia seguinte, brigamos e a xinguei de frígida. Mas hoje, pensando bem, acho que Leilane estava certa: não era afins, não deixou rolar. Mas eu por muito pouco não me transformei em um troglodita imbecil.

11/01/2009 DENISE ESTREMECEU

Denise estremeceu quando ouviu a voz grave, meio rouca, do outro lado da linha. De imediato, não conseguiu reconhecê-la, mas sabia que pertencia a alguém que tinha passado por sua vida. — Oi, meu nome é Lia e procuro uma moça chamada Denise, que morou em Santana nos anos 80. Achei seu número na lista. Você a conhece? — Sou eu mesma — respondeu Denise, seca. — Oi, tudo bem? Que bom ter encontrado você. É a Lia, lembra-se? A gente morava na mesma rua e íamos juntas pra escola, no colegial. Como você está, menina? É lógico que Denise se lembrava. As duas eram muito próximas, confidentes até. Mas Denise quis se afastar da amiga e a apagou da memória. Não fez de caso pensado. Mas, agora, escutando a mesma voz ao telefone, percebia o quanto aquela menina, agora mulher, a incomodava. O caso foi o seguinte: Denise tinha 17 e Lia, 15. Denise, como toda adolescente, tinha um amor secreto: Ronaldo. Quando apresentou o rapaz à amiga, os dois se apaixonaram. Denise fez de conta que não se importou, mas se remoía de raiva. — Eu não ligo! Ciúmes é bobagem. E eu não tinha nada com ele mesmo — garantiu para a amiga, assim que ela contou para Denise que estava namorando Ronaldo. O namoro adolescente durou pouco. Ronaldo foi embora para outra cidade, Lia mudou de escola e Denise entrou na faculdade. Os três seguiram suas vidas, se formaram, casaram e tiveram filhos. Passaram-se 25 anos. Até que o telefone de Denise tocou naquele fim de tarde de quinta-feira. — Então, Denise, você se lembra do Ronaldo? Fiquei anos sem notícia dele, mas acabei o encontrando no Orkut. Ele hoje é um engenheiro químico dos bons, mora fora do país com a família, mas chega semana que vem para dar uma palestra em São Paulo. Me mandou um e-mail no começo da semana. Pensamos em reunir a turma da época. Custei pra te achar, menina! Que saudades! “Saudades!”, duvidou intimamente, ao mesmo tempo que sentia renascer no coração o ressentimento, inacreditável por ter ficado adormecido por tantos anos. “E eu que achava que havia superado esta história”, pensou. A reação dela foi rápida: — É lógico que eu vou. É só me mandar as coordenadas por e-mail — mentiu. Quando desligou, correu para trocar de número, mandar tirar seu nome da lista e desativar o e-mail: “Eu é que não vou mexer em um sentimento que, tenho certeza, voltaria a doer demais, sem que eu pudesse exercer nenhum controle sobre ele”.

04/01/2009 um presente da vida

Tinha pouco menos de 30 quando deixou a tranquilidade do interior, carregando consigo toda a família. Atitude corajosa para uma época em que mulheres não tomavam decisões. Anunciou a notícia à irmã mais velha e solteira, que tinha lá seus 40. Eram as duas, o pai senil e três irmãos adolescentes — duas moças e um rapaz. Os demais parentes — irmãos casados, tios e primos — nem foram consultados. Quando souberam, ficaram surpresos, até tentaram mudar o seu projeto, mas logo desistiram. Sabiam que ela estava ferida demais para continuar lá. Leila era uma mulher com raiva, mas também não aceitava a amargura. A sua raiva a jogava na vida, a colocava em movimento. Por isso, deixar o cotidiano conhecido foi a única saída que vislumbrou diante da dor. Traída pelo noivo, com o pai doente e falido, Leila estava cansada de ser o assunto da cidade: suas amigas de infância, as candocas nas esquinas, os bêbados nos botecos, todos pareciam segui-la com o olhar, enquanto pensavam: “Coitada! Foi só o pai ficar pobre e o noivo a trocou por uma mais rica”. O que mais a incomodava era a falsa piedade nos olhares. Ela, professora, sem dificuldades conseguiu a transferência para São Paulo, onde encontrou paz. Virou a moça madura, simpática e respeitável do bairro. Mas não namorava ninguém. Encaminhou os três irmãos mais novos, que ajudou a casar, e cuidou do pai até a sua inevitável morte, de velhice. Mais de 10 anos após a mudança, ela e a irmã eram conhecidas entre os vizinhos como “as solteiras”. E não ligavam. Gostavam da independência. Até que numa tarde, enquanto escolhia numa loja de tecidos um corte de seda, um vendedor fez seu coração acelerar. Leila quis dizer a si mesma que aquilo não era nada. Mas o homem não saía de sua cabeça. Ficou feliz como nunca quando, no sábado, recebeu dele uma ligação, um convite para irem ao cinema. Entre os dois, a conversa era fácil e os gostos, comuns. Dorival, porém, era separado e tinha dois filhos jovens. Leila, mais uma vez, surpreendeu a todos: aceitou o namoro e, dois meses depois, foi morar com ele. Pela primeira vez na vida, Leila se sentia uma mulher completa: companheira, amante, cúmplice. Mas a plenitude durou pouco. Dois anos após conhecê-lo, saiu cedo para trabalhar e o deixou ainda na cama. Quando voltou, ele continuava deitado. Ela estranhou, foi acordá-lo, mas ele não respondeu: seu coração havia parado. Todos apostaram que Leila ia enlouquecer, morrer de tristeza. Mas ela se recusava mesmo a se entregar à amargura. É que pensava assim: viver o amor havia sido um presente da vida. E, para ela, já era o suficiente para se considerar feliz para sempre.