UMA DOR BEM REAL
O muro quebrado continua lá. Já são quase sete
anos. Depois da suave curva à direita, é uma destruição
em formato de triângulo na mureta caiada
que separa as pistas da rodovia.
Orapaz de 19 anos se achava o máximo. Evandro
estava no primeiro ano da faculdade de direito,
havia ganho de presente dos pais um carro novo
e não tinha nenhuma preocupação na vida.
Naquele junho comsol de rachar, comoquase
sempre ocorre no inverno paulistano, saiu de
short, camiseta e chinelões disposto a se divertir.
Era domingo e início de tarde. Tudo hoje é sem
sentido, esquisito mesmo, até o tempo.
Jogo do Brasil na Copa doMundo. Evandro
passa na casa de Plínio, amigo que mora na Mooca,
e avisa que a galera vai se encontrar num barzinho,
para ver a disputa em um telão. O estudante
segue na frente com um primo. Em outro carro vai
Plínio. Todos querem chegar rápido. Mas Evandro
adora correr. O adesivo como símbolo de rachas
grudado na traseira de seu carro diz para o bom
entendedor de que praia ele é.
Emparelhado com o carro de Plínio, Evandro
acelera sem medir consequências. Fica feliz porque
deixa o amigo para trás. Mas não percebe a
curva. E a curva de repente se fecha mais. Ele perde
o controle. O carro atravessa uma, duas, todas as
faixas da rodovia, e bate na mureta branquinha,
recentemente caiada. Capota. Comas rodas para
cima, o veículo se arrasta por mais uns 100 metros,
até parar por falta de impulso.
O primo carona, preso ao cinto, fica firme no
banco e tem só escoriações. Mas Evandro, que
nunca acreditou no fim da vida, não tem a mesma
sorte. Está sem cinto e morre no local.
Carro, corpo, rosto, tudo fica irreconhecível.
Para não atrapalhar o trânsito, o que sobrou do rapaz
é colocado na calçada. Quando chego, de longe,
percebo a mãe sendo retirada da cena. “Melhor
assim”, penso. “Não preciso falar com ela. Tenho
que escrever a história do acidente e só”.
Mas ela caminha em minha direção e, ao cruzar
comigo, segura o meu braço e diz, como se me conhecesse:
— Não acreditaria se não visse commeus próprios
olhos. É o início do fim de minha própria vida
que está jogado naquela calçada imunda.
Foi a primeira vez que vi a dor real estampada
no rosto de uma mulher.
O muro quebrado continua lá. Já passou a outra
Copa.OBrasil não foi campeão.Mas omuro,
cada vez mais cinza, está do mesmo jeito. Uma
marca de triângulo mal feita na minha memória.
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