segunda-feira, 28 de março de 2011

Um prêmio da vida

Eles chegam à padaria todo dia muito cedo. Vêm de carro e param do outro lado da rua. Ele se preocupa em sair mais rápido, para a acompanhá-la enquanto ela deixa o carro. Deixa a mulher seguir um pouco à sua frente, sempre observando os lados, para garantir que a rua está livre para ela atravessar sem perigo algum.

Todos os dias eu os encontro na padaria. Deise é discreta. Usa sempre calças em tons escuros, blusas de cores neutras, sem decotes. Não é bonita. Mas é altiva, imponente. Com 38 anos, mede 1,70, é magra, tem cabelos muito pretos, que usa na altura dos ombros, e ostenta traços orientais. Foram eles que um dia chamaram a atenção daquele homem. Adilson não é oriental, nem descendente. Seus avós vieram da Espanha e de Portugal. É bem mais baixo que Deise, tem cabelos totalmente brancos e já alcança os 50. Usa terno, camisa bem passada, às vezes gravata, e é muito mais falante.

Não aparentam nada em comum. Mas quem os vê juntos não tem dúvida de que foram feitos um para o outro. Adilson sempre se sentiu atraído por orientais. Já na adolescência, época em que rapazes e moças gostam de definir seus “tipos preferidos”, as meninas de olhos puxados chamavam sua atenção. Nunca, porém, conseguiu conquistar o coração de nenhuma.

— Dizem que os japoneses são tímidos. Mas eu é que travava na frente de uma japonesa. Elas me intimidavam — lembra.

Foi só na maturidade, quando já tinha fama de tio solteirão, que Adilson teve coragem para abordar uma japonesa que o atraía: Deise, a vizinha do apartamento da frente. Ele a conquistou com uma atenção contínua, um apoio sem cobranças, uma delicadeza em qualquer situação.

Hoje, ela é a sua vida. Para ele, cada movimento dela é como um prêmio. Tem por ela um amor tão grande que dá medo: o que pode ocorrer se um dia Deise, tão dona de si, descobrir outro rumo?

Por enquanto, porém, tal possibilidade parece que não existe. Adilson acredita que a delicadeza na vida rotineira é a diferença que pesa para o bem na hora que as crises reais ameaçam uma relação. Para ele, o cuidado diário com o outro é um tipo de crédito que ameniza os problemas, que inevitavelmente chegam à vida de todos. Deise gosta disso, e aceita os cuidados do marido sem restrições. Quando entram na padaria, ele com a mão esquerda tocando levemente a sua cintura, o balconista já sabe o que preparar:

— Dois pãezinhos na chapa — grita para o chapeiro, enquanto serve os dois pingados.

Adilson, então, pega os copos quentes e os leva até a mesa onde Deise está. Ela retribui com um sorriso. Sem pressa, tomam o café, pagam a conta e saem. De lá, cada um seguirá a pé para seu trabalho. No tchau rotineiro, Adilson a abraça de leve, a beija com um toque nos lábios e deseja:

— Um grande dia para você.

Publicado na revista Diário DEZ! em 6 de julho de 2008




14/03/2010 - Dores da traição

DORES DA


TRAIÇÃO

Magali sempre falava para

quem quisesse ouvir:

— Eu não perdôo a traição.

Parecia certo.Afinal, Juarez

teve coragem de arrumar outra

mulher quando a filhinha

deles ainda era um bebê.Nada

parecia mais cruel e egoísta.

Com a maternidade,Magali

havia perdido um pouco

da exuberância. Também não

tinha a mesma disposição para

o sexo. Mas era uma fase — todo

mundo dizia — que passaria

quando a criança crescesse

um pouco. Por isso,Magali só

teve apoio quando decidiu colocar

Juarez para fora de casa.

Ele foi morar com a outra.

Só que ninguém podia negar

uma coisa: Juarez era um

bom pai. Ele era amoroso e

atencioso. Irresponsável, é certo,

mas seus olhos tinham

sempre um brilho de paixão

quando viam a pequena Isabela,

chamada de “meu docinho”.

Isso, porém, não tinha

importância diante do ódio

que Magali alimentava pelo ex.

E ela criou a filha repetindo

quase que diariamente:

— Você não tem pai.

Isabela cresceu impedida

de amar o pai. Toda vez que ele

aparecia, a mãe soltava um

alerta— uma frase para diminuí-

lo ou para demonstrar

que ele era sempre um perigo.

“Cuidado para ele não levar a

sua mesada” ou ainda “Pergunta

para ele quando vai pagar

a pensão direito”.

A pequena via o pai com

uma curiosidade carinhosa.

Queria do fundo do coração se

aproximar dele, saber o que

pensava. Mas sempre parava

no aviso autoritário da mãe:

— Seu pai não presta!

No fundo, Isabela sentia

falta do pai, mas nunca reconhecia

isso. Se tentasse, o que

vinha era a culpa que a mãe logo

tratava de fazê-la sentir:

— Ele nos traiu!Me deixou

quando você ainda era bebê.

Mas ainda bem que crianças

se transformam emadultos.

Um dia, Isabela arrumou

um namorado. A mãe não

gostou e passou a criticar o

moço do mesmo jeito que falava

mal de Juarez. E também escorraçou

o segundo, e depois o

terceiro, e ainda o quarto namorado

da filha. Ela era antipática,

arrogante e grosseira

com os rapazes. E, pelas costas

deles, sempre repetia amesma

ladainha preconceituosa.

— Esse aí parece outro traste

igual ao seu pai.

Foi então que Isabela começou

a desconfiar que algo

estranho acontecia com Magali.

Umdia, no meio de uma

das brigas que então eram frequentes

entre elas, encontrou a

palavra para o que a mãe era.

— Você é ressentida! Não

consegue amar ninguém! Por

isso não quer que eu namore.

Quase romperam, mas não

foi dessa vez. Só que ainda demoroumuito

até que encontrasse

alguém compaciência

para “levar” Magali com jeito.

Até que Jorge apareceu. Rapaz

bonachão, mas muito apaixonado,

ele resolveu enfrentar

Magali com um pouco de sarcasmo.

Cada patada da sogra

era retribuída com outra. Depois,

aprendeu a ignorá-la. E,

quando decidiram se casar, só

impôs uma condição: queria

morar longe da casa da sogra.

Quanto ao pai? Bem, Jorge

já tinha ajudado nisso também.

Foi ele quem procurou

Juarez e promoveu vários encontros

entre pai e filha. Juarez

agora era um velho irresponsável,

mas de bom coração. E, o

que era mais importante: seus

olhos ainda brilhavam de paixão

quando viam Isabela, sua

pequena e doce Isabela.

07/03/2010 Um desejo infeliz

UM DESEJO


INFELIZ

O casamento, enfim, aconteceu.

Não foi pomposo como

Carolina tinha sonhado, com

vestido branco bordado, três

damas de honra, trombetas

anunciando a sua entrada na

igreja cheia de flores e gente.

Também não teve festa, só um

bolinho e uma champanhe para

os pais e os padrinhos. Tudo

muito sem graça. Carolina estava

feliz, mas ainda não tinha

se livrado do desconcerto.

Foi o casamento com o homem

que queria — e que amava

— e com o qual, sabia, seria

feliz. Namoraram oito anos,

eram sócios e há três compraram

um apartamento em

construção já pensando em se

casar. Eram três quartos, estava

todo mobiliado há um ano e

meio, sem ninguém vivendo

lá. E Evandro era louco por ela.

Foi capaz de perdoá-la. E ela tinha

sido “baixa”, como dizia a

sua sogra. Mas, no fundo, não

sentia culpa. O que sabia é que

tinha como missão de vida reconquistar

a sogra, Maria

Odete, que a desprezava.

Também, pudera! O casamento

dos dois devia ter ocorrido

há um ano e meio. Convites

distribuídos, festa contratada,

igreja reservada. Maria

Odete e Carolina tinham organizado

o casamento juntas, e

ele seria grandioso. Sogra e nora

se davam muito bem, tinhamos

mesmos gostos. Mais

do que a mãe de Carolina, foi

Maria Odete quem ajudou a

moça a encontrar o vestido

perfeito. Nele, a moça parecia

uma princesa, para orgulho de

quem? Da sogra.

Mas há coisas na vida que

são mesmos inexplicáveis.

Principalmente as fantasias secretas.

Há quem nunca se arrisque

para realizar um desejo.

Mas há quem faz o que tiver de

ser feito para se sentir realizado.

E foi o que Carolina fez.

A moça tinha a fantasia da

traição. Achava excitante o jogo

da sedução e se sentia mais

mulher assim. Brincava de seduzir

com frequência, mas

nunca tinha ido às vias de fato.

Foi por isso que decidiu, há

três dias do seu casamento, levar

um “amigo” para o seu

apartamento novinho. Queria

ir até o fim, para estar mais excitada

na lua de mel. Omoço

era um colega da faculdade.

Naquela tarde, se encontraram por

acaso no shopping e

começarama fantasiar sobre o

risco da traição. Foi como um

impulso. Contou que se casaria

em alguns dias, ele respondeu

“ai, que pena, perdi então

todas as minhas chances”, e isso

colocou ainda mais fogo na

situação. E, então, o convidou

para conhecer seu futuro lar.

Carolina só não contou

com o inesperado: Maria Odete

tinha as chaves do lugar. A

sogra convidou uma prima

para conhecer o apartamento

do filho.Quando as duas chegaram,

estranharam as roupas

espalhadas pela sala, entre os

presentes ainda no chão. E o

choque veio no minuto seguinte,

quando Carolina, pelada,

surgiu correndo com um

estranho seminu atrás dela.

O casamento acabou. O

apartamento foi fechado, os

presentes devolvidos. Mas Carolina

se recusou a terminar a

sociedade. Tentava explicar ao

noivo o que era inexplicável:

que aquilo não era nada, que

era só desejo e sexo, que o amava.

Viveram mais de um ano

no inferno, ambos chorando

pelos cantos. Mas realmente se

amavam. E acabaram decidindo

tentar de novo. Por isso casaram

só no cartório, sem nenhuma

festa e, do fundo dos

seus corações, juraram ser fieis

até que a morte os separe.

quinta-feira, 24 de março de 2011

28/02/2010 - Armado só por amor

ARMADO SÓ


POR AMOR

Com uma arma na mão ele

foi dizer que a amava. E já fazia

tempo. Júnior cercava Dirce há

meses. Primeiro, se fez amigo.

Ele, assim que chegou do interior,

hospedou-se na casa dela.

— Eu dividia o aluguel com

uma amiga, e ele era primo dela.

Como a gente tinha dois

quartos, ele foi morar em um

— me contou Dirce.

Os dois ficaram amigos. Se

uniram para batizar a filha de

uma vizinha, saiam com frequência,

faziam o jantar juntos

diariamente. Júnior sempre

era amável, mas Dirce garante

que nunca suspeitou que era

mais que amizade.

Depois de alguns meses,

enfim, Júnior se declarou. Disse

que estava apaixonado.

— A gente tinha ido a uma

festa e ele bebeu um pouco.

Acabou me puxando para um

canto, dizendo que era louco

por mim. Mas logo cortei. Não

tinha nada a ver. Eu nunca senti

nenhuma atração por ele.

Dirce preferiu deixar o

apartamento que dividia com

a amiga e o primo. Foi morar

com a irmã, Dinorah.

Mas Júnior voltou a procurá-

la, queria pedir desculpas,

dizer que se confundiu. E foi

então que conheceu Dinorah.

Alguns encontros depois, ele e

a irmã de Dirce estavam namorando.

Minha amiga até

que ficou aliviada. Afinal, a irmã

parecia feliz e Júnior não a

incomodava mais. Mas, numa

noite, quando chegou em casa

e encontrou o casal, ele começou

a maltratá-la.

— Você só sai com gente esquisita.

Seus namorados são

todos uns babacas — disse.

Depois deste dia, sempre

criticava o que fazia. Quando

estavam sós, porém, a tratava

bem e tentava provar ser seu

amigo. Na presença dos outros,

a desrespeitava e até xingava.

A moça reclamava com a

irmã, mas Dinorah parecia

não se incomodar com o comportamento

do namorado.

Parecia até se divertir.

— O que ele sentia de bom

por você no começo parece

que virou ódio! — afirmava.

O pior, porém, quase aconteceu

numa tarde de sábado.

—Júnior chegou em casa e

começou a falar coisas sem

sentido. Tinha bebido. Minha

irmã havia saído e eu estava só.

Ele me xingava e dizia que eu

devia ir embora daquela casa,

deixá-lo em paz. E eu retrucava,

falava que morava lá e que

ele era o estranho. De repente,

ele veio pra cima de mim e me

empurrou. Eu reagi e dei um

tapão na cara dele.Mas quando

olhei na sua cintura, percebi

que estava armado. Tremi e

achei mesmo que ia morrer.

Mas ele viu meu pavor e se sentou,

atordoado. Então, tirou a

arma da cintura, a colocou na

mesa e me disse: ‘Eu te amo,

você não percebe? Vim aqui

armado porque te amo. Queria

te matar, porque, se não ficar

comigo, não fica com mais

ninguém. Mas não tenho coragem.’

E começou a chorar.

Dirce conta que foi mais rápida

que o rapaz. Enquanto ele

chorava como um bebê, ela

pegou a arma e apontou contra

ele, sem pestanejar.

— Quando você for fazer

alguma coisa, não ameaça. Faz

de uma vez! Se me ameaçar de

novo, sou eu que acabo com

você! E de verdade!

O rapaz saiu assustado,

com ela gritando atrás dele,

mandando ele sumir. Fugiu

sem conseguir pronunciar

uma palavra. Tremendo, Dirce

escondeu a arma no fundo do

guarda-roupas. E só então

pensou no que fez. Se jogou na

cama e chorou até dormir

domingo, 20 de março de 2011

Um homem perfeito

Marcela não sabia se queria só sexo ou se buscava um novo amor. Tentava de toda forma separar as duas coisas, como se isso fosse totalmente possível. O fato é que estava só, carente de corpo e também de alma quando encontrou Antero naquele desfile de modas. Ele era alto, magro, tinha o cabelo meio grisalho e um pouco comprido, que mantinha preso em um rabo de cavalo. Vestia um conjunto de roupas sóbrias, peças de grifes clássicas. Sua educação também parecia impecável.

— Um gentleman — me disse Marcela.

Antero tinha 14 anos a mais do que ela. Não que a diferença de idade fosse determinante para Marcela se envolver com alguém. Mas ela havia estado casada por sete anos com um cara sete anos mais jovem. Além disso, seu ex era baixo, meio gordinho e careca, e só usava roupas compradas no Brás. Ou seja, na cabecinha de Marcela, Antero era o que ela buscava: o exato oposto do seu ex. E ainda havia a chance de ele lhe proporcionar uma irresponsável aventura.

— Ele é demais! Parece assim o... Harrison Ford no “Indiana Jones 4”. Só não entendi direito o que faz. Acho que não é nada do bem. Deve ser contrabandista. Isso tudo é tão emocionante! — falou.

Marcela estava numa fase muito suscetível a novas paixões. Em um ano de separação, era o quarto homem perfeito pelo qual se apaixonava, número um tanto alto para uma mulher de quase 40 que, teoricamente, devia ser mais madura. A empolgação pelo novo caso era exagerada. E, talvez, perigosa.

— E vocês se conheceram como? — quis saber.

— Ele estava sozinho no desfile e sentou do meu lado. Entende tudo do assunto. Tecidos, cortes, combinações de cores, os nomes dos estilistas. Nunca conheci um homem de verdade que soubesse tudo de moda! Quando perguntei se era do ramo, disse que não, que comercializava pedras preciosas em todo o continente. De lá, saímos para comer e, depois, esticamos até um hotel.

— E como foi?

— Perfeito! Eu fui às alturas. Ele é muito gostoso. Tem um corpo, um jeito, uma mão e... — o rosto de Marcela mudou de repente e a empolgação murchou.

— E o quê?

— É que, apesar de ter sido maravilhoso, o negócio, bem... não funcionou. Era enorme, lindo, mas não funcionou.

— Ué, não entendi. Você disse que foi perfeito.

— Mas é por isso que eu tenho certeza que desta vez estou mesmo apaixonada! Pra mim o sexo vem antes de tudo. Mas o fato de não ter sido completo não teve a menor importância! Continuo louca por ele. Mas, sabe, já fiz uma bobagem: perguntei por que ele não usava Viagra...

— Assim, no primeiro encontro?!

— É... Ele ficou puto e foi embora.

— É, baby, nem o homem perfeito, que até de moda entende, agüenta uma pergunta assim, tão indiscreta, de uma mulher que acabou de conhecer.


Publicamos de 29 de junho de 2008

segunda-feira, 14 de março de 2011

21/02/2010 - Uma mulher bandida

UMA MULHER


BANDIDA

Quem a vê assim hoje tão

responsável, dona de casa, mãe

de família, não imagina o seu

passado. Iracema vivia com

um 38 na cintura e más ideias

na cabeça. Não consegue esquecer

as ações audaciosas em

que participou quando vivia

em São Paulo. A primeira

mansão que invadiu, o susto

que dava nas empregadas das

casas, as joias e o dinheiro que

levou. Hoje, tudo aquilo está

perdido.Mas ela, só Deus sabe

como, sobreviveu.

Iracema chegou a São Paulo

com pouco mais de 15 anos.

Estava sozinha. Foi viver debaixo

de uma ponte e logo conheceu

uns meninos de rua.

Os garotos faziam pequenos

furtos e vendiam maconha.

Foi assim que Iracema fez seu

primeiro contato com Cirilo.

Era ele o rapaz que entregava a

maconha aos garotos. Se apaixonaram.

E Iracema caiu na

vida bandida.

Com 16, engravidou. A

barriga foi a desculpa para entrar

pela primeira vez no quintal

de uma mansão do Morumbi.

Pediu água para uma

empregada, que muito solícita

a deixou entrar e descansar nos

aposentos de serviço. A mulher

ingênua ficou com pena

da menina. Iracema aproveitou

para observar bem o local,

calcular a altura do muro, as

entradas do casarão. Uma semana

depois, voltou com um

bando de ladrões. A velha empregada

a reconheceu de

pronto e levou um susto quando

a viu com o trabuco na mão.

A trancaram no banheiro e levaramo

que puderam carregar.

A criança nasceu e Iracema

lhe deu o nome de Vitória.

— Uma homenagem ao

meu primeiro grande roubo

— disse a Cirilo, feliz.

Depois, foram vários outros

assaltos. Mas um dia vacilou.

Pegou sua parte do roubo

e foi para a rodoviária, viajar

para a terra dos pais. Queria levar

a menina, com oito meses,

para conhecer os avós. Já estava

entrando no ônibus quando

foi reconhecida e presa. A

criança foi para um abrigo.

Ela, para a cadeia. Apanhou

que nem uma desgraçada.

— Primeiro da polícia, depois

das outras presas. Só parei

de apanhar quando parei de

gritar de dor — lembra.

Ficou presa por quatro

anos. Enquanto isso, sua filha

crescia no abrigo.

— Isso eu consegui: graças

ao meu bom comportamento

na cadeia, Vitória não entrou

na fila da adoção.

Quando saiu, decidiu ser

puta. Depois, conseguiu fazer

faxina em um bar, que lhe

abriu as portas de uma casa,

depois de outra e outra. Por

anos, viveu assim, como faxineira.

Soube que Cirilo tinha

sido preso e virado pastor na

cadeia. Solto, foi para o Rio de

Janeiro e abriu uma igreja. Ela

nem pensou em ir atrás dele.

Conheceu outro homem

que não quis saber do seu passado.

Gostou dela e adotou a

sua filha. Se casaram, tiveram

um menino e semudaram para

o interior. Ele abriu um bar

na praça principal da cidade.

Faz comida para caminhoneiros.

Vitória já tem 20 anos. O

filho do casal, Agnaldo, tem

10. Iracema nunca mais trabalhou

fora. Só ajuda o marido

no bar.Mas sempre seu olhar

brilha quando no telejornal

escuta uma notícia de mulher

bandida, com arma na mão,

fazendo assalto. Ela sabe que

agiu errado, poderia ter morrido,

se arrepende até, mas no

fundo, no fundo, sente um

baita orgulho de ter conseguido

sobreviver a tudo aquilo.

14/02/2010 - Confiar é preciso

CONFIAR É


PRECISO

Mara temia o resultado do

exame. Mas sua intuição e experiência

não estavam enganadas.

Os enjoos, as tonturas,

o nojo do café só podiam ser sinais

de uma coisa: gravidez.

Ela não queriamais filhos. Já

tinha duas meninas. E não

conseguia parar de se sentir

uma irresponsável. Afinal, aos

44 anos e separada há dois, tinha

mais do que experiência

para saber evitar filhos.

Contar para o namorado

seria constrangedor, ela imaginou.

Mas nada além disso. Os

dois se conheciam desde a faculdade,

tinham tido um caso

na época, mas a vida os havia

levado para caminhos diferentes.

Umdia, ambos já separados,

se reencontraram. Estavam

juntos há poucomais de

seis meses, cada um em sua casa,

e se sentiam felizes assim.

O problema era que Valter

acreditava ser estéril. Separado

há cinco anos, ele tinha feito

vários tratamentos durante o

casamento, mas nada havia

dado certo. Seus espermatozóides

eram poucos e fracos. E

as chances de engravidar uma

mulher, remotas.

—Como posso ter certeza

de que é meu? — foi a primeira

coisa que disse, quandoMara

lhe contou. A mulher se surpreendeu

com a reação.

—Como você pode desconfiar

que não é? Eu estou dizendo

— respondeu, grifando

bem o “eu”.

Valter insistia que sua desconfiança

era legítima. Lembrou

sua luta para ter um filho

quando casado, os inúmeros

exames que tinha feito. Por

fim, contou a ela o que ouviu

da mãe certo dia: “Meu filho,

se um dia uma mulher afirmar

que está grávida de você, desconfie.

É golpe da barriga”.

Até aquela frase, Mara refutava

todos os argumentos, ainda

com uma certa paciência.

Mas, com a citação da mãe dele,

se sentiu ofendida. Como

ele poderia desconfiar da honestidade

dela, mulher que conhecia

há mais de 20 anos?

—Por que, com44 anos e

duas filhas, eu vou querer dar o

golpe da barriga? Ainda colocando

a minha vida em risco?

— e botou ele para fora.

Valter voltou no dia seguinte

com um buquê de flores vermelhas

e um par de sapatinhos

para bebês. Pediu desculpas e

prometeu acompanhar a gestação

passo a passo. E fez isso.

Curtiu todas as etapas, deu

apoio nos momentos difíceis,

ajudou a decorar o quarto e a

fazer o enxoval. Os dois decidiram

manter suas casas separadas,

mas ele passou a ficar mais

na casa dela. Nunca falaram

sobre a briga de novo, mas Mara

nunca sentiu a completa

confiança do namorado.

Quando o bebê nasceu,

uma menina que ganhou o

nome de Cintia, a maternidade

presenteou o casal com um

exame deDNA— era de praxe.

Ele abriu o envelope ansioso

e só então teve certeza do

que Mara já sabia. Se sentiu envergonhado,

mas nunca falou

nada sobre isso para Mara.

Cintia já tem 2 anos. O casal

continua em casas separadas,

mas ele fica muito mais na casa

dela. Tem adoração pela filha e

admiração por Mara. Mas, para

ela, ficou um incômodo no

coração. É que não consegue

perdoar a desconfiança, relevar

o acontecido naquela conversa.

Sabe que a filha a uniu a

Valter na vida prática, mas

criou entre eles uma cortina de

mágoa difícil de ser superada.

E, como tempo, intui, tal cortina

vai se transformar em

uma parede dura e completamente

intransponível.

07/02/2010 - Noite na poltrona

NOITE NA


POLTRONA

Vilma não sentiu nada

quando conheceu Ricardo naquela

festa. Ela o achou bonito,

é certo, mas foi só. Nenhum tipo

de atração, nenhuma ponta

de desejo a despertou. Já Aline,

sua amiga de todas as horas, se

derreteu toda ao vislumbrar

Sergio na porta da festa. Ele

chegou à balada com Ricardo.

Os dois rapazes eram amigos e

foramàquela balada dispostos

a pegar uma mulher.

Com Aline foi fácil. Ela estava

disposta a se enroscar com

o primeiro cara bonito que lhe

desse bola. Sergio não era nenhum

galã, mas estava disponível.

Bastou dezminutos de

conversa e não se largaram

mais. Mas com Vilma a situação

era diferente. Ela parecia

mais fria. O charme de Ricardo

não a tocava. A conversa

também não era interessante.

O rapaz só falava de esportes

náuticos. Por isso, Vilma ficou

preocupada quando Aline lhe

comunicou:

— Vamos parar no apartamento

do Ricardo, aqui pertinho,

na Alameda Franca, antes

de ir para casa. Aliás, o que você

achou dele?

— Não vi a menor graça.

Mas por que vamos passar na

casa dele?

— Lá nós podemos ficar

mais à vontade – disse Aline,

com ar malicioso.

Vilma já intuía o que iria

acontecer. Dormiria em um

quarto sozinha, enquanto a

amiga, no outro, ia para a cama

com Sergio. Vilma não tinha

outra opção. Morava longe e

estava hospedada na casa de

Aline, em Perdizes.

Ao chegar ao apartamento

de um quarto, Ricardo convidou

Vilma para ver sua coleção

de selos. Estavam no quarto

dele e a moça o seguiu, mais

por educação. Quando tentaram

voltar à sala, a porta do

corredor estava fechada e nenhum

dos dois teve coragem

de abrir. Sergio e Aline já deviam

estar transando, pensaram.

Então, voltaram para o

quarto e decidiramrecomeçar

a conversa.

Vilma até hoje não sabe explicar

o que aconteceu. Talvez

o vinhomisturado à cerveja,

ou o cansaço da festa agitada,

mas o fato é que, de repente, se

viu beijando Ricardo, tirando

a roupa e indo para cama com

ele. Foi a melhor transa que já

tinha tido até então. E, o que

mais a impressionou: o cara

até então sem graça lhe parecia

o homem mais lindo do mundo,

carinhoso e atencioso.

Acordou logo depois do alvorecer,

com a amiga a chamando,

sem abrir a porta. Ricardo

levantou rápido e ainda

correu para a cozinha, para

preparar um café da manhã

caprichado para todos.

Os dois estavam daquele

jeito tão pleno de felicidade e

satisfação que nem perceberam

que o clima entre Aline e

Sergio não era não dos melhores.

Se despediram prometendo

um novo encontro, em breve,

e continuar o romance.

Coube a Sergio deixar as

duas em casa. Foi só aí que Vilma

se deu conta do mau humor

da amiga:

—Você, hein, é uma egoísta

mesmo! Me largou lá, sozinha

com aquele cara — reclamou

Aline, enfurecida.

—Como assim, Aline? A

ideia de ir com eles foi sua e eu

só deixei você sozinha com o

Sergio para ficarem mais à

vontade.

— É, mas o cara brochou.

Fui te chamar pra gente ir embora,

mas levei um susto

quando abri a porta do quarto.

Ele dormiu no sofá e eu passei a

noite foi sentada, na poltrona.

27/12/2009 - de previsões e alentos

DE PREVISÕES


E ALENTOS

Todamulher gosta de cartomantes.

Atire a primeira pedra

aquela que nunca teve

vontade de jogar tarô para saber

mais sobre o seu futuro no

trabalho ou no amor. Se não

são cartas, são runas, búzios,

leitura dasmãos ou qualquer

outro oráculo da moda. Homens

também gostam, mas

sãomais discretos. Não espalham

por aí que vão mesmo a

cartomantes e nem chegam

para os amigos e anunciam:

“Colega, conheci uma taróloga

maravilhosa! Você precisa ir

lá.” Só mulheres fazem isso.

Num bate-papo de fim de

tarde, um grupo de amigas

conta sobre suas aventuras

com cartomantes. E eu estou lá

para escutar. Silvia diz que frequenta

cartomantes desde os

14 anos. Procura conhecer todas

que lhe indicam e paga o

preço que for por suas previsões.

Mas diz que nunca acredita

no que lhe revelam. Vai

porque as previsões sempre

deixam em sua alma um alento,

uma esperança.

— É que a gente sai de lá

mais leve, acreditando na vida,

que pode ser feliz, essas coisas.

Fica sempre uma esperança,

um carinho, sabe? — diz, com

uma certa tristeza na voz.

Já Laura conta que sempre

teve vontade de ir a uma taróloga,

mas a coragempara pagar

por previsões demorou a

chegar. Já tinha quase 40 quando

enfrentou a sua primeira

consulta esotérica— uma astróloga

que cobravamuito caro

para fazer omapa astral baseado

nas vidas passadas do

cliente. Laura levou uma lista

de nomes com datas de aniversário

para amulher lhe dizer o

que cada pessoa significava na

sua vida presente.

— Sabe o João, aquele caso

mal resolvido que eu tenho,

que há anos não ata nem desata?

Pois é, fui coma maior esperança

de que elame revelasse

que aquilo era uma bobagem,

uma ilusão, que eu iria

esquecê-lo e que outro homem

maravilhoso ia aparecer

na minha vida. Mas sabe o que

elame disse? Que ele era aminha

alma gêmea. E que os relacionamentos

com as nossas almas

gêmeas são os mais difíceis

que existem. Quase pedi

meu dinheiro de volta!

Sandra também já foi em

várias cartomantes. E garante

que elas nunca acertam. Ou

melhor, diz que de todas as que

já foi, apenas uma acertou. Ela

não consegue esquecer o ambiente

da consulta e a forma

como foi atendida, em apenas

três minutos, pela mulher.

— Ela era muito pobre, miserável

mesmo.Morava numa

casa minúscula no Capão Redondo,

lá na Zona Sul de São

Paulo. Mas lia de graça o futuro

da gente em um copo

d’água. O clientemesmo lavava

o copo e o enchia comágua

na pia da cozinha. Depois, ela

mandava você colocar um

pouco de sal na água. E, então,

fazia umas orações segurando

o copo e dizia para você ver a

imagem na água.

Sandra diz que sempre se

emociona quando lembra daquele

dia. Afirma que entrou

numa espécie de transe e viu

na água salgada a imagem nítida

de um homem.

— Ela deu a data que eu ia

conhecê-lo e disse que aquele

homem seria a minha desgraça.

E acertou. Conheci Alberto

num dia bem próximo ao que

ela disse e a foto dele quando

jovemera idêntica à imagem

que vi na água. E aquele homem

foi a minha desgraça.

Um amor que nunca deu certo,

uma história que poderia

ter sido, mas que nunca foi.

20/12/2009 - Excesso de intimidade

Tudo o que Dana queria era


um banheiro para chamar de

seu. Naquelemomento de sua

vida, não era riqueza,nemum

carro e nem mesmo um novo

amor que mais desejava. Só se

esforçava mesmo em ter um

banheiro para ela, comseu gabinete,

suas gavetas, seu vaso

sanitário e seu chuveiro.

Para Dana, o banheiro era

um símbolo de liberdade e independência.

Por isso, ao conseguir

alugar um apartamento

com uma suíte, para onde se

mudou para viver sozinha, se

sentiu a mulher mais feliz e

realizada do mundo.

A história de Dana só vem

provar que a falta de um pouco

de privacidade, aos poucos,

pode acabar comum relacionamento

promissor. Há até

quem defenda que não há

amor que resista aos excessos

de intimidade. Foi o que aconteceu

com Dana e Rick.

A paixão que nutriam um

pelo outro se desmanchou ao

longo de pouco mais de cinco

anos de convivência dentro de

um apartamentominúsculo,

com sala, cozinha e apenas um

quarto e um banheiro. Nemas

juras de amor eterno trocadas

no início do namoro e a promessa

de que nenhum problema

abalaria sua união foram

capazes de mantê-los juntos.

Como só teve dinheiro para

comprar um imóvel pequeno,

logo no início da vida em comum,

o casal estabeleceu um

rígido escalonamento diário

de horários para o uso do banheiro.

É que, na primeira semana

de convivência, perceberam

que a medida era obrigatória

se ambos quisessem

cumprir pontualmente os seus

compromissos de trabalho.

A ideia até que deu certo,

mas, diferentemente do que se

poderia imaginar, não era a rigidez

da escala de horários do

banheiro que irritava Dana.O

que ela não suportava era a falta

de cuidado de Rick.
 
—Sempre quando ele entra


no banheiro deixa a porta

aberta, em qualquer hora do

dia. E a bagunça que ele deixa

lá é inacreditável. Encontrei

várias vezes a minha toalha suja

de creme de barbear. Para

não falar coisas piores — ela

contava.

É lógico que a falta de privacidade

não se limitava ao banheiro,

pois todo apartamento

era minúsculo. E Rick não era

uma pessoa organizada.

No quarto, por exemplo,

Dana reclamava que o marido

colocava roupas dele em qualquer

gaveta do armário, sem se

preocupar a quem ela pertencia.

E que várias vezes deixava

suas meias sujas junto com as

dela, sempre limpas. Na cozinha,

várias vezes, ela encontrou

engordurados documentos

importantes que pertenciam

ao marido. E era comum,

em qualquer lugar do apartamento,

coisas dela se perderem

no meio da bagunça dele.

Rick, por sua vez, não levava

a sério as reclamações.

—Somos casados. A vida

de casado é assim mesmo—

ele brincava.

Mas Dana não achava graça.

E, um dia, vendo uma revista

de imóveis, descobriu

qual era o seu maior desejo.

— Tinha lá a planta de uma

casa com suíte. Pensei: “É disso

que eu preciso.”

Rick, como sempre, não levoua

conversa a sério. E a perdeu

de vez. Dana pediu a separação

e foi alugar um apartamento

sozinha. E, ao negociar

com o corretor, só fazia uma

exigência: o imóvel tinha que

ter dois banheiros.

— É que não quero no meu

nem vestígios de uma visita.

13/12/2009 - Não vai dar certo

NÃO VAI DAR CERTO


A primeira impressão que Eduardo teve dela

foi ruim. Enquanto caminhavam por aquela trilha

em direção à praia, Betânia lhe pareceu pedante:

—Ela é uma arrogante! — decretou, após ter

sido afastado pela moça, nomomento em que lhe

ofereceu ajuda com a mão para atravessar um barranco.

— Ela disse que não precisava!

Mas, na verdade, a altivez de Betânia atraiu o

rapaz. E, enquanto afirmava aos amigos não ter se

interessado por ela, a observava e a seguia com os

olhos, durante todo o passeio.

Betânia, porém, não tinha feito nada de propósito.

Ela era independente por natureza, estava

acostumada a tomar iniciativas e inconscientemente

vivia testando seus próprios limites.

Eduardo, portanto, não lhe passou despercebido.

— Ele parece inteligente — pensou, ao ouvi-lo

dissertar sobre história e política para o grupo que

acompanhavam no passeio.

Numa festa da faculdade, Betânia resolveu dar

ouvidos à sua curiosidade e arriscou uma aproximação

com o rapaz. Na mesma noite, trocaram

beijos e amassos. Mas o coração da moça não batia

acelerado e ela concluiu que aquilo não tinha

chance de prosperar.

No dia seguinte, um telefonema de Eduardo

até a surpreendeu, pois ela já o havia esquecido.

Mesmo assim, topou um novo encontro.

Ainda sem muita convicção, Betânia aceitou

mais beijos e amassos dentro do carro do rapaz,

estacionado em uma pracinha coberta pela penumbra.

Entediada, decidiu testar sua coragem:

— Se quer continuar com isso, vamos logo ao

lugar certo — disse.

— O que? — Eduardo não entendeu.

—Éééé... Vamos logo a ummotel. Não é isso

que você quer? É o que eu quero!

O moço perdeu a respiração e nem respondeu.

Ligou o carro, engatou a primeira e seguiu para o

motel mais próximo que conseguiu lembrar.

A transa foi “sem preliminares” e “técnica”, como

Betânia gostava de dizer. E, enquanto se trocavam,

ela pensou: “Isso não vai dar certo”.

Mas Eduardo estava realizado e feliz. Para ele,

aquilo tinha sido tudo. E realmente não percebeu

que ela não gostou. Por isso, talvez, nunca mais

deixou de procurá-la. E ela, sem entender bem o

porquê, nunca lhe disse não.

— Vou ficando com ele, já que me ama tanto!

Estão assim há 10 anos. Parecemumcasal perfeito.

Ele é apaixonado, mas ela é incapaz de sentir

o mesmo. E, sempre ao fim de cada transa, ela repete

o pensamento: “Isso não vai dar certo”.

06/12/2009 - mudança rápida

MUDANÇA RÁPIDA


Quase em segredo, Samanta começou a montar

o seu apartamento. Após quase 35 anos de casamento

com João Carlos, dois filhos e três netos,

ela estava cansada. A gota d’água havia sido a aposentadoria

do marido. Em casa, ela percebeu que

não o conhecia mais:

— Eu também sou aposentada, mas não parei

no tempo. E também trabalho, faço os meus bicos!

— alegava. — O problema é que o João, ao se aposentar,

mudou. Ele não quer mais nada — dizia.

João Carlos havia trabalhado 40 anos em uma

metalúrgica. Na empresa, seu departamento era o

Pessoal. Conhecia todos os funcionários que estavam

ou passaram pela firma. Boa praça, ele não fazia

distinção entre diretores e peões. Se dava bem

com todomundo, a ponto de ser padrinho de filhos

de vários colegas. Além disso, se dedicava tanto

à companhia, que seu nome era sempre o primeiro

lembrado na hora de organizar festas de

aniversário, confraternizações de fim de ano e encontros

de ex-funcionários. Como tempo, ainda

passou a fazer parte da diretoria do clube da empresa

e acabou por viver mais em função do local

de trabalho do que da família.

Samanta entendia o jeito do marido, mas esperava

que, aposentado, eles poderiam fazer mais

coisas juntos. E ficou frustrada quando João Carlos

parou de trabalhar — e nada do que ela esperava

aconteceu. Ele só queria saber das amizades

da antiga firma e não se preocupava em planejar

para os dois algum tipo de lazer.

— Só me procura para sexo e, mesmo assim,

eventualmente. Em casa, ele só quer saber de computador!

Ficou viciado na internet. Não tenho

mais paciência! — dizia Samanta.

Três anos após a aposentadoria do marido, Samanta

ficou farta. Alugou um apartamento e começou

a mobiliá-lo. Só depois de tudo pronto é

que comunicou a ele e aos filhos. Foi uma surpresa

na casa, mas João Carlos fingiu que não se importava.

Nenhumdeles, porém, falou para o resto da

família e os amigos. Durante a semana, Samanta

passou a ficar no “seu canto”.Mas, nos fins de semana,

voltava para a casa do marido e ficava com

ele, filhos e netos. Viveu assim por cinco meses.

João Carlos, apesar de posar de durão, na solidão,

acabou adoecendo. Samanta, então, se sentiu

culpada e decidiu voltar de vez para casa:

— Saí e voltei em segredo. Mas já avisei a ele: se

não mudar, vou embora. E aí vai ser de vez.

29/11/2009 - UM HOMEM confuso

E lá ia Álvares de novo. No


bar, andando em meio às mesas,

conversando com todos.

De repente, viu alguém na

multidão. E sentiu de novo

aquela sensação maravilhosa

do flertar e conquistar.

Ela parecia interessante.

Alegre, falante, sexy. Sua pele

clara, o cabelo loiro, o sorriso

iluminavam o ambiente.

Quando se deu conta, já estavam

num papo animado. Mas

Álvares levou um susto quando

ela disse o seu nome:

— Elisa!

Ele quase engasgou. Elisa

era a nome da mulher que, naquele

momento, ele mais amava.

Mas um amor que o assustava

e o fazia, de tempos em

tempos, procurá-la para, depois,

afastá-la. Isso já durava

alguns anos. Mas, nos últimos

meses, a aproximação havia sido

mais intensa e prolongada.

Álvares se pegou falando a ela

palavras como “compromisso”,

fazendo planos e, quando

se deu conta, já tinha uma lista

de pequenas cobranças.

Quando Elisa, a Primeira, o

olhava com surpresa, Álvares

ficava ainda mais assustado

com o que sentia. Ele temia entrar

em uma grande roubada.

O problema, ele tinha certeza,

era a própria vida que levavam.

Ela era casada. Ele, não.

Ele rejeitava a ideia de ser o

motivo da mudança de vida de

alguém. Elisa parecia não se

preocupar com o que ele sentia.

E foi no meio desse monte

de dúvidas que apareceu a Outra

Elisa. Disponível e também

apaixonante. Álvares, então, se

sentiu seguro para, novamente,

reiniciar o afastamento da

Primeira. Quis fazer com que

ela rompesse com ele e contou

que estava namorando outra

mulher com o seu nome. Mas

ela fez de conta que não ligou.

E ainda, de supetão, revelou

que tinha pedido a separação.

Álvares entrou em pânico.

Por mais que Elisa dissesse que

era uma decisão que não o envolvia,


ele não acreditava. E,

dali para frente, só fez se afastar

dela e se aproximar da Outra.

O trabalho ajudava a não

pensar, a piorar o seu humor e

a destilar o seu sarcasmo habitual

e saudável, que sempre o

fez sobreviver. E a companhia

amorosa da Outra durante as

noites e aos fins de semana aliviava

suas angústias. Até que,

inevitavelmente, enjoou dela.

E voltou à solidão.

E quando a Primeira percebeu

o que acontecia, tentou falar,

forçar uma reaproximação,

mas ele preferiu não reagir.

Era sua maneira de se autoproteger.

“Ficarei quieto e ela

vai perceber. Vai esquecer”,

pensava. Só tinha dúvidas se

era realmente o seu desejo: que

ela o esquecesse.

Meses se passaram. Álvares

percebeu que a Primeira se calou,

se afastou, mas isso não

lhe trouxe o esperado alívio.

Antes, o intrigou. É que, no

fundo, intuía que ela não deixaria

a história deles de lado.

Mas ele ainda temia o amor

que sentia. Se tinha vontade de

procurá-la, sufocava.Mas era

bom lembrar de suas madrugadas

de conversas, risadas e

amor. Por isso, foi com um certo

susto misturado a uma dose

de contentamento, que ouviu

a voz rouca de Elisa Primeira

ao telefone, numa noite solitária

de sábado. Ele não sabia o

que dizer. Se sentia desarmado,

mas feliz:

— Você vem aqui ainda hoje?

— perguntou, sem pensar

muito no que dizia.

— Vou — ela respondeu.

E ele suspirou eufórico e só

conseguiu pensar:

— Que bom, que bom!

22/11/2009 meu lugar preferido

22/11/2009 meu lugar preferido — Não há motivo para a gente cutucar uma ferida da alma. Ela é como qualquer ferida do corpo. Você não vai mexer em um machucado aberto, vai? Por que, então, faz isso com a sua alma machucada? Deixa cicatrizar. Era assim que Teresa, entre metáforas, falava para Joana sobre como lidar com seus sentimentos feridos. Joana estava querendo desistir da vida. Sofria a dor do abandono, do ciúme, do rancor. Ao se ver sozinha e com aquele a quem chamava de “meu amor” com outra, ela caiu em desespero. E começou, freneticamente, a procurar saber da vida do novo casal — seu ex e a nova namorada. — Entrei no orkut dela e vi os recados. Ela está feliz! Estão mesmo vivendo um romance. Tem até fotos dos dois aos beijos — dizia, aos prantos. Na verdade, não era só no orkut que Joana procurava saber sobre o relacionamento dos dois. Ela entrava no msn, no facebook e em qualquer outro meio que descobria. — Ela estava doente — me explicou Teresa, nossa amiga em comum. — Não percebia que, quanto mais buscava saber dos dois, menos pensava nela própria. E só fazia doer ainda mais sua ferida. Joana e Ricardo tinham brigado por alguma banalidade qualquer. Nem um, nem outro sabia dizer o que havia acontecido de fato. Quando os amigos perguntavam por que haviam se separado, não conseguiam responder. E, quando tentavam explicar, o motivo parecia tão pequeno perto do tamanho da saudade que sentiam um do outro que até preferiam não falar mais, encerrar o assunto. Só não se procuravam porque eram orgulhosos. O problema é que os dois, na hora da briga, deixaram a raiva falar mais alto. Joana, para fazer ciúmes, fingiu ter interesse em outra pessoa. Ricardo, de vingança, colocou no orkut a foto da nova namorada, uma menina que ele havia acabado de conhecer. E Joana surtou. Foi até a casa dele e fez escândalo. Disse a ele que não queria mais vê-lo. Mas, mesmo assim, não parava de procurar saber da vida do rapaz. Joana, por mais de um ano, sofreu por causa deste romance mal acabado. Teresa dizia a ela que não era amor. — Isto é apego, é amor-próprio ferido. Amor não dá depressão e tristeza. Até que Joana resolveu mudar. Primeiro, se esforçou para parar de vasculhar a vida do ex. E foi difícil, porque era um vício. Achou que iria esquecê-lo. Não conseguiu. Mas teve que reconhecer que a dor diminuiu. O segundo passo foi passar a curtir a própria vida, reconstruir a autoestima. Conseguiu e ficou feliz. Mas, mesmo assim, continuava a ter saudades de Ricardo. Foi então que o encontrou na rua, como um acaso do destino. E voltaram a conversar. Demorou pouco e se descobriram apaixonados, numa relação muito melhor do que a de antes. Estavam se amando, num romance leve e sem cobranças. Então, apelou às metáforas para explicar o que havia acontecido com ela: — Eu aprendi a evitar os machucados, a não cutucar mais as feridas, como a Teresa me disse. Também aprendi a tomar cuidado nos caminhos, para não tropeçar. Mas decidi que não vou mais evitar os lugares que gosto. E ele é, hoje, o meu lugar preferido.

15/11/2009 SÓ UM BEBÊ CRESCIDO

15/11/2009 SÓ UM BEBÊ CRESCIDO A briga foi a maior de todos os últimos anos e Isabel, enfim, proclamou: — Acabou, não quero mais viver com você. Não sou sua babá, nem uma de suas irmãs e muito menos sua mãe. Chega! Ela e Tiago moravam juntos há sete anos. E há dois o relacionamento deles não andava bem. O rapaz, único filho homem de um casal que tinha mais quatro mulheres, dependia dela para todas as coisas práticas da vida. Isabel não aguentava mais. — Eu tinha que fazer tudo para ele. Desde compra de roupas até a marcação de uma consulta com um médico. E, depois, ainda passava na farmácia para comprar os remédios e dizia pra ele como tinha que tomar. Cansei de ser tratada como se fosse uma mãe. No dia que ela explodiu, Tiago concordou com Isabel. Também não queria mais viver com ela, que sempre criticava sua falta de iniciativa. — Então, é melhor a gente se separar mesmo. Mas o apartamento é meu. É você quem terá que sair. Isabel concordou. Nada mais justo, pensou. Ela havia se mudado para o apartamento de Tiago assim que terminou a faculdade de nutrição. Ele era arquiteto e ganhava bem. Ela estava em começo de carreira. Ele era quem bancava as principais despesas da casa. Mas, de imediato, Isabel não teria para onde ir. Então, respirou fundo e fez o pedido: — Eu vou embora, sim, mas me dá um tempo para procurar um outro lugar para morar. Acho que eu encontro rápido um bom apartamento. Já no dia seguinte, Isabel começou a procurar um imóvel para alugar. Para evitar Tiago, chegava em casa mais tarde, quando ele já estaria dormindo, e se acomodava em outro quarto. Ficaram assim por duas semanas, se falando o mínimo possível. Na terceira semana, Isabel encontrou um bom apartamento, bem perto de onde os dois moravam. E anunciou: — Olha, Tiago, mudo em duas semanas. É o tempo para assinar a papelada e mobiliar o apartamento com o básico. Ele concordou e ainda disse, com um certo de ar de superioridade: — Legal. Se precisar de ajuda, é só pedir. Na sexta-feira, véspera do fim de semana que ela escolheu para se mudar, ele amanheceu se dizendo doente. — Acho que peguei a gripe suína. Estou com muita dor no corpo e com febre. — Mas de quanto é a febre? — Não medi, mas estou. — A febre está baixa — disse Isabel, ao colocar a mão na testa de Tiago. — Mas, de todo jeito, você deve ir ao médico. Tiago não foi, mas ficou se arrastando pela casa, gemendo. Mesmo assim, ela fez as malas, pegou os poucos objetos que eram dela, colocou na Kombi que tinha alugado para a mudança e foi embora. No domingo à tarde, porém, seu celular tocou e ela já sabia que era Tiago. — Oi, queria te pedir... Você pode dormir aqui esta noite? É que eu não melhorei, a febre aumentou e, de verdade, estou com medo de passar a noite toda sozinho, doente. Isabel ficou desconcertada. Riu sozinha do outro lado da linha e pensou: “Que bebê crescido é este meu ex”. E então respondeu: — Tudo bem, eu vou. Mas antes vamos ao médico.

quinta-feira, 10 de março de 2011

08/11/2009 sem tomar anestesia

08/11/2009 sem tomar anestesia A operação seria em uma semana. O médico lhe avisou que a cirurgia era simples, mas ela precisava de internação, e um acompanhante deveria ficar no hospital pelo menos até o final do procedimento. — Vamos te dar uma anestesia geral. Então, é bom ter alguém aqui durante a operação. Mas, depois que sair, a recuperação é tranquila e rápida. Você vai para casa no mesmo dia — explicou o médico. Jandira tratou logo de avisar o marido. Antonio teria que faltar no trabalho. Deveriam estar no hospital às seis da manhã para a internação. O procedimento cirúrgico seria ainda cedo e duraria, no máximo, 30 minutos. — Tudo bem, eu vou com você — Antonio respondeu, sem olhar para dela, perguntar o porquê da cirurgia, seus detalhes, riscos ou possíveis complicações. Jandira ficou magoada com o jeito despreocupado dele, mas não se surpreendeu. Acontece que Antonio era um bocado desligado. A mulher tinha dúvidas se era da natureza do marido ser distraído ou se ele não prestava atenção mesmo ao que ela falava. Tendia a achar que ele não escutava nada do que dizia. Mas ia relevando, ora achando que era impressão sua, ora torcendo para que ele mudasse. No dia da cirurgia, ela estranhou quando o viu pegar a maleta de trabalho para levá-la ao hospital. Ele chegou lá tenso com o horário e Jandira ficou até feliz — acreditou que estava preocupado com ela. Mas, assim que se sentou para esperar a recepcionista chamá-la para fazer a ficha, ele disse: — Olha, eu já vou embora. — Como assim, vai embora? — ela arregalou os olhos. — Eu tenho que trabalhar. — Mas eu te disse que precisava de você aqui durante a operação. Que depois que saísse da sala de cirurgia, eu podia ficar sozinha. Mas que o médico tinha pedido para alguém estar por aqui até lá. E você disse que tudo bem! Você não lembra? — retrucou, com os olhos cheios de lágrimas. — Eu entendi que era só para te trazer aqui. E não posso faltar no trabalho hoje! A mulher explodiu no saguão do hospital: — Você falta quando tem uma unha encravada, mas para ficar aqui comigo, quando eu vou fazer uma cirurgia, tomar anestesia geral, não pode? — Desculpe, eu não entendi assim... — Você simplesmente não escutou o que eu disse! De novo. Fingiu que escutou. Pode ir embora. Eu me viro! Todos nos saguão olhavam para o casal. E Antonio saiu meio sem graça. Ela ficou chorando. Mas respirou fundo, fez a ficha, se internou e encarou a operação. Deu tudo certo. Era um procedimento simples no útero e, no fim da tarde, ela teve alta. Mas o coração doía demais. Aquele tipo de dor que não há anestesia que resolva. Pediu um táxi e foi para casa, só pensando em fazer uma coisa: pegar suas malas e ir embora. E Jandira já estava longe quando Antonio chegou em casa, no meio da noite, completamente esquecido do que havia ocorrido pela manhã. Como a mulher não estava, ligou no seu celular. — Oi... Onde você está? — Você já abriu o nosso guarda-roupas? Então, olha lá, que deixei ele vazio. Não preciso te dizer mais nada. Ele agora é todinho seu.

01/11/2009 o segredo da família

01/11/2009 o segredo da família Catarina ficava angustiada toda vez que a avó ia fazer uma visita à sua família. Com 7 anos, ela não conseguia disfarçar a preocupação, que logo virava irritação, com a presença da avó na casa. Não que não gostasse da avó. Pelo contrário. A velha matrona era sempre doce com ela e seu irmão, lhes enchia de mimos, carinhos e presentes. O que literalmente tirava o sono da criança era imaginar que a mãe de sua mãe poderia descobrir o grande segredo da casa: — Minha mãe tinha um pé de maconha plantado no vaso da varanda. E a minha avó era super careta. Na minha cabecinha, imaginava que, se minha avó descobrisse, iria denunciar a minha mãe, que seria presa! Era por isso que Catarina ficava em guarda toda vez que a avó estava na sua casa. Fazia de tudo para a velha não ir até a varanda. E, quando não tinha jeito, se colocava entre ela e o vaso suspeito. — Hoje acho que ela até sabia, mas não reconhecia o “problema”. Nunca ia admitir que a filha era maconheira. A pequena demorou muitos anos para superar o trauma de conviver com pais que tinham uma vida alternativa, principalmente a mãe, que não passava um dia sequer sem puxar um fuminho. Na sua casa, a seda era item de primeira necessidade e “enrolar um”, o hábito de todas as noites. — Era para relaxar, a minha mãe dizia. Eu não entendia. Pior, para Catarina, foi o jeito que descobriu o hábito materno. Numa noite, a mãe, de cara cheia, com uma ponta entre os dedos, resolveu “abrir o coração” para a menina, que havia acabado de entrar na primeira série primária. — Sabe o que é isto? — perguntou. — É maconha — revelou a mãe, tranquilamente. A garotinha entrou em desespero. — Descobri que minha mãe era “maconheira”, com todo o peso que esse título tem — lembra. Foi a partir daí que começou a temer a prisão da mãe. Passou a entender que tinha um grande segredo de casa para guardar do resto do mundo, tão austero e correto quanto a sua avó. Pelo menos era isso o que ela imaginava: que o mundo era austero e correto. Só com o correr dos anos foi que descobriu que toda casa tinha o seu segredo. — Mas foi difícil crescer assim, tendo que proteger a minha mãe da polícia o tempo todo. Pelo menos era isso o que eu imaginava, que fazia quando escondia de todo mundo o que realmente acontecia em minha casa. Ou quando me colocava entre o pé de maconha da varanda e a minha avó. Hoje crescida, Catarina dá boas risadas da sua história. Ela lembra que só começou a aceitar que tinha um problema quando decidiu contar para as amigas do colégio o que acontecia na sua casa. — Meninas, é o seguinte: tenho que contar que minha mãe é maconheira. Elas falaram: “tudo bem”! Foi um super alívio contar o segredo. Mas, depois, ainda precisou de muitas horas de terapia para superar o trauma. E, até hoje, ainda tem horror a qualquer tipo de droga ou bebida alcoólica. — Nem a champanhe do Réveillon dá pra beber. — Mas, e sua mãe? — Bem, ela mantém o “hábito”. Mas já me pediu perdão. Pelo menos fez o “mea culpa”.

25/10/2009 sem querer ficar só

25/10/2009 sem querer ficar só Sonia era a terceira mulher de Barbosa. Madura, casou e enviuvou cedo, sendo obrigada a criar sozinha seu casal de filhos. Advogada, tinha conquistado o que mais desejava: uma bela casa num condomínio fechado perto de São Paulo. Para os filhos, tudo o que precisassem. Enfim, Sonia era uma mulher e tanto, mãezona completa. Quando conheceu Barbosa, porém, se sentia muito solitária. Após o casamento dos filhos, o sobrado no condomínio ficou grande demais. Eram quatro suítes, piscina, salas de estar, de jantar e de TV, sem contar os dois jardins. Barbosa era um publicitário eloquente. Nos seus dois casamentos, tinha tido cinco filhos. Viviam cada um num estado, mas ele era um pai sempre consultado. Ganhava bem, mas morava em um flat no Centro da cidade. Após seis meses de namoro, de tanto Sonia insistir, ele aceitou morar na casa dela. Os filhos dela aprovaram e os seus netos passaram a chamá-lo de vovô. Viveram assim por sete anos. Até que Barbosa perdeu o emprego e só conseguiu uma recolocação em uma agência em Santa Catarina. Sonia ficou em São Paulo não muito conformada. O marido viria à cidade só de vez em quando. Então, aquela casa enorme voltou a parecer um castelo para ela, que não suportava a solidão do dia a dia. O pior é que ela também não sentia mais a falta de Barbosa. Só não gostava da casa tão vazia. A solução, pensou, seria convidar alguém para morar com ela. Primeiro, chamou uma irmã solteira. Um mês depois, uma sobrinha do interior que queria tentar a vida em São Paulo lhe ligou e pediu ajuda. Sonia imediatamente a convidou para morar com ela também. A moça chegou com o marido. A notícia espalhou-se rápido pela família de Sonia. E um tio que faria um tratamento médico no HC e morava no litoral também lhe telefonou querendo abrigo. Ele veio com a mulher. Seis meses depois, Barbosa voltou. Ele não aguentava o clima frio do Sul. E encontrou a mulher toda afobada, envolvida com obras que tinha resolvido fazer na sua casa para melhor abrigar os seus hóspedes. — Sonia, eu fui trabalhar fora e você transformou a casa em um albergue? Acostumado com independência, Barbosa deu um ultimato à mulher, mas levou um susto quando ela respondeu: — Se você não está feliz, pode sair. Aqui estávamos todos muito bem sem você. E foi assim que Barbosa voltou para o flat no Centro da cidade.

18/10/2009 uma espera eterna

18/10/2009 uma espera eterna Há 20 anos Virgínia espera por Agenor. Ela foi ao seu enterro, viu o seu corpo no caixão, guardou o seu atestado de óbito, mas, mesmo assim, ainda espera o dia em que ele virá buscá-la. — Depois do acidente, seu corpo foi reconhecido por um irmão. Mas eu o achei muito diferente. Não era ele. Não podia ser ele!! — ela diz. Virgínia e Agenor eram amantes. Eles se apaixonaram, mas ela era casada e tinha três filhos. Caminhoneiro, Agenor tinha medo de assumir um compromisso tão grande. Mas, um dia, Virgínia engravidou de Agenor. E nasceu uma linda menina. O motorista se encantou com o fato de ser pai. E decidiu: tinham que viver juntos, os três. — E os meus filhos mais velhos? — Virgínia quis saber. — Com quem eu vou deixar? — Você não gosta do seu marido. Se separe e nós dois vamos criar os meninos — prometeu. Ele a transformou na mulher mais feliz do mundo. O casal começou a construir uma casa para os seis morarem. Cada frete que recebia ia para a obra.Virgínia, que se afastava cada vez mais do marido, pediu a separação. O marido, um homem 15 anos mais velho que ela, era agressivo e ranzinza. Eles viviam juntos havia 12 anos. Dez dias antes de uma viagem longa, enquanto visitavam a construção, Agenor disse a Virgínia: — Olha, amor, você vai receber em breve uma notícia muito triste. Mas não se preocupe. Não acredite no que você vai ouvir. Saiba que eu vou vir te buscar, de todo jeito. A mulher estranhou a conversa. Mas não deu muita importância e, logo, esqueceu. Agenor saiu de Maceió e viajou para São Paulo com um ajudante novo. A viagem duraria uma semana. Cinco dias depois, os pais dele receberam um telefonema. O caminhão de Agenor, disse a pessoa do outro lado da linha, tinha capotado na Via Dutra, perto de Aparecida, e caído em um barranco. Foi durante a madrugada. Não teve testemunhas. Só pela manhã que outros motoristas perceberam, olhando da estrada. Quando foram ver a cabine, encontraram dois corpos. Um deles tinha nos bolsos os documentos de Agenor. O outro não tinha identidade alguma. Os dois foram levados para o IML. Os parentes tinham que ir lá reconhecer os corpos. Virgínia, então, lembrou da conversa na casa em construção. Não acreditou que era Agenor que estava no caminhão. Quando o corpo chegou, não o reconheceu. O do outro rapaz nunca foi identificado. E é por isso que ela, até hoje, o espera. Nunca mais foi saudável. E nunca mais foi feliz.

11/10/2009 Muito feliz 3 vezes

11/10/2009 Muito feliz 3 vezes Ela diz que amou três homens intensamente. Se casou com os três. E foi feliz com os três. Hoje, é viúva dos três. E não cansa de repetir: — Os três eram maravilhosos. Conheci Isolda no fim da tarde de uma quinta-feira. Ela estava só, bebendo uma latinha de cerveja no balcão de uma padaria no Centro, daquelas padarias tradicionais da cidade. Sentei-me ao seu lado para tomar um pingado com pão com manteiga. E começamos a conversar. Primeiro, sobre o bom serviço prestado pela padaria. Depois, sobre os homens. E os amores. Confesso que a achei um tipo estranho, puxando conversa comigo, sem me conhecer. Isolda não é uma mulher jovem. Tem lá os seus 65, bem marcados no seu semblante. Vestia jeans, muitas bijuterias e maquiagem, e usava um lenço colorido na cabeça. Não sei se me contou sua vida real, ou os desejos que teve na vida. Mas, no seu relato, tinha uma grande qualidade: só falava da felicidade que teve e omitia o que teria sido ruim ou triste. Contou-me que frequentava a mesma padaria há anos, desde sua abertura pelo avô do atual dono. Ia lá com o primeiro marido, Arthur, um arquiteto importante na época, também metido em política, quase 30 anos mais velho que ela. — Quando nos casamos foi um escândalo. Uma menina se casando com um senhor! Eu tinha 14, e ele, 43. Mas nos apaixonamos. Ele era muito elegante. Me sentia uma princesa ao seu lado! Com ele, Isolda disse que morou em várias cidades do Brasil e foi pela primeira vez à Europa. Ao tomar mais um gole de cerveja, Isolda lembrou que aprendeu a beber com Arthur. — O acompanhava em reuniões políticas. Mas eu não bebia com eles. Só em casa, com o Arthur. O segundo marido — emendou ela, sem falar como o primeiro morreu — era um engenheiro alemão, Hans, que adorava o Brasil: — Mas tivemos que morar um tempo na França. Paris, para ser mais exata. A cidade é linda. Isolda não me deixava perguntar. Eu, curiosa, queria mais detalhes sobre os desfechos dos seus casos. Mas ela só queria falar da sua vida mágica. — O terceiro era um artista plástico. Conheci vários artistas. Só frequentava exposições e festas. Minha casa parecia uma galeria de artes. Quando eu me levantei, pois precisava ir embora, ela segurou o meu braço, com um sorriso de verdadeira satisfação. Então, disse-me, sorrindo: — Sabe, enterrei três maridos. Dizem que sou perigosa. Mas fui muito, muito feliz com os três. — Sim, eu acredito!

04/10/2009 um brilho no olhar

04/10/2009 um brilho no olhar Ela nunca teve habilitação, mas sabe dirigir até caminhão. Aprendeu sem professor, só olhando o marido, que é motorista, daqueles que cruzam o país inteiro entregando todo tipo de carga. Mas Elvira não aprendeu porque queria. Antenor chegava louco em casa e mal conseguia parar a carreta. — Ele tomava tanto “rebite” que eu nem sei como não se matou na estrada — conta. O “rebite” é como os caminhoneiros chamam os remédios que tomam para não sentir sono. Antenor e Elvira se casaram quando ela tinha 15 e ele, 30. O rapaz se apaixonou pela moça do interior da Paraíba, e lhe cercou até conseguir convencê-la a se casar. O pai não queria, porque o moço era de fora e iria levar a filha dele para longe. — Mas ele me jogou um encantamento e eu aceitei — lembra a jovem senhora, hoje com 49. Na noite de núpcias, a moça apaixonada descobriu que Antenor era nada romântico. A virgindade foi perdida num estupro. Para ela, o marido se transformara em um bicho. No dia seguinte, levantou-se com o corpo todo dolorido e muita vergonha. Não contou a ninguém sobre o que tinha acontecido. Subiu na cabine do caminhão do marido e foi embora. O casal iria morar na Bahia. Os anos que se seguiram somaram mais decepções. O sexo com Antenor nunca foi consentido. E, sem amor, ela engravidou três vezes. Elvira só se sentia feliz quando o marido estava longe. — Quando voltava de uma viagem, antes de ir para casa, ele parava no bar. E saía de lá carregado. E foi por isso que eu aprendi a dirigir e estacionar caminhão. A solidão e a violência, porém, não endureceram Elvira. Quando seu filho mais velho entrou na escola, ela se encantou com o professor. Martinho era educado e muito mais moço que Antenor. Os dois se envolveram. E ela não sentiu culpa quando traiu o marido, que estava na estrada. — Foi só então que aprendi o que era o sexo com amor — revela, ainda aos suspiros. O professor era carinhoso, mas não era corajoso. Elvira engravidou e ele desapareceu. Quem escuta hoje Antenor falar do nascimento dos filhos, vai ouvir ele contar que seu último com Elvira é “prematuro”. Por ironia, o menino de olhos claros, cara de anjo, é o que ele mais mima. Depois do nascimento do caçula, Elvira aprendeu a recusar e afastar o marido. Ele nunca mais conseguiu tocá-la. Vivem como estranhos na mesma casa. E ela, de uma certa forma, se sente vingada do marido violento quando vê na criança o mesmo brilho do olhar de Martinho.

27/09/2009 UMA BELA MULHER

27/09/2009 UMA BELA MULHER Linda acordou cedo. Estava ansiosa para voltar ao trabalho depois de quatro meses afastada. Tomou um banho prolongado, passou hidratante em todo o corpo, escolheu um belo vestido para sair, azul e branco, passou uma maquiagem leve, complementada com um batom vermelho. Ao se olhar no espelho, sorriu. Parecia feliz. Quem a visse naquele dia não acreditaria na sua recente história. Linda tinha sido abandonada pelo marido. Depois de oito anos juntos, sem um motivo aparente, briga ou discussão anterior, Jairo simplesmente disse “tchau, não quero mais continuar casado”. Pior, no período em que ela estava machucada, após um acidente de carro. Estava ainda de cama. — Eu não entendi o que aconteceu. Um dia, me mandou flores e uma mensagem no celular dizendo que me amava, que eu era e seria sempre a mulher da vida dele. No outro, fez as malas e foi embora. Ao meu irmão, disse que eu não lhe dava atenção, porque eu queria continuar na cidade e não mudar para a praia. Para mim, o projeto de mudança para a praia era a longo prazo. Ele nunca mais me ligou. Depois de quatro anos de namoro e quatro de casamento. Acho que perdeu a razão. Também largou o emprego e não avisou aos amigos que iria embora. Dizem que montou uma barraca de sucos numa praia do Nordeste. Foi um golpe duro para Linda, que ainda acreditava no casamento e no “foram felizes para sempre”. Mas ela decidiu que não permitiria que o mundo sentisse pena dela. E o “mundo” incluía ela própria. Então, foi à luta para manter sua autoestima em alta. Retomou uma pós-graduação que estava meio parada e resolveu se cuidar mais do que quando estava casada, mantendo o regime, a depilação, a manicure e os cabelos em ordem. — Nada disso de ficar peluda e descabelada por causa de homem. E não vou ficar chorando pelos cantos e me lamentando com todo mundo — dizia. Também aumentou os gastos com ela mesma: sempre roupas bonitas, bijuterias de bom gosto, perfumes de qualidade. E foi assim que Linda chegou àquele dia na repartição, bela e bem vestida, cheirosa, sorrindo e radiante. Ao longo dos dias, todos percebiam o seu cuidado com os outros. Antes do golpe, ela já era uma pessoa delicada, mas agora parecia mais atenta às suas respostas e reações. Se estava triste, ficava quieta. Se tinha raiva, direcionava seu pensamento para aquele que a largou. Mas nunca foi descortês com amigos ou colegas. — Ninguém tem culpa da minha tristeza ou amargura — afirmava. A moça foi uma fortaleza sem fim. Assim se passaram meses. E a vida, enfim, lhe compensou com um novo amor, doce e sincero. Até quando? Só o tempo vai dizer. E ela não se preocupa com isso. Mas eu, da história de Linda, o que mais gostei, talvez, nem ela tenha percebido. É que, durante o seu esforço para se manter em pé, manteve fechados os ouvidos às mulheres invejosas e aos rapazes inseguros que diziam às suas costas que ela, porque foi dispensada por um, estava à cata de qualquer um, custasse o que custasse. E eles se deram muito mal. Porque ela estava feliz.

20/09/2009 morando sozinha

20/09/2009 morando sozinha Desde que chegou a São Paulo para estudar, tudo o que Marcia fez foi dividir seus espaços. Primeiro, morou numa pensão com mais 19 moças. — Uma comia demais, sem pedir licença para quem comprou. Outra era anoréxica. Tinha uma que roubava as minhas roupas. Mas a pior de todas era uma obreira evangélica. Eu tinha 17, estava longe de casa pela primeira vez, e não tinha a menor paciência para quem queria me converter. A segunda “casa” de Marcia em São Paulo também foi coletiva, uma república, onde dividia o quarto com só uma amiga. Mas as despesas eram altas e precisou correr atrás de outra alternativa. Uma colega de classe morava na casa dos pais, e ofereceu um quarto vago para alugar. — O lugar era bacana, gostava deles, mas quem eu mais amava lá era o cachorro. Quando se formou, Marcia resolveu fazer um curso nos Estados Unidos. Trabalhava de garçonete e dividia um apartamento com imigrantes ilegais. Voltou dois anos depois e logo conseguiu um bom trabalho. E então, enfim, sete anos após ter deixado Itatinga, pôde morar sozinha. — Estava, enfim, livre para escolher a cortina, a cor da parede, a geladeira, o tipo de papel higiênico, a marca do sabão em pó, e, principalmente, não ser obrigada a ver o programa da Luciana Gimenez! Foi a minha revolução pessoal! Mas o sossego durou pouco. Três meses após sua mudança, o seu celular tocou. E, do outro lado da linha, era a mãe dela, feliz porque o outro filho tinha passado na faculdade, e em São Paulo. — Ele vai morar aí com você. — Ah, mãe, não dá. Aqui é pequeno... — Como você vai negar isso para nós. Com o peso na consciência, Marcia cedeu. Mas quando o irmão chegou, ela foi bem clara. — Você é bem grandinho. Pode ficar aqui três meses, no máximo. Eu me virei. Você também vai arrumar outro lugar para ficar. Aos poucos, porém, Marcia foi se acostumando com o irmão em casa. E entre brigas e reconciliações, ameaças de expulsões sumárias por causa da falta de organização do rapaz, Silvano passou quase dois anos com ela. Só há uma semana ele se mudou para uma pensão na Bela Vista. Pergunto a Marcia se está feliz com a liberdade reconquistada. —- Sim, mas dá um aperto no coração, uma vontade de falar: “fique aqui pra sempre”. A vida é difícil lá fora, meu irmãozinho... Mas aí, de repente, lembro: irmãozinho, não. Eu sou a mais nova. E, se sobrevivi, ele também vai conseguir.

13/09/2009 SEMPRE com a mari

13/09/2009 SEMPRE com a mari Os dois trocavam olhares cúmplices enquanto ela colocava a carne picadinha para refogar na panela. Era um sábado e Alberto estava com saudades de Mariana. Vivem juntos há sete anos e a saudade ainda é inevitável entre eles. Quando um viaja ou trabalha demais durante a semana, o outro se sente perdido, como que abandonado. No dia-a-dia, trocam mensagens a cada meia hora, pelo celular ou pela internet. Mais do que se monitorarem, se cuidam mutuamente: um sempre está atento ao outro, aos seus gostos, aos seus passos, às suas necessidades e, principalmente, aos seus desejos mais secretos. Mari não come doces, muito menos chocolate. Dia desses, me avisou: — Preciso comprar chocolate meio amargo para fazer uma musse ainda hoje. — Mas, Mari, não é você que não come chocolate de jeito nenhum? — Sim, mas o Beto adora a minha musse. Como ele trabalha hoje até mais tarde, eu vou lhe fazer uma surpresa. E foi assim que a musse de chocolate virou uma das especialidades culinárias de Mari, sem que ela nunca a tenha provado. De volta ao sábado desta história, os dois estão ansiosos. Durante a semana, ela iniciou um curso pela manhã e, por coincidência, problemas no trabalho a seguraram no escritório todos os dias até mais tarde. Andava cansada demais e, à noite, só conseguia dormir depois do jantar. Então, ao levantarem cedo no sábado de sol, em vez de programar uma balada para a noite, como era de costume, Beto sugeriu: — Vamos ficar em casa hoje, depois que você voltar do trabalho? Estou sentindo sua falta. Eu compro um vinho e você faz uma comidinha... Nos rostos deles, sorrisos se desenharam. E ela, como uma adolescente, corou. Beto fez aquele dia de trabalho de Mari ser mais feliz. Ela só pensava na noite que viria. Quando chegou em casa, a carne já estava picada. Enquanto preparava o tempero, ele servia as taças. O macarrão ficou ‘al dente’, como os dois preferem. No dia seguinte, o casal não foi visto. Os amigos ligaram para seus telefones, mandaram e-mails, mas não houve resposta. Mas, na segunda pela manhã, a empregada encontrou cinco garrafas de vinho, vazias, em cima da pia. E, ao responder a um amigo sobre como tinha sido o seu fim de semana, Alberto só escreveu: “Foi maravilhoso, com a Mari. Sempre, sempre com a Mari.”

06/09/2009 um amor para não casar

06/09/2009 um amor para não casar O buquê veio em sua direção e ela logo o rebateu, às gargalhadas. Não queria ter em suas mãos aquele arranjo de flores tão desejado pela maioria das mocinhas da festa. Para ela, ele significava uma história de vida da qual queria distância. Fotógrafa amadora, ela até desejava amar alguém, mas intuía que aquele buquê não lhe traria boa sorte. Isabel e Ivan, o noivo da festa, fizeram faculdade juntos e ele sempre a viu como um “bom amigo”. Os dois pareciam contradizer a máxima de que homens e mulheres nunca são amigos. Eles realmente eram. Um contava para o outro todos os seus rolos e até trocavam conselhos. Quando Ivan conheceu Alice, com quem acabaria por se casar, Isabel lhe avisou que a moça parecia sincera. — Ela não é o tipo de moça com quem você normalmente anda. Não vai topar tudo, como está acostumado. Alice vai à missa todo domingo, quer casar e ter família. Ivan se encantou. Naquele momento, era exatamente o que buscava. Estava cansado de aventuras e baladas. Empenhou-se no “namoro sério” e, assim que comemoraram um ano de relacionamento, ele pediu Alice em casamento. Durante o namoro do amigo, Isabel não se perturbou. Também ficou amiga de Alice, que sempre arrumava um rapaz “do bem” para apresentar-lhe. Mas ela não tinha pressa de se amarrar. Curtia a sua vida livre e, tinha certeza, “assentaria o facho” naturalmente. — A minha cara-metade vai aparecer sem vocês precisarem dar um empurrãozinho — afirmava. Enquanto isso não acontecia, Isabel curtia a vida e os casos. Quando Ivan anunciou o casamento, a amiga sentiu um aperto no coração. Não acreditava que o amigo do peito estava maduro para se casar. Ele era um baladeiro profissional e, apesar do namoro sério, sempre escapava para as farras. Mas, como parecia feliz com sua decisão, Isabel deixou pra lá o aviso da sua intuição. — Vou fazer fotos do seu casamento — ela disse. — Se as minhas fotos ficarem melhores que as oficiais, vocês vão ter que me pagar uma cervejada na volta da lua-de-mel. Na véspera do casamento, foi com Isabel e outros amigos da faculdade que Ivan fez a despedida de solteiro. Beberam até amanhecer. No casório, além de fazer as fotos, ela se divertiu a valer. Dançou até com o bisavô da noiva, cantou um monte e roubou bem-casados acreditando piamente que assim ela teria sorte no amor. Um ano depois, porém, foi provado que Isabel tinha uma ótima intuição. Ivan e Alice se separaram. Ivan não servia para o casamento. E foi no ombro de Isabel que ele foi chorar. Ficaram a noite inteira bebendo. E, então, se deram conta de como estavam com saudades um do outro. Pela primeira vez, depois de tantos anos como amigos, os dois se olharam de um jeito diferente. Com tesão. A noite terminou na cama e o dia raiou mais ensolarado do que nunca. Eles se perguntavam como nunca tinham percebido o quanto se amavam. E até hoje se amam. Mas não pretendem casar ou morar juntos. — Ivan não é homem para casar. E é por isso que tem tudo o que eu achava que o homem da minha vida tinha que ter.

30/08/2009 GATINHOS E GATONAS

30/08/2009 GATINHOS E GATONAS Foram oito anos de namoro e Sofia se sentia aliviada. Gabriel a controlava para tudo. Ele lhe telefonava no escritório e no celular várias vezes ao dia. Depois, a levava para a faculdade e, à noite, lhe ligava em casa para saber se havia chegado. Nos fins de semana, só iam a festas da família ou, então, ficavam em casa. Quando saíam com amigos, o encontro sempre terminava em uma cena de ciúmes. É que a moça de 28 anos era mesmo linda e simpática, e sempre atraía as atenções. Mas, com Gabriel, se sentia sufocada. A gota d'água foi quando ela conseguiu uma vaga para dar aulas em uma escola técnica e ele quis vetar. O local tinha muitos “professores” e “alunos crescidos”, justificou. Sofia não só aceitou o novo trabalho como também terminou o relacionamento. — E, então, resolvi cair na gandaia — conta. Sofia dizia que tinha lá os seus motivos para querer só se divertir. Antes de Gabriel, só teve namoricos. Ele queria casamento, mas ela sentia falta de outras experiências. Ou seja, estava louca para conhecer outros caras. — Assim que terminei, fui com umas amigas passar um feriadão na praia. Eu não ia perder tempo. Queria só me divertir e relaxar. Depois de se bronzear um dia inteiro, topou ir a um luau, à noite. Chegou já dançando e bebendo tudo o que tinha direito. Estava feliz. Entre olhares e paqueras, achou que o seu número era um rapagão de 1,80m, moreno e de olhos verdes. Começaram a dançar e já pularam para os beijos. — Foi uma delícia. Quando me dei conta, estava na praia, deitada com ele na areia. Sofia, porém, estranhou por que o moço parecia constrangido. Começaram a conversar e, então, ela perguntou a idade dele. — Sabe o que me respondeu? 15. Quase morri! Meus alunos têm 15! E eu podia ser mãe dele! Me senti péssima! Só pensava que estava quase me deitando com uma criança! Nem tive coragem de dizer nada. Principalmente a minha idade. Dei uma desculpa qualquer e saí de lá correndo. O menino não entendeu nada. Acho que ele nem percebeu que eu era tão mais velha. Com Gilda, outra amiga que só queria achar um par, a reação foi um pouco diferente. No meio de uma festa, entregou seu cartão para o rapaz mais bonito que viu. Ele não só aceitou como a levou para a casa e, depois, para a cama. No dia seguinte, lhe mandou flores e quis repetir a dose. — Ele disse que eu sou linda. E, olha, ele só tem 25 anos, 15 a menos do que eu. Quem é que não vai me dizer que eu sou poderosa? Quem, hein?

23/08/2009 sem trocar a calcinha

23/08/2009 sem trocar a calcinha A pele morena e o cabelo encaracolado daquela moça desagradaram de cara a velha matrona italiana. Marlene namorava Pietro, o filho mais novo de Inês, já havia dois anos. Os dois até moravam juntos na república da cidade do interior onde estudavam. Mas Inês só soube do romance um dia antes de o filho aparecer com Marlene em casa. — Oi, mãe. Vou levar minha mina pra senhora e o povo daí conhecer. A gente chega amanhã. Espera com o rango pronto. Pode ser aquela macarronada? Foi assim que Pietro, estudante de geografia, anunciou que levaria Marlene até sua casa, num fim de semana. O rapaz, já com 21 anos, nunca havia apresentado uma namorada à família. Portanto, Inês imaginou que aquele relacionamento era sério. E caprichou no tempero. O casal chegou no sábado, perto da hora do almoço. A moça, vestida com uma bata de algodão amarela e calças jeans, estava com uma mochila peruana nas costas e uma maleta de couro em uma das mãos. Inês não gostou nada daquela aparência desleixada. Pior: ela demorou para entender o porquê de tanta bagagem. Estava preparada para receber Marlene para um almoço e tomou um susto quando o filho, depois dos cumprimentos, levou a namorada pela mão até o quarto dele. Inês automaticamente foi atrás: — É aqui que a gente vai dormir esta semana. Mãe, cadê aquela caminha de dobrar? Inês era conservadora. Nunca imaginou que teria que deixar a namorada de um filho dormir em casa. Ela puxou o filho de lado e tentou dizer que uma semana de hospedagem para uma estranha não estava em seus planos. — Mãe, não esquenta. A italiana se arrependeu de ter caprichado tanto no almoço. E, até por birra, começou a observar cada movimento da moça com olhos de analista. Mais do que saber como ela se comportava, Inês queria encontrar os defeitos da nora. A que hora dormia e acordava, quando entrava no banheiro e quanto tempo ficava no chuveiro eram motivos de comentários com os demais filhos, sempre aos cochichos. Também reparava o que e quanto ela comia durante as refeições. Com ironia, a apelidou de “Brasileirinha”. Marlene, por sua vez, não parecia constrangida e nem se esforçava para ser simpática. Falava pouco. Foi com um certo custo que a matrona conseguiu saber um pouco mais sobre a sua vida. A família era de Peruíbe. Ela era a filha do meio e tinha um casal de irmãos. O pai trabalhava como garçom e a mãe costurava para fora. Com 23 anos, era professora de escola pública e estava no último ano de psicologia. Ao final da semana, Inês tinha um perfil impreciso e preconceituoso da nora: — Ela é muito porca — decretou. — Como pode uma moça ficar aqui em casa uma semana sem pendurar uma só calcinha no varal? Ela não trocava, é lógico! — Mãe, ela tinha um montão de calcinhas limpas na mala! Só isso! — Pietro respondeu, numa tentativa de defender a namorada. Mesmo assim, não sei se foi por causa dos “argumentos” da mãe, mas o fato é que, naquele mesmo mês, acabou o namoro com Marlene.

16/08/2009 HISTÓRIA DE NOVELA

HISTÓRIA DE


NOVELA

16/08/2009 HISTÓRIA DE NOVELA Eu estou cada vez mais convencida de que histórias de novelas podem acontecer com frequência na vida real. Aliás, acho mesmo é que os romances que vemos nas telas relatam as histórias vividas por pessoas comuns. A de Jandira, por exemplo, daria um bom épico. Ela aconteceu no Norte do país e começou na década de 70. Quem me contou foi uma velha senhora. A moça, então com 16 anos, estava com o coração partido quando chegou em Manaus, em 1972. Para ela, aquilo era um castigo imposto pelo pior carrasco, sua mãe. Antonia havia despachado Jandira para viver com os tios porque temia que ela se envolvesse ainda mais com Aureliano, o playboy mais rico de Belém. Filho de fazendeiros, ele era famoso por promover as maiores arruaças a que a cidade já havia assistido. Todos também sabiam como moças de família haviam terminado depois de namorar com ele: grávidas e abandonadas. Antonia não queria que sua filha corresse o risco. Por mais que a jovem insistisse que Aureliano, com ela, era diferente, a mãe não se convenceu. E decidiu mandá-la para longe, para viver com os tios. A desculpa era a de protegê-la. Em Manaus, a vida de Jandira tomou outro rumo. Um colega de infância, Alfredo, também estava por lá, estudando. O encontro atiçou os corações dos dois jovens. Ela, entristecida, enxergou no antigo companheiro de brincadeiras um ombro amigo. Já Alfredo estava cansado da solidão. Nenhum deles teve cuidado e o que começou como um consolo mútuo terminou na temida gravidez indesejada. Só que a moça sabia que não amava Alfredo. Quando se viu esperando um filho dele, voltou para Belém. Marisa nasceu quando Jandira completou 18 anos. Alfredo ajudava no que ele podia, mas Jandira queria mesmo era criar a filha sozinha. Aureliano soube de tudo. Revoltado, decidiu casar-se com outra. Passaram-se mais de dez anos sem um ter notícias do outro. Quando se reencontraram, Aureliano tinha quatro filhos com duas mulheres diferentes e estava casado pela terceira vez havia um ano. O encontro foi casual, no meio da rua, no centro da cidade. Primeiro tomaram um café, depois trocaram telefones. O amor se reacendeu e os dois iniciaram um caso. Até que Jandira engravidou de novo e decidiu não contar nada para ele. Nem ela sabe dizer o porquê, mas inventou um motivo, simulou uma briga qualquer e fugiu, sem deixar endereço. Judite, a segunda filha de Jandira, cresceu sem saber nada sobre o pai. Mas, na adolescência, a menina foi perguntar sobre a sua história. Quando descobriu tudo, quis se apresentar a Aureliano. — Ele ficou furioso quando descobriu o que Jandira tinha feito, sumido com a menina. Mas a bronca durou pouco. Ele assumiu a filha e passou a frequentar a casa delas — me contou a velha Antonia. — Judite já é uma moça feita, entrou na faculdade e não mora mais com a mãe. No ano passado, Jandira resolveu mudar de novo. Só que, desta vez, o Aureliano foi junto. Montou a casa deles e os dois estão muito bem, obrigada. E eu, a mãe carrasca, sou até hoje a bruxa dessa história.

19/07/2009 - férias

voltei em 16  de agosto

12/07/2009 - O super-herói e o anjo

Foi o encontro do anjo com


o super-herói. A mulher ideal

com o homem perfeito. Nenhum

dos dois estava certo.

Elisa era doce e amorosa,

sensual e divertida. Jovem, demonstrava

ser solta no mundo,

livre, resolvida e independente.

Mas só ela sabia o quanto

procurava um colo. Não

conseguia, principalmente,

confiar no amor que os outros

tinham por ela. Sua crise de

autoconfiança era uma constante

e até amor-próprio lhe

faltava. Como chorava!

Álvares parecia que não enxergava

isso. Para ele, Elisa era

forte e capaz de compreender e

perdoar tudo. Era como uma

mulher-anjo que não via bem

ou mal, apenas tinha uma capacidade

enorme para amar.

Elisa, porém, queria só ser

uma mulher, com todos os defeitos

que sabia que tinha.

Já Álvares era companheiro,

charmoso e inteligente. Intuitivo,

enxergava de longe

oportunidades onde ninguém

via. Como amante, era romântico

e sabia dizer as palavras

certas para agradar uma

mulher. Elisa o admirava e o

desejava mais que tudo.Mas o

tinha como um super-herói,

um ser fantástico capaz de ler

pensamentos, ouvir à distância,

adivinhar desejos. Era isso,

pelo menos, o que ela sempre

esperava dele.

Álvares, porém, era apenas

um homem normal, distraído

e inseguro comoa maior parte

deles. Ele parecia não acreditar

que podia ser tão amado por

umamulher como Elisa, um

anjo. E mostrava ter um medo

absurdo de amar tanto, perder

o controle e quebrar a cara.

Adorava se sentir apaixonado,

mas, naquele momento, buscava

um relacionamento sólido.

Mesmo que não soubesse

direito explicar o que significava

essa solidez.

— Foi por isso que o anjo se

perdeu do super-homem —

me dizia Elisa.—Como alguém

que quer um amor sólido

pode buscar a vida com um

anjo, um ser diáfano, que vive

mais perto do Céu do que da

Terra? — me perguntava com

uma ironia entristecida.

É que Elisa não entendia como

Álvares podia tê-la confundido

com um anjo. E não se

conformava por não ter percebido

o quanto ele era um simples

homem.

Eu não tinha o que dizer para

a minha amiga. O caso de

amor dela e Álvares era antigo

demais. Como dar palpite em

histórias assim, que parecem

nunca ter um fim?

Quando os dois eram solteiros,

não se entenderam. O

mundo era muito grande e o

diálogo entre eles, limitado.

Eram ambos teimosos. Pensavam

que só o sexo de um atraía

o outro e se afastaram, sem nenhuma

explicação. Depois,

durante anos, não se viram.

Mas não se esqueceram. Elisa

me falava de Álvares comnostalgia,

um amor antigo e impossível,

um carma com o qual

ela só se preocuparia na próxima

encarnação.

Mas, um belo dia, bastou

um encontro casual para a

chama reacender. Elisa rapidamente

decidiu que a busca da

solução de um carma conhecido

não deveria ser adiada para

outra vida. E meteu as caras na

paixão.Mas a história do passado

se repetiu: se amaram

loucamente, mas não conseguiram

de novo falar abertamente

sobre os defeitos que

um via no outro.

—Éque nem anjo nem super-

herói podem ter defeitos.

E nós ainda não merecemos

ser apenas humanos.