sexta-feira, 3 de julho de 2009

28 de dezembro de 2008

28/12/2008 conta do destino Valquíria ficou curiosa quando sua terapeuta holística lhe enviou naquele janeiro um e-mail com o título “Ano Pessoal”. Na introdução, a explicação de que, na numerologia, a vida do ser humano se divide em ciclos de nove anos, calculados de acordo com o dia e o mês de nascimento da pessoa. No texto estava a fórmula para descobrir em qual ano a pessoa estava e o que poderia esperar dele. Aficionada por horóscopos, i-ching, tarôs e todos os tipos de leituras de sorte, Valquíria não perdeu tempo. Pegou um pedaço de papel e um lápis e foi às contas. O resultado era promissor. Afinal, ela estava no Ano Um, aquele em que tudo se abre para o novo, para os inícios, recomeços e oportunidades. Se sentiu tocada pela sorte. “Este será o meu ano”, pensou. Em janeiro, parecia que a previsão numerológica não tinha como falhar. Reencontrou um ex-namorado e retomaram o relacionamento. Tinham se afastado quando ela estava no Ano Cinco, calculou, e o recomeço em pleno Ano Um era o sinal que precisava para continuar sem medo. No trabalho, ela estava acomodada. Mas, depois de três anos na empresa, foi informada que receberia novas tarefas no início do mês seguinte e ficou animada. Na certa, ganharia uma promoção e o tão batalhado aumento. A descrição do Ano Um, portanto, lhe pareceu merecida. Fevereiro chegou e, em vez de ser promovida, ela foi transferida de setor. Ter que deixar colegas e principalmente rotinas de trabalho tão metodicamente construídas não era exatamente o que ela queria. Aumento de salário? Nem pensar. Ela suspeitou que algo estava errado na numerologia, mas ao ler de novo a explicação do Ano Um, concluiu que a mudança era uma nova oportunidade. Mas Valquíria passou a não entender nada mesmo quando seu namoro começou a dar errado. Gio parecia distante. Eles combinavam para sair e o rapaz não aparecia ou ligava em cima da hora para desmarcar. No final de abril, Gio desapareceu completamente. Para piorar, ela estava detestando a nova fase no trabalho e, numa crise de raiva, brigou com seu chefe e foi despedida. A menos de um mês de seu aniversário, torceu para que tudo fosse apenas parte do seu “inferno astral”, mas sua vida estava mesmo era de ponta-cabeça. Então, aos prantos, ligou para Ilka, sua terapeuta, para pedir explicações. Afinal, que fórmula de “Ano Pessoal” era aquela? Se sentia enganada pelos números. —- Você leu tudo o que estava escrito lá? — Lógico, Ilka! Calculei e sou Ano Um. — Mas o Ano começa no aniversário. Então, você ainda é Nove, o último do ciclo, o período em que tudo o que não serve mais vai embora, querendo ou não. Valquíria respirou aliviada. Afinal, estava escrito que aquela não era uma fase de assumir compromissos. Podia estar sem trabalho e sem amor, mas enfim podia ficar em paz porque tudo ia melhorar: tinha um destino. Era só ter paciência e esperar a vida passar.

21 de dezembro de 2008

21/12/2008 natal mais que feliz Álvares estava ansioso. Havia preparado uma noite de Natal antecipada para Elisa e não via a hora que ela chegasse. A namorada tinha que passar o Natal com a família. Já estava tudo marcado antes mesmo de os dois começarem o relacionamento. Iria com os filhos para a casa dos pais, no interior. Então, organizou uma noite especial para os dois uma semana do dia 25. Tirou um vinho da adega, preparou uma comida leve e comprou presentes. Cada um com um significado diferente. E lhe telefonou: — Passa aqui hoje — convocou. E só o tom da voz dele já deixou Elisa surpresa. Ela era insegura e eles, por causa de uma briga boba, não se falavam havia três dias. Ela telefonava, deixava recados e, quando ele dava retorno, ela não conseguia falar. Já estava imaginando que ele iria desistir. Entre eles, tudo tinha acontecido rapidamente e com muita intensidade. Álvares era muito mais do que Elisa havia desejado ou imaginado. Mas ela vivia com medo, como se corresse o risco de o relacionamento terminar repentinamente, como começou. Era como uma intuição ruim. — É lógico que eu vou — respondeu, com o peito cheio de apreensão, mas torcendo para que fosse a noite de Natal deles. Conseguiu sair do trabalho mais cedo e correu para a casa dele. O encontrou no portão, à espera. — Você demorou! — ele reclamou, num muxoxo, enquanto ela saía apressadamente do carro, louca para lhe dar um beijo. A raiva tinha passado e eles estavam com saudades. Como se ela não conhecesse o caminho, Álvares a levou para a porta. Ao entrar, Elisa levou um susto e perdeu a cor: na sala decorada para o Natal, vários presentes se espalhavam pelo chão. Elisa ficou constrangida. “Não podem ser todos para mim”, foi o seu primeiro pensamento. Mas não teve coragem de dizer palavra. Disfarçou, fazendo de conta que não estava vendo todos aqueles pacotinhos. Envergonhada, lembrou que só tinha comprado um presente para ele — um livro —, após andar muito pelas lojas, sempre com aquela impressão de que não iria agradar. Ele a colocou sentada no sofá e, como se fosse uma confidência, disse que adorava presentear no Natal. Era uma coleção de objetos simples, mas que tocavam o coração. Um porta-retratos (para a foto dele estar sempre na mesa de trabalho dela, disse), um pote cheio de bombons (para uma relação sempre doce), uma pedra que simbolizava o coração dele (agora nas mãos dela...). Álvares não tinha idéia, e talvez nunca venha a ter, do quanto fez Elisa feliz naquele Natal. Mas, por mais que na hora do brinde ela tenha desejado que aquele momento se repetisse por vários anos com ele, o romance dos dois durou pouco. O fim aconteceu por causa de um desencontro sutil. Foram só sensações, que não tinham tradução em palavras. Para Álvares, ela parecia indiferente. Mas ela só não conseguia demonstrar na vida prática o quanto ele era importante para ela.

14 de dezembro de 2008

14/12/2008 um beijo cúmplice Depois de passar o dia todo se preparando para encontrar seu grande amor, Tereza recebeu, no fim da tarde, o telefonema que temia: a secretária de Gilberto dizia que ele não poderia ir “no jantar”. — Ele teve uma emergência e mandou dizer que lhe liga no começo da semana que vem. Tereza caiu das nuvens. Ela sabia que aquilo era só mais uma desculpa. Afinal, já tinham sido vários encontros sem dar certo. E ela fingia acreditar nas suas diversas desculpas. Mas, naquela noite, apesar da tristeza, decidiu que não ficaria em casa, chorando. Ligou para algumas amigas, decidida a cair na farra. — Eu vou jantar com uns colegas de trabalho. Vem com a gente que depois vamos dançar — lhe propôs Juliana. Depois do jantar num restaurante da Vila Madalena e da esticada para um bar no Centro da cidade, metade do grupo seguiu para a casa de Juliana. A idéia era não deixar a noite acabar. Lá, a festa continuou mais íntima, regada a vinho. Apesar de mais animada, Tereza não conseguia esconder uma sombra no olhar, uma tristeza que Juliana conhecia muito bem. Afinal, acompanhava o caso complicado da amiga desde o início. Sentadas no sofá, enquanto conversavam sobre o dia, Tereza, enfim, desabafou e desabou. Sem saber ao certo o que fazer, Juliana colocou a cabeça da amiga no seu colo e começou a lhe fazer um cafuné. A mão macia foi descendo pelo pescoço e, quando Tereza percebeu, Juliana estava acariciando seus seios. Impossível saber se alguém mais na sala notou. Mas, de fato, estavam tão absortas que não se importavam com a exposição. De repente, Juliana parou e disse: — Eu não vou fazer isso com você, Tereza. — Fazer o quê, Ju? — respondeu, sorrindo. É que Tereza sentiu no gesto de Juliana algo que ia além do desejo: era puro carinho e amor. Tudo que precisava naquela noite. Não podia terminar em culpa. Dançaram na pista improvisada da sala até quase amanhecer. Na hora que Tereza decidiu ir embora, Juliana a acompanhou até a saída e, quando a luz do hall do elevador se apagou, aproveitou para dar um longo beijo na boca da amiga. Tereza aceitou e correspondeu. Na manhã seguinte, Tereza acordou feliz. Não havia esquecido Gilberto, mas sentia que havia conhecido um outro tipo de afeto. As duas trabalham juntas até hoje. Nunca falaram do toque, nem do beijo. Mas também não há constrangimentos entre elas. Só seguem sua rotina, mais cúmplices do que nunca.

7 de dezembro de 2008

07/12/2008 agenda de prefeito Virgínia morava havia apenas dois anos em Santo Inácio, mas conhecia a cidade como ninguém. Já tinha estado nos bairros mais periféricos e também nos mais famosos e badalados. Tinha na ponta da língua os nomes das principais personalidades do local, sua profissão, tendência política e importância para o município. Economista, Virgínia foi contratada pela prefeitura para fazer um projeto especial em apenas seis meses. Deveria analisar a vantagem econômica de transformar o centro antigo da cidade, que tinha um conjunto de prédios da década de 30, em área turística. Mas, após terminar o trabalho, deu um jeito de ficar morando em Santo Inácio. A decisão de viver a 500 quilômetros de sua terra natal tinha, porém, nome e RG: Marcio, um negro de 1,80 metro, musculoso, viril e muito, mas muito calado. Segurança e motorista particular do prefeito, ele era considerado uma das figuras mais discretas da prefeitura. Por mais que fosse abordado e bajulado, nunca dizia nada sobre a vida do chefe, nem uma única indiscrição. E também era discreto sobre a própria vida particular: poucos sabiam seu endereço e ninguém jamais o vira falar de uma mulher, apesar de ele ser um dos homens mais assediados da repartição e de ter saído com várias. Foi por causa do “deus de ébano”, como Virgínia gostava de chamá-lo, que minha amiga conhecia tão bem Santo Inácio. — Por dois anos, eu fui a todas as inaugurações desta cidade, podia fazer chuva ou sol. Ia a tudo o que tinha na agenda do prefeito para ver o meu “deus”. Nunca conheci alguém tão persistente como Virgínia. Não era apenas uma atração física o que ela sentia pelo segurança do prefeito. Era uma paixão que não media esforços para conquistar o que queria. — Amor à primeira vista, acredita? Mas ele, durão, não me dava bola. Então, eu não tinha outra saída. Até que um dia o homem se deixou cair pelas madeixas loiras de Virgínia. Foi numa tarde de novembro, quando o prefeito chamou o seu secretariado para uma reunião urgente sobre as enchentes. Márcio não precisou ficar no gabinete do prefeito e foi dar uma volta no prédio. — Depois me contou que estava tentando descobrir onde era a minha sala. A providência fez com que os dois se encontrassem no corredor do refeitório. Virgínia tinha descido para fumar um cigarro e pegar uma garrafa de café para a sua equipe. E ele se preparava para subir de elevador de volta à sala do prefeito. Então, aconteceu o mais desejado por minha amiga. — Quando ele me viu com a térmica, perguntou se eu não preferia subir pelo elevador particular do prefeito. Lógico que eu quis: aquele elevador é o mais apertado do mundo! E foi ali, num cubículo, que a térmica caiu no chão e eu nem liguei. Grudei no pescoço do negão e, até hoje, é lá em casa que ele mora.

30 de novembro de 2008

30/11/2008 com ela e os filhos — Eu sempre me dou bem com mulheres que têm filhos — Henrique lhe contou. Solange ouviu aquilo e achou graça. Henrique parecia querer dar a ela confiança com uma cantada batida, usada para conquistar mulheres que se sentiam solitárias, mas que costumavam ter problemas com os filhos quando arrumavam um novo namorado. Solange não sabia se esse seria o caso dela. Depois da separação, Solange não tinha tido nenhum namorado e, portanto, nunca havia pensado no assunto antes. Por Henrique, estava apaixonada e não conseguia imaginar como o fato de ter filhos poderia atrapalhar o seu sentimento. Talvez por isso, na hora que ele disse a frase, Solange tenha se surpreendido, pensado inicialmente que era só um jogo de conquista. “Já nos conhecemos há tanto tempo. Ele não precisava disso para me conquistar”, foi a primeira coisa que pensou, enquanto dava uma risadinha meiga. — É verdade! — ele continuou. — As crianças normalmente me adoram! Ela sentiu que ele não mentia. Tinham sido namorados na adolescência e sabia sobre o seu carisma com os pequenos. Mas não lhe pareceu que aquilo fosse importante para o reinício de um namoro: — Eu sei que elas te adoram. Isso não me preocupa. A Gabi e o Paulo também vão gostar de você. Com o passar do tempo, Solange apurou o olhar ao jeito de Henrique com seus filhos. Sentia a ansiedade do rapaz. Notou que ser querido pelas crianças era nele uma necessidade real. Solange gostava da preocupação, mas sua intuição dizia que tinha algo a mais em toda aquela história. Gabi tinha 6 anos e Paulo estava com 8. O pai deles vivia viajando a trabalho e sempre tinha uma desculpa para adiar encontros com os filhos. Já Solange mantinha com os dois uma relação aberta e estava sempre presente. Os três eram unidos. Já Henrique não tinha filhos. E era visível que admirava Solange e os seus. Então, sem que ela pedisse ou convidasse, ele passou a acompanhá-la em todos os eventos que tinha que ir por causa das crianças. Era como se ele quisesse ocupar o espaço deixado pelo seu ex-marido. E ela, acostumada com sua independência, começou a se irritar. Um dia, quando as duas crianças foram passar um fim de semana com o pai, ela percebeu que Henrique estava com ciúmes. O pressionou e ele confessou: — É que não pude ter filhos. Então, procuro nunca namorar uma mulher sozinha. Quero mesmo é casar com uma família. A confissão a deixou apavorada. Gostava de Henrique e queria namorar, mas a última coisa em que pensava naquele momento de sua vida era em um novo casamento. — E você fez o quê, então? — eu quis saber. — Mandei ele embora. Foi uma pena. Mas, pra mim, a minha família já tem um bom tamanho!

23 de novembro de 2008

23/11/2008 promessa da noite Aquela noite prometia. Seria a primeira vez desde a separação que Matilde passaria um Dia dos Namorados com alguém especial. Seus dez anos de casada não contavam. Antero, seu ex-marido, havia perdido o romantismo logo no início do casamento. Ele costumava dizer que “esse tipo de data” era só uma desculpa para lojistas ganharem dinheiro. Se Matilde argumentava que eles não precisavam trocar presentes, mas apenas curtir uma noite a dois, ele respondia que eles poderiam ter intimidades em qualquer noite. Matilde acabou desistindo de tentar, mas a cada ano engolia uma frustração secreta. Então, quando ela se deu conta de que o Dia dos Namorados estava perto, começou a planejar como seria a noite. A primeira providência foi arrumar um lugar onde deixar os filhos. Teria que convencer a mãe a ficar com os dois meninos, de 9 e 5 anos. Sua mãe era rigorosa e não permitia que os netos dormissem na sua casa só para Matilde sair: — Mulher separada não tem que se dar ao desfrute — dizia. Mas Matilde ganhou o pai: — Ela tem que arrumar outro marido é logo. Não era bem isso que Matilde pensava, mas pelo menos estava resolvido o seu problema imediato. Sem os filhos, Matilde tratou de arrumar o ambiente. Arrumou a casa dando um toque especial ao seu quarto, que encheu com velas levemente perfumadas. Comprou dois vinhos importados, preparou um jantar leve e, para sobremesa, escolheu o sorvete de chocolate com calda de morango, que já sabia era a preferido de seu novo amor. Usaria um vestido preto básico, mas ia estrear uma lingerie novinha em folha: corpete de tecido de oncinha, com meia-liga preta, tudo muito fácil de arrancar até com os dentes, se fosse preciso. Saulo chegou com flores e um pacote de presente: — É para você relaxar — ele disse. — Então, vou abrir mais tarde — respondeu. Depois do jantar, foram para o sofá. Ela estava toda afoita, querendo ir logo para a cama. Também excitado, ele tentava ir mais devagar. De repente, parou e perguntou de supetão: — Você não vai abrir o presente? Matilde deu uma suspirada e respondeu: — Ok, eu abro — disse, com um sorrizinho assanhado, imaginando que seria algo muito sexy. Mas, ao abrir o pacote, a surpresa: embrulhadas em papel de seda, Matilde encontrou pantufas: — Pantufas com a carinhas de elefante!!! Ele disse que era para aquecer os meus pés e não me esquecer dele. E não me esqueci mesmo. A noite perdeu a graça. Perdi o tesão e fiquei tão furiosa que botei ele pra fora, com as pantufas e tudo.

16 de novembro de 2008

16/11/2008 o amor de tatinha Foi numa tarde de sol que Tatinha resolveu cair no mundo. Não era a primeira vez que ela deixaria tudo para trás. A família, a escola, as certezas, enfim. Tudo ela trocaria, de novo, por Sapão. Para ela, uma adolescente de 16 anos, Sapão era sua grande paixão. O rapaz mais bonito e com a personalidade mais forte da vizinhança. Para sua família, ele era um aprendiz de traficante que já tinha ido parar na Febem uma vez e que não traria nenhum futuro para Tatinha. Mas ela não acreditava na falta de caráter de Sapão. Sabia que ele conhecia traficantes, que usava drogas, mas acreditava que a vida errada era só uma passagem. Sapão sempre lhe dizia que faria um grande negócio, que ganharia uma bolada e que eles viveriam juntos e bem, com filhos lindos em uma casa boa. E Tatinha confiava. Mesmo porque odiava a vida pobre com a família, sua mãe sempre doente, a saudade do pai que tinha se matado, e seus irmãos mais velhos jogando nela a culpa por tudo de ruim que acontecia na casa. Então, naquela tarde, ela mentiu de novo. Disse que precisava fazer um trabalho de escola na casa de uma amiga e desapareceu. De noite, quando os irmãos chegaram do trabalho, a mãe estava louca de preocupação. Eles a procuraram por toda a vizinhança e nada de Tatinha. No dia seguinte, bateram na porta de Sapão e ele também não estava. Seus pais, cansados da vida confusa do rapaz, o haviam expulsado de casa no dia anterior. Tatinha reapareceu uma semana depois, toda suja e faminta, com os olhos vidrados. Parecia alucinada e não quis escutar ninguém. Se limitou a pegar algumas roupas, as colocou numa sacola plástica de supermercado, e desapareceu de novo. — Não tem jeito — disse para a mãe, em desespero — vocês não me entendem. Seis meses depois, nos jornais, uma nota de canto da página contava o destino de Tatinha: “Um rapaz foi morto ontem de madrugada numa troca de tiros com a polícia, em Itaquera, na Zona Leste de São Paulo. Segundo a PM, André Ricardo Pereira, o Sapão, de 18 anos, era o chefe do tráfico na Favela Lindo Céu. No barraco onde estava, a polícia encontrou dois quilos de maconha, 15 pedras de crack e 50 papelotes de cocaína. Os policiais disseram que, ao perceber que o barraco estava cercado, Sapão começou a atirar. No local, a polícia também encontrou I.S., de 16 anos, que está grávida. A família da moça contou que ela estava desaparecida havia meses, depois de fugir de casa. Na delegacia, I. parecia em estado de choque e se limitou a dizer: ‘Eles mataram o meu amor’”.

9 de novembro de 2008

09/11/2008 a fuga e a chuva O dia amanheceu chuvoso. Jandira espiou pela janela e sentiu um arrepio forte na nuca: “Será que terei coragem?”, questionou-se. Mal tinha dormido naquela noite. Acordou de hora em hora, ansiosa pelo início da manhã. Pensava no que lhe esperava ao longo do dia: “Se conseguir, será o dia mais importante da minha vida”, pensava. Estava assim, dispersa, vendo a chuva cair na rua, quando escutou os sons comuns das suas manhãs: a descarga e o marido limpando a garganta, a filha ligando o chuveiro, o despertador seguido de rock vindo do quarto do caçula. Se assustou e correu para a cozinha: “Vou fazer logo esse café!”, decidiu. Sentiu um certo alívio quando se viu sozinha em casa. Podia se trocar com calma e seguir com o seu plano. Colocou algumas roupas dentro de uma pequena bolsa de viagem, vestiu uma saia cinza, uma cacharrel vermelha, uma bota de couro preta e um lenço amarelo na cabeça. Por cima, uma grossa capa azul-marinho. Odiava os guarda-chuvas. Também tirou da gaveta o velho óculos escuro, que não usava havia pelo menos cinco anos: “Nunca mais Ernesto nos levou à praia no verão”, lembrou, com uma certa amargura. Saiu de casa, trancou a porta e não olhou para trás. A chuva havia dado uma trégua e ela caminhou tranqüila até o ponto, onde pegou o ônibus para o Centro. Andou pelos calçadões cheios de poças, olhou as vitrines com um prazer de mulher livre e, na hora do almoço, comeu um lanche barato num fast-food comum. Depois, tomou outro ônibus para a Zona Norte. Ainda não eram duas da tarde quando chegou. Haviam marcado às cinco na frente do portão principal do Horto. A chuva voltava a ficar forte e o céu, agora, transformava-se: estava assustador. Jandira não se intimidou. Olhou em volta, as pessoas correndo para se safar da tempestade. Mas ela iria esperar. Não compreendia como tinha tido coragem de chegar até ali, mas, já que havia ido tão longe, atravessou a rua e se postou sob o orelhão, bem em frente ao portão do parque. A chuva caia cada vez mais forte e ela, sozinha, começou a ter dúvidas. Quis ir embora, mas acreditava que precisava ficar. Estava paralisada e confusa. Sua cabeça girava, o coração batia apressado e os olhos, marejados de lágrimas que não caiam, não viam mais nada. Nem sabe ao certo quanto tempo ficou lá. A tempestade foi se dissipando, o ar ficou fresco e, de repente, percebeu que a noite se aproximava. Sentiu medo e, só então, conseguiu se mexer, sair da imobilidade sob aquele orelhão, e correr para pegar um ônibus de volta para casa, para a sua vida. Cinco minutos depois, chegaria um carro e pararia bem em frente ao portão do parque. Cleber desceria e veria o orelhão vazio. Onde ela estaria? Ficou lá alguns minutos, a chuva voltou a cair e ele logo percebeu: nunca mais saberia dela.

2 de novembro de 2008

02/11/2008 FALTOU Confiança O local era ideal para encontrar novos amores. Um clube familiar, onde pais separados levavam seus filhos para cursos dos mais variados tipos e, enquanto esperavam, aproveitavam para malhar. Raul chegou no começo da noite e foi para uma esteira ao lado da dela. Professora de Ciências, Fran passou a observá-lo com olhos profissionais. Meio calvo, uma pequena barriga para a idade aproximada de 45, pernas e bíceps firmes. O humor também parecia legal: sorridente e bom papo. — Estou atrapalhado com essa esteira. Você pode me dizer como faço para aumentar a velocidade? — ele pediu. Solícita, ela parou o seu equipamento para ensiná-lo, mas também para chegar mais perto e sentir o seu cheiro. — Era cheiro de homem de banho tomado. Nada de perfumes enjoados nem de suor. Ele contou que malhava enquanto a filha fazia aula de dança. Tinha um escritório de contabilidade e morava no bairro. Ela perguntou da mulher e ele disse que “a mãe da menina” não podia levá-la, pois trabalhava à noite. Aquele “a mãe da menina” atiçou ainda mais o seu interesse. O homem dava a entender que era separado. Se viram mais algumas noites no clube, sempre naquela curta hora da aula da menina. Fran contou a Raul um pouco da própria vida, que tinha três filhos já crescidos e que era divorciada. Então, ele lhe revelou que estava se separando e a convidou para jantar. Na despedida, lhe roubou um beijo. Ela tremeu feito adolescente. Estava apaixonada. Era uma sexta-feira. Laís ficaria com a mãe, que estava de folga. Fran se arrumou como há tempos não fazia. Raul chegou às oito em ponto. Depois do jantar regado a vinho, ele tomou coragem e a pediu em namoro. Ela, três anos mais velha, quase não acreditou. Explodiu de felicidade. Mas, antes do sim definitivo, preferiu a precaução e quis saber mais da vida dele. Como estava indo a separação? — Ainda moramos na mesma casa — ele explicou — Precisamos comprar outra para eu mudar. Fran não acreditou. Achou que Raul mentia ao dizer que vivia com a ex-mulher sem ter nada com ela. No fim de semana, ele lhe deixou vários recados. Ela só respondeu na segunda, por e-mail. — Sinto muito. Mas, não dá! — escreveu. Seis meses depois, encontrou Raul e uma amiga sua na rua, aos beijos. Morreu de ciúmes, mas puxou a mulher de lado com a desculpa de avisar: — Ele ainda é casado e vive com a mulher! — Era casado. Já assinaram os papéis. Ele agora está num apartamento novinho em folha e eu acho que vou mudar me pra lá.

26 de outubro de 2008

26/10/2008 OLHOS SÓ PARA ELE Alberto tinha tanto medo de perder a mulher que era capaz de se voltar contra todos que tentavam se aproximar dela. Só o amor de Luana não era o suficiente. Alberto a queria com os olhos voltados somente para ele, o tempo todo. Eu me lembro bem do casamento dos dois. Cerimônia fechada, poucos convidados. No final do religioso, a madrinha, Renata, uma das melhores amigas da noiva, foi embora. Nem compareceu à festa. Anos depois, encontrei Renata e perguntei o que havia acontecido naquele dia. — Só não fui embora antes porque ia pegar muito mal. Quando eu e Alberto já estávamos no altar, ele virou para mim e foi muito direto: ‘Olha, você pode ser nossa madrinha, mas não quero mais que saia com Luana sozinha. E nem vá em casa quando eu não estiver lá. Já percebi como olha pra ela! Não esqueça! Ela é minha mulher!’ Renata ficou chocada e sumiu da vida do casal. — Ele achava que eu dava em cima da Luana! Luana nunca entendeu o que havia acontecido. Tentou algumas vezes falar com Renata, mas ela mandava dizer que não estava. Alberto, por sua vez, fazia pinta de indignado. — Ela sempre foi louquinha, mesmo! — brincava, e Luana seguia sem entender direito o ocorrido. No começo do casamento, ser assim tão grudado a ela agradava Luana. Ela se sentia envaidecida com aquele “Você sabia que eu te amo?” a cada 15 minutos. Até então, ninguém havia se preocupado tanto com ela. No trabalho e na família, era uma mulher alegre, querida, cercada de amigos, mas se sentia solitária. Até aparecer Alberto. Os dois se conheceram na véspera da Páscoa. Ambos tinham pais no interior, iam visitá-los e chegaram uma hora mais cedo na rodoviária. No saguão de espera, sentaram-se um ao lado do outro e começaram a papear. Ao dizer tchau, Luana, deixou seu telefone com Alberto. Uma semana depois, estavam namorando. Em seis meses, decidiram se casar. Com ele, conheceu a companhia constante: nunca tinha estado com alguém tão preocupado com a sua vida. Alberto queria fazer tudo juntinho e sempre dava um jeito para ela não fazer nada sem a presença dele e, de preferência, só com ele. Luana vivia dando desculpas para se afastar das pessoas, mas, aos poucos, percebeu que não era mais ela quem dizia “Desculpe, mas não posso ir”. Eram os convites que não apareciam mais. A falta de liberdade começou a pesar e a moça, antes alegre, passou a exibir uma tristeza assustadora. Um dia, adoeceu. Para quem via de fora a relação, parecia muito claro o que acontecia. Sem liberdade, mesmo com amor, Luana se apagou. Alberto não entendia assim. Ela, mesmo doente, devia pertencer só a ele. Eu tentei visitá-la, mas a reação do rapaz foi até ríspida: — Prefiro que não venha. Ela não precisa de ninguém. Só de mim!

19 de outubro de 2008

19/10/2008 amigas de verdade A Janaína, uma colega do trabalho, diz que nunca pensa em rever o passado. Ir atrás de antigos amigos ou retomar velhos amores, para ela, parece loucura total. — Não entendo por que, depois de uma certa idade, as pessoas querem remexer no passado. Isso só pode dar problemas — ela diz. Janaína me falou isso quando eu lhe contei sobre duas conhecidas, que um dia resolveram rever sua amizade de 20 anos. As duas eram amigas de verdade. Pelo menos acreditavam nisso, mesmo sabendo das diferenças que existiam entre elas. Virgínia era mais tímida, não gostava de conflitos, mas era sempre persistente. Não desistia fácil do que queria e, mais cedo ou mais tarde, chegava lá. Já Letícia era mais crítica com os outros, muito alegre e criativa, mas vivia cheia de dúvidas sobre o curso de sua vida. Apesar das diferenças, em 20 anos, tiveram pouquíssimas brigas, nenhuma séria. Havia atitudes que uma reprovava na outra? Sim, mas nunca falaram sobre isso. Qual não foi a surpresa de Virgínia quando a amiga lhe fez a seguinte proposta: — Vamos conversar sobre nossa amizade? Estou revendo o meu passado e queria falar sobre nós. Virgínia teve um mau pressentimento, mas topou. Marcaram um chá numa tarde de sábado. Quando alguém se dispõe a colocar na mesa ressentimentos do passado, deve-se estar preparado para o que virá. Podem ser revelados sentimentos nunca antes imaginados. E foi mais ou menos isso o que aconteceu com as duas amigas. Letícia foi a primeira a falar: — Apesar de sermos tão próximas, sinto que não somos sinceras uma com a outra. Virgínia não amenizou a língua: — É, nunca confiamos uma na outra. Começaram a surgir na mesa histórias que, pensavam, estavam esquecidas. Mas que, para espanto das duas, não estavam. — Você deu um beijo no Francisco. — Mas eu tinha 16 e você não gostava dele. — Lógico que gostava. — E você? Conseguiu o emprego no escritório e não me indicou para trabalhar lá também. — Não me convidou para ser sua madrinha! E por aí foi. Existiam acusações mútuas para cada fase da vida delas. Várias esdrúxulas. Mas nada estava resolvido. Nada perdoado. O chá esfriou e a boca amargou. Então, Letícia deu o veredicto. — Eu agora tenho toda a certeza do mundo: nunca fui sua amiga. E Virgínia, assustada, contestou: — Não é assim. Tudo depende do que se sente. Eu sempre gostei de você. O resto é bobagem. — Não. Essa amizade, se é que existiu, acabou.

12 de outubro de 2008

12/10/2008 em câmera lenta Tudo aconteceu muito rápido. Foi como um frame, uma foto, uma imagem que era para ficar mesmo congelada na memória. Foram três, talvez quatro segundos, no máximo. Elisa não saberia dizer ao certo. Para ela, porém, era como se estivesse em uma cena em câmera lenta. — Será possível um frame em câmera lenta, Vivi ? Ali era como se fosse. Agora, eu tento lembrar da cena para observar melhor os detalhes — me diz, antes de continuar a contar a história. Minha amiga lembra que estava muito distraída naquela manhã, andando na calçada com a filha, perto da padaria de sua casa. — Você me conhece, isso é difícil de acontecer. Na rua, eu estou sempre atenta ao ambiente, multiplicando meus olhares, tentando enxergar tudo o que está à minha volta, principalmente por causa do perigo da cidade. Naquele instante, porém, Elisa estava andando muito devagar, olhando um panfleto que um menino tinha acabado de lhe dar. Era a propaganda de um novo prédio de apartamentos no bairro. — Então, ali, quase parada, completamente absorta, eu escutei que me chamaram. Mas não ouvi nenhum som de fato. Foi um grito mudo, mas tão certeiro que meus olhos se viraram diretamente para o local exato de onde vinha o chamado. É que foi num susto que ele me viu, eu sei. E ele nunca ia querer me chamar. Mas, quando virou a esquina, e me encontrou lá, quase parada, sem percebê-lo, instintivamente reduziu a velocidade do carro. E, por dentro, falou meu nome tão alto que eu, mesmo sem escutar, não pude deixar de ouvir. E me virei e olhei diretamente para ele, sem precisar procurar. Para Elisa, aquele foi um momento mágico. Com o canto dos olhos, queixo voltado para baixo e o corpo na outra direção, ela se encontrou com o seu amor mal resolvido e também levou um susto. Percebeu que Álvares estava lá, como ela, quase parado, sentado ao volante do carro, sem saber o que fazer mas disfarçando, fingindo não a ver atrás de óculos de lentes escuras. — Nenhum de nós disse nada, nenhum parou de fato. Talvez porque não tivéssemos mesmo como parar nem o que falar. Álvares simplesmente voltou a acelerar, desconcertado. E eu não consegui ver uma forma para voltar e encontrar com ele, conversar francamente. O que aconteceu em seguida foi que ambos seguimos para frente, em direções de novo opostas, acho que tentando imaginar se um dia os nossos caminhos vão de novo se cruzar — concluiu. Eu então perguntei: — Ou tentando planejar um jeito de um dia os seus caminhos de novo se encontrar, hein?

Cheiro Irresistível

Publicado em 02 de março de 2008

Tudo começou em 16 de março, uma sexta-feira. Daniela estava angustiada e de mau humor naquela noite. Cabeça cheia, sem saber direito o porquê, queria mesmo era ir embora daquela baladinha, chegar em casa, tomar um banho e cair na cama. Mas uma coisa e outra a seguraram no boteco, e ela ficou por lá, meio a contragosto.
Até então, Dani não dava muita bola para o que as pessoas chamavam de destino. Mas, a partir daquele dia, passou a desconfiar que, talvez, demônios e anjos competissem no invisível para mudar de vez as vidas dos humanos aqui da Terra.
A noite avançou para a madrugada e, no meio do burburinho, dois homens se aproximaram para conhecer o grupo em que ela estava. Sem disfarçar sua falta de vontade, ela olhou para eles e disse um frio “muito prazer”. Foi aí que aconteceu.
“Senti um cheiro irresistível”, ela me contou.
Foi como uma vertigem. O perfume misturado ao odor natural do rapaz que acabara de lhe dar um beijo descompromissado no rosto estremeceu as suas pernas. Dani sentiu que conhecia aquele cheiro, mas de fato nunca tinha nem visto o moço.
“Era como se eu houvesse perdido aquele cheiro e agora tinha conseguido reencontrá-lo”.
E ela perdeu a razão. Daniela não lembra o que falou para o rapaz, nem quanto tempo levou até que os dois saíssem do bar sem dar satisfações a ninguém.
“Aquilo foi algo sublime. Sei o que senti: não me importava hora ou o dia, eu queria somente estar mais próxima daquele cheiro. Eu me entreguei, não sei se ao homem, mas com certeza ao cheiro que vinha do seu corpo”, ela me escreveu.
O dia amanheceu e Daniela tinha certeza de que, com um desconhecido, havia vivido a experiência mais intensa e feliz de sua vida. Mas com a luz do sol veio a consciência dos compromissos e Daniela se foi.
“Não dei meu telefone a ele, como seria de praxe. Eu é que queria tomar a decisão de me encontrar com ele novamente ou não”.
O sábado foi de estudos para uma prova na segunda-feira. Os números da matemática se misturavam com as cenas da noite anterior, que passavam em flashes na sua cabeça. No domingo ela já estava louca de vontade de sentir aquele cheiro de novo.
“Liguei para ele e foi melhor ainda. Estava me apaixonando por alguém que não conhecia. E sentia por ele uma confiança insuperável”.
O romance vai completar um ano, firme e forte. Num mundo como o de hoje, onde poucos expõem sentimentos e o medo de se machucar por amor prevalece, Dani me parece diferente: quer compartilhar a alegria do que sente. E me escreve:
“É que, para mim, é uma honra poder dizer algo que é mágico, e que acontece com poucas pessoas na vida. E agradeço por ter acontecido comigo”.

Em primeiro plano

Publicado em 24 de fevereiro de 2008

O dedo desliza lentamente e então Cássia pode senti-la úmida e quente. “Por que não?”, ela pensa. “Se a minha opção imediata é pela solidão, eu devo me acostumar a tocá-la com mais freqüência. E no sexo solitário pode haver mais prazer do que no sexo sem amor”.

À mente de Cássia vêm lembranças de toques sutis, palavras doces, situações que a emocionaram. “Isso basta?”, ela volta a se perguntar. E já responde: “Se no momento é o melhor que eu posso fazer por mim, sim, basta”.

A emoção é um sentimento cruel. Nos abraça, nos chacoalha, nos vira do avesso por dentro, transtorna nosso pensamento. Mas é um tipo de dor que não queremos deixar de sentir. Quando não há mais a emoção, a vida perde o sentido.

Cássia decidiu interromper o seu caminho longo e sem emoção. E isso lhe pareceu assustador. Mas o medo foi maior no começo, há alguns anos, quando ela voltou a sentir. Na época, percebeu que existia algo estranho e diferente dentro do seu peito, motivado pela vida fora de sua casa. Ao seu lado, o que tinha era o hábito do convívio na sua família e só. Nada de troca. Nenhum interesse. Nem curiosidade. Só afeto respeitoso e a construção de uma imagem equivocada. E Cássia se envergonhou quando se deu conta de tudo isso. O cotidiano fácil, seguro, cheio de certezas lhe pregou uma peça, a envolveu ao longo da vida e, quando ela se deu conta, o sentir tinha ficado em segundo plano.

— Em que porcaria de mulher moderna eu estava me transformando! — ela me disse um dia, num tipo de desabafo.

Mas, se o movimento foi doloroso, para Cássia, ele também foi necessário. Ela estava tão certa da sua opção que passou a ter orgulho dela mesma. A decisão de se separar, de procurar outra casa para morar, foi muito bem pensada.

O caminho foi cheio de altos e baixos, descobertas e decepções, tentativas de recomeços, reencontros e afastamentos. Cássia levou anos para se decidir, sempre dando sinais para o seu marido, pedindo socorro, lançando avisos. Mas ele não percebeu.

— É engraçado como nada acontece da noite para o dia — continuou a me contar. — Achei que nunca chegaria a isso, ao rompimento, mas o limite se deu e não há agora uma segunda via. Também não há como voltar atrás. No meu caso, não há culpados, nem responsáveis. Só existe uma pessoa, eu, pensando, querendo, desejando e decidindo o que é melhor pra mim. E sou capaz de chorar de contentamento ao perceber que, pela primeira vez, vou de fato colocar a minha vida nas minhas mãos. Mesmo que para isso o sexo tenha que ser solitário por algum tempo.

28 de junho de 2009

28/06/2009 planejado no céu Ela lhe pareceu uma visão meio angelical naquele momento, um sonho mesmo. Silvio estava dormindo profundamente e foi acordado, no meio da madrugada, com aquele rosto de mulher colado ao seu, num beijo, e lhe dizendo: — Acorda, levanta dessa cama, eu cheguei para mudar a sua vida — ela declarou. Dirce não sabia por que tinha dito aquilo. — Foi sem pensar que falei, saiu mesmo no impulso — me segredou, algum tempo depois. Silvio, quando lembra daquela noite, gosta de pensar que as palavras de Dirce foram uma revelação, um tipo de inspiração divina. O rapaz não esperava mais vê-la. Estava hospedado na casa de uma amiga em comum aos dois, na Vila Mariana. Eles a esperaram até cansar e resolveram dormir. Era meia-noite quando Dirce chegou meio embriagada, o que lhe deu coragem para invadir o quarto onde Silvio dormia e acordá-lo com um beijo estalado no rosto. — Desculpe o atraso. É que estava terminando o meu namoro — revelou, divertida. Depois de dez anos viajando, Silvio retornava à cidade onde havia crescido, casado e se separado. Dirce era mais uma das pessoas que desejava reencontrar. Mas não tinha nenhuma expectativa especial em relação a ela. No passado, eles tinham sido apenas colegas, nunca namorados. Na mesma época, casaram. Por um tempo, os dois casais frequentaram um círculo de amizade em comum, até que ele se separou e saiu de circulação. O reencontro inusitado, no meio do seu sono, o deixou confuso. O beijo foi seguido de um prolongado abraço e os dois pareciam grandes amigos. Começaram a contar as novidades ali mesmo, no quarto de hóspedes. A dona da casa não aguentou e voltou para a cama. Silvio e Dirce continuaram a falar sem parar e levaram um susto quando viram que o céu já clareava: passava de 5h da manhã. — Vamos dormir? — ela sugeriu, enquanto recostava a cabeça no travesseiro dele e adormecia imediatamente. Silvio olhou a cena e sentiu uma ternura enorme, seguida de um tremor por dentro. Pegou um cobertor e foi para o sofá. Pela manhã, os dois continuaram a conversar com a mesma empolgação. Silvio tinha planejado almoçar com outros amigos, mas ao mesmo tempo não queria deixar Dirce ir embora. Tentava disfarçar seu interesse. Então, ela tomou a iniciativa. — Você vai ver outras pessoas, mas não deixe de pensar em mim hoje, ok? Foi a deixa para o primeiro beijo. Na noite daquele dia houve o segundo e tudo o mais. Em um mês, estavam morando juntos. Não tiveram dúvidas, medos ou constrangimentos. Só a certeza de que aquele era um reencontro planejado no céu.

5 de julho de 2009





05/07/2009 o perdão do dicionário — Então, agora, você tem um amante? — a pergunta de Renata caiu como uma bomba na consciência de Edite. Não suportava a palavra “amante”. Desde muito jovem, relacionava o termo a algo sujo, à quebra total de confiança. Menina, ouvia como sua mãe e tias falavam mal das mulheres que tinham amantes. Mais velha, virou leitora de Nelson Rodrigues e interpretava que o autor tratava seus personagens — mulheres e homens que tinham amantes — com escárnio e desprezo. Para piorar, amantes vinham sempre junto da palavra “corno”, outro termo que lhe virava o estômago só de pensar. Para Edite, Nelson Rodrigues traduzia em suas crônicas o que pensavam a sociedade e a sua família, e ela sentia vergonha só de imaginar o que seria viver aquilo. Até aceitava as “escorregadas” de suas amigas, mas, lá no fundo, sentia um certo prazer em se saber “superior” a elas. Dizia: — Eu não corro nenhum risco de cometer este deslize. Até que, um dia, após dez anos de casada com Adolfo, se apaixonou por outro homem. Foi tão rápido e imprevisível que ela não teve como se proteger. Edite conheceu Vinícius na loja de roupas onde trabalhava. O rapaz, três anos mais velho do que ela, era insinuante. Separado, ele passou a frequentar a loja diariamente. Sua primeira reação foi pensar que aquilo era só uma boa amizade, mas se assustou quando percebeu que, ao vê-lo, seu corpo queimava com um tipo de desejo que nunca havia sentido antes por ninguém, nem por Adolfo, no início do namoro. E, quando se deu conta, já estava sonhando com os beijos e abraços do rapaz. Começou a ter noites de insônia, acessos de choro, agonias “inexplicáveis”. Numa tarde, aproveitou uma folga no trabalho e aceitou tomar um café com Vinícius. Da lanchonete, foi conhecer o apartamento do rapaz. E lá simplesmente esqueceu tudo o que já tinha dito e pregado sobre infidelidade. E estava feliz como nunca. Tão feliz que, como uma adolescente que ama pela primeira vez, fez questão de contar para as amigas o que tinha acontecido. E daí veio a pergunta que a fez cair das nuvens: — Então, agora você tem um amante? Edite simplesmente pirou. Sua primeira reação foi negar. E criar uma outra definição para o tipo de relacionamento que estava iniciando. — Não, não, ele não é meu amante... — respondeu, toda atrapalhada e envergonhada. Em casa, correu a um dicionário pela primeira vez na vida, e foi procurar o significado da palavra “amante”. Deveria ter algo lá que amenizasse o tom sujo do termo, que desmentisse Nelson Rodrigues. E, no primeiro verbete, ela se sentiu aliviada: “Pessoa que ama; namorado; apaixonado”. Decidiu ignorar o verbete seguinte, que dizia: “Pessoa que tem com outra relações extramatrimoniais”. Os encontros com Vinícius continuaram, cada vez mais frequentes. Mas ela não sentia que traía o marido. Muito pelo contrário: quando estava com o Adolfo, sentia que traía Vinícius. Sua consciência com o amante estava sempre tranquila. Quando começava a duvidar disso, abria o dicionário e lia só o primeiro verbete.