segunda-feira, 3 de novembro de 2008

SEM ADULAÇÃO


Publicado em 16 de dezembro de 2007

Joana só lhe dá uma migalha do seu coração.
Queria lhe dar mais. Muito mais. Antonio mereceria toda a sua atenção, todo o seu tempo, todos os seus pensamentos, toda a sua dedicação, mas Joana não consegue. É incapaz e, por ser incapaz, já chegou até a sentir culpa. Mas isso também já passou. Porque Antonio...
Bem, Antonio é o tipo de homem que está sempre ali. Ele a considera tanto, ele a quer tanto e ele a respeita tanto, que até a comove. E o pior é que ele não lhe cobra nada.
Quando ela o dispensa, ele aceita. Quando ela adia os seus encontros, ele entende. Quando ela lhe pede um favor, ele faz.
E não pense que ele faz por submissão, porque Joana não o obriga. Ele também não faz para agradá-la, porque ele conhece bem Joana e sabe que ela não é o tipo de mulher que se adule.
Já insinuaram que Antonio não tem amor-próprio, mas também não é isso, porque Joana nunca o ofende. Ao contrário: com ele, e apenas com ele, Joana tem sempre o cuidado de ser delicada. Com o resto do mundo, esta mulher é invariavelmente dura.
Acredito que Antonio faça tudo o que pode por Joana simplesmente porque sente prazer. E Joana apenas aceita seus favores e seus afagos, sem permitir que ele vá mais além. E cala sobre o que não sente. É como um favor que ela faz a ele. É seu modo de agradecer. E, sinceramente, Antonio está nessa vida há tanto tempo que, se percebe o que Joana realmente sente por ele, prefere fazer de conta que nada sabe, que não vê, que não entende.
Olho às vezes para esse casal de amigos, nessa situação tão estranha para mim, e, nas suas expressões, nos seus rostos, o que leio é algo assim:
“Vamos deixar as coisas como elas estão. Devemos apenas sentir e fazer, sem falar o que pensamos um do outro. Ou melhor: vamos tentar nem mesmo pensar”.
Outro dia Joana me confessou que já tentou amar Antonio como ele a ama.
“Há alguns anos ele ficou muito doente. Seu filho me telefonou. Ele estava desacordado, na UTI, e era o meu nome que chamava sem parar. Então, fui lá. Entrei no quarto, ele acordou, me olhou, sorriu e voltou a dormir. Tive uma vontade enorme de cuidar de Antonio, como ele sempre cuidou de mim. Saí de lá até acreditando que o amava de verdade. Mas, foi só ele sair do hospital, e o dia-a-dia voltar ao normal, para perceber que seria impossível”.
Joana hoje sabe que nunca vai conseguir. Simplesmente porque, por Antonio, não sente nem o desejo que vem pelo corpo, nem a paz que vem pela alma.
“O que sinto? Apenas um afeto sincero, mais parecido com gratidão”.

O FIM DE LINDA FLOR

Publicado em 9 de dezembro de 2007

Linda tinha um sonho. Melhor: Linda tinha um desejo. Queria ser Flor. "Dona Flor, como no romance de Jorge Amado", ela me contou. A fantástica história da professora de artes culinárias que dividia a cama entre o marido vivo e o marido morto fazia minha amiga delirar.
Professora também, Linda sempre via em seu marido Olavo todo o jeitão do farmacêutico Teodoro Madureira, que na história só gostava de transar com dia e hora marcados. Olavo era um aplicado advogado, mas, na sua lista de prioridades, o sexo estava lá pela sexta colocação. A situação só não era pior porque, por exceção à regra, Olavo não gostava de futebol. Sem isso, o sexo seria muito mais raro.
Mas a estabilidade do casamento a deixava tranqüila e relativamente feliz, e ela se contentava em só imaginar que um dia poderia ter um Vadinho como o do livro. Ela criava fantasias com aquele homem safado, que a virasse do avesso de tanto prazer, mas que também lhe trouxesse à vida um pouco do sofrimento e da insegurança que aparecem quando não se tem certeza da lealdade e do amor. Como não acreditava em fantasmas como era o Vadinho baiano, imaginava que tal indivíduo tinha que ser “invisível” — entrar e sair sorrateiramente da sua casa e da sua cama sem ser percebido.
Um dia ela me ligou esbaforida para contar que tinha encontrado o tal Vadinho: era Duda, um rapaz que conheceu na academia. Casado, mas perfeito. “Ele tem até o hálito do Vadinho dos meus sonhos. Estou apaixonada”, disse.
Para colocá-lo dentro de casa, fez o que pôde para aproximá-lo do marido, que passou a confiar no rapaz. Ficaram amigos. Assim, Duda ia à casa de Linda todos os dias, viajava com o casal e os dois aproveitavam as “distrações” de Olavo. No celular, quando Duda chamava, era o nome Vadinho que aparecia no visor. E Linda assinava mensagens para ele com o codinome Dona Flor.
Tudo parecia perfeito, Linda Flor vivia em paz com seus “dois maridos”, quando a tecnologia os traiu. O e-mail que era para ter sido apagado ficou lá, gravado em uma pasta de memória. E foi uma declaração de amor ao seu marido, assinada por uma tal de Flor, que Joana leu naquela noite. As malas de Duda foram parar na rua. E a cópia do e-mail foi parar na tela de Olavo.
A fantasia de Linda acabou aí. Olavo quis o divórcio e, sem ele, ser Dona Flor não tinha a menor graça. A paixão acabou. Duda, que gostava da aventura pela aventura, também não encontrou seu rumo. Sem casa, nunca se tem para onde voltar.
Perguntei a Linda se valeu a pena. “E como não? Sou privilegiada, não acha? Se apaixonar loucamente não é para qualquer uma”.

domingo, 12 de outubro de 2008

Só por diversão


Publicado em 2 de dezembro de 2007

Pois alguém pode me dizer por que aquelas duas mulheres ficaram falando sobre vibradores e sexo em grupo na frente de Juliana? Juliana foi crente desde que nasceu, estava casada há poucos meses e os vizinhos já diziam que o marido reclamava da falta de sexo. A moça, comentavam os homens nos bares, não gostava da coisa.

Na verdade, Juliana sofria de uma timidez crônica. Falar sobre sexo com as amigas mais íntimas e mesmo com o marido a deixava incomodada. Naquela noite, ela mal conseguia tirar os olhos da louça que lavava enquanto escutava a conversa das amigas de seu marido. Estava encabulada e não tinha nem como sair da cozinha. Porque, se saísse, daria muita bandeira para aquela duas mulheres. E ela ficou lá, roxa de vergonha!

Eu digo por que Ana e Antonia fizeram isso: foi por pura diversão. Elas nem combinaram. Mas, "putas velhas", perceberam a falta de experiência da outra. E, como se já tivessem usado algum instrumento a mais na cama ou mesmo fossem praticantes do ménage à trois, discorreram sobre o assunto como duas especialistas.

E era puro teatro.

"Fui numa loja de produtos franceses e encontrei lá um vibrador que era uma gracinha! Era rosa e tinha até de formato de coelho!", disparou Ana. "Jura? Sou louca pra ter esse", replicou Antonia.

A coitada da Juliana mal respirava.

"De vez em quando a gente convida outra pra passar a noite lá em casa. Acho muito bom. Mas queria mesmo que fosse outro", mentiu Ana. "Ah, isso é bem legal mesmo. Mas meu marido não gosta muito...", emendou a amiga, fazendo bico.

Duas cínicas essas donas. São tão normais que dá até dó. Uma terceira pessoa na cama daria em divórcio. Elas cortariam os pulsos de ciúmes. Nunca nem pegaram num vibrador. Nem fazem direito o papai-e-mamãe. A preguiça é uma constante e a dor de cabeça, sempre a melhor desculpa pra dizer não.

Mas se sentiram o máximo cutucando a menina recém-casada, que era virgem até o matrimônio e sempre acreditou que sexo era só bom para fazer bebê. Quando a moça enfim saiu da cozinha, as duas morreram de rir, vitoriosas.

Mas outro dia eu vi Juliana numa festa. Fiquei surpresa. Estava linda como nunca. O decote do vestido curto de crepe a deixava glamurosa. Ela dançava como louca, transpirava sensualidade e chamava a atenção de todos. Seu marido a cercava de mimos e beijos e, quando dei por conta, os dois tinham sumido.

Ana e Antonia? Ah, elas também estavam lá! Na mesa, numa rodinha de peruas, bebendo cerveja, comendo coxinha e falando mal da vida alheia.

domingo, 28 de setembro de 2008

Virando o Pote

Publicado em 25 de novembro de 2007

Por quanto tempo a gente consegue tapear o ciúmes? Se exagerado, destrói a gente por dentro. Só é útil se vier em doses homeopáticas, até divertidas. Mas a tentação de engolir o pote numa talagada só às vezes é muito maior do que a nossa capacidade de ponderação.

O ciúme é diferente para cada um. Uma prima tinha ciúmes de qualquer um que se aproximasse do seu marido. Era como uma doença. Hoje ela está chata e só, e ele está feliz com outra. Não é um bom exemplo.

Achei um cara casado que curte sexo com a mulher e mais alguém. Mas só podia ser outra garota. "Outro cara na cama com minha mulher, não..." "Mas e se ela se apaixonasse pela outra?", perguntei, pegando pesado. Ele não conseguiu responder. Travou.

Um casal de amigos aceita a troca de casais. Mas ela tem ciúmes, contou-me, um ciúme sutil. Se incomoda quando a outra ou o outro não percebem o seu lugar. "Quando eles, ou algum deles, acham que podem mudar alguma coisa entre nós. Eu e o meu marido, nós nos amamos."

A melhor história de ciúme que ouvi foi de uma figura que tem uns 40 e que, aparentemente, vive de bem com a vida. Nunca imaginei que sentisse ciúme de alguém. Ela me contou assim: "Eu decidi aceitar o convite pra tomar uma cerveja com ele e a namorada. Era um desafio e tanto. Fiquei imaginando quantas vezes teria vontade de subir no pescoço dos dois. Mas queria me superar. Estava convencida de que só podíamos ser amigos. Cheguei e sentei estrategicamente na frente da garota. Estranhamente não senti nada. Ou melhor, sentia pena. A cada palavra dela eu pensava: o que ele viu nessa mulher? Ela não é nem bonita, nem inteligente. A voz é esganiçada. Eu olhava pra ela, olhava pra ele, e não via onde aquela história se encaixava. E me sentia bem por não ter ciúmes. Foi aí que aconteceu: o celular dele tocou. Ele atendeu e passou pra ela, falando um nome masculino. ‘Oi, meu amor, a mamãe já vai pra casa’, ela disse algo assim. Droga, eu pensei! É o filho da garota, ligando no celular dele! Viu? Não tive ciúme dela logo de cara, mas tive ciúme daquela situação tão íntima que, só com o telefonema, percebi que existia entre os dois. O chão saiu debaixo dos meus pés!"
"Mas, baby", eu respondi, "podia não ser nada disso. Vocês já tinham bebido, pode ter imaginado coisas...".
"Eu sei, mas é disso que eu estou falando. Eu não sei o que está acontecendo ali."
Minha amiga teve de engolir o pote inteiro.

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

POR CINCO MINUTOS


Publicada na coluna ELAS SABEM DEMAIS em 18 de novembro de 2007

A moça nem respira ao volante. O trânsito quase parado ajuda na sua observação assustada, em
princípio muito indignada. Depois até emocionada. E, no final, resignada.
O olhar fixo está naquele grupo de pessoas que acorda na manhã cinzenta da cidade. O chuvisco
de São Paulo gela o ambiente. Um a um, vão saindo de barracas feitas de lona meninas e meninos de pele meio manchada, despenteados, de roupas largas, amassadas e rasgadas, rostinhos sujos.
Mulheres esguias e grosseiras, que um dia foram bonitas, também estão por lá com suas saias
rodadas. Uma delas, a que está um pouco mais afastada, se põe de cócoras e, com uma caneca de
alumínio cheia de água fria, lava um bebê de pouco mais de 1 ano. É um pequeno andante, que ela solta em seguida para ver cambalear desajeitado até cair na grama batida.
Os homens morenos usam botas, calça jeans envelhecida, camisa meio aberta mostrando parte
do peito e, na cintura, um facão. Estão reunidos numa rodinha, conversando baixo, mascando fumo, ameaçadores.
Uma fogueira aquece o café perto da barraca maior. Uma velha toma conta do fogo. A fumaça
desenha fantasias no ar e deixa todo o ambiente mais misterioso. O menino maior vai até a calçada, se aproxima da avenida e olha os carros passando devagar no congestionamento. Um dos carros de vidros fechados é o de Alba.
“É impossível imaginar o que ele pensa”, fala sozinha a moça ao volante. O menino se volta de repente e joga longe um pedaço de madeira que tem na mão, numa brincadeira. Alba se assusta e dá um grito abafado, que ninguém escuta.
Mais calma, a motorista pensa, com lágrimas nos olhos: “Essas crianças precisam de cuidado!”
Tem ímpetos de sair do carro para enfrentar toda aquela gente estranha, para “salvar” os pequenos. Mas, de repente, percebe outra coisa: “Parecem felizes...” Se sente ainda mais confusa após olhar de novo para a cena, agora com outros olhos, e perceber todos juntos, compartilhando o café, sorrindo e brincando sem nenhum ar de preocupação.
Uma curva e o pescoço de Alba se esforça para não perder outros detalhes do grupo. Até que não
é possível vermais nada. Os prédios já escondem os ciganos acampados na praça. E a cena toda não durou mais do que cinco minutos.
E só então Alba volta para o trânsito e para si. Olha para o espelho retrovisor, admira o reflexo
de seu rosto, retoca o batom, ajeita a franja lisa e loira, respira fundo, acelera e esquece completamente tudo o que viu e sentiu.

CABEÇA MASCULINA


Publicada na coluna ELAS SABEM DEMAIS em 11 de novembro de 2007

Os homens só se preocupam mesmo com o trepar!
“Oh, amor, você tem que fazer algum resguardo?”, perguntou Aristides para Sara, dois dias antes da cirurgia. Ela ia fazer uma intervenção simples, pra tirar um pequeno cisto, e o médico já havia dito que não era nada grave.
Sara tinha chegado tarde do trabalho, estava cansada, com fome e pedindo um banho.
Aristides fez de conta que não percebeu, foi tomar banho na frente, se barbeou e saiu todo cheiroso. Mas não fez menção de tocá-la. Ele a conhecia bem e sabia que podia ser um erro fatal.
Sara sacou o jogo e se animou. Correu pro banheiro, tomou uma ducha morna e prolongada, passou um creme no corpo, colocou a camisola transparente e se meteu embaixo das cobertas.
Encostaram coxa com coxa enquanto na TV passava um especial sobre as perversões do Império Romano.
Foi aí que Aristides fez a observação, com aquele tom de voz carinhoso de fazer derreter qualquer tipo de resistência feminina:
“Pensei que você estivesse de resguardo hoje”.
“Não”, ela disse. “O médico não recomendou nada sobre isso...” E deixou a mão dele subir e descer sobre suas coxas, e depois sobre sua barriga e todo o resto mais...
Terminou antes do especial da TV, mas Sara me contou que foi delicioso. Tecnicamente perfeito.
Exaustos, eles nem tentaram conversar (também já não faziam isso há tempos, mas esta é outra história). Viraram cada um para um lado e dormiram na hora, profundamente.
Na manhã seguinte, Sara estava revigorada e saiu para trabalhar. Aristides, de folga naquele dia, ficou em casa. Como sempre, ela voltou tarde, cansada, com fome e precisando de um banho.
Mas faria a operação no dia seguinte cedinho e tudo o que mais desejava era uma recepção carinhosa. Ela estava apreensiva, nervosa, com bastante medo, mesmo sabendo que tudo devia ser muito simples.
De cara estranhou as luzes da casa apagadas. O carro estava na garagem, mas Aristides não veio abrir a porta. Ela entrou e, no quarto, dormindo, lá estava ele.
Quando acendeu as luzes, ele entreabriu os olhos e murmurou: “Deixei janta pra você dentro do microondas”.
“Que sorte!”, ela pensou. “Mas não posso comer, estou de resguardo por causa da cirurgia...”, ela respondeu, quase chorando, numa tentativa desesperada de sensibilizá-lo.
“Então, guarda na geladeira...” E virou pro outro lado para continuar a roncar.

sábado, 14 de junho de 2008

A MACHADINHA


Publicada na coluna ELAS SABEM DEMAIS em 4 de novembro de 2007



Hilda tinha uma machadinha . Ganhou de presente do Doca. Mas não foi um presente qualquer. Não que ganhar uma machadinha de presente do marido seja coisa comum. Mas poderia ser um presente, digamos... terno, carinhoso ou até exótico se o marido tivesse ido até uma loja, olhado cada objeto com atenção e escolhido o que mais refletia o amor que sentia pela mulher. Mas não foi assim. Hilda foi quem pediu a machadinha . Pediu não: exigiu. Quis a machadinha quando descobriu que Doca a traia. Pois ele de birra foi à loja, escolheu um belo exemplar, de cabo vermelho, amolou bem amolado e levou para a mulher. Ela recebeu, não agradeceu, enrolou em um pano de pratos e guardou no meio de suas calcinhas. “Eu ainda te mato com essa machadinha !”, declarou. A traição foi assim: o casal e dois filhos viviam numa cidadezinha da Paraíba. Já tinham passado por São Paulo, guardado algum dinheiro e, como boa parte dos migrantes, resolvido voltar pra terrinha. Depois de um tempo, o calor, o ócio e a falta de dinheiro voltaram a apertar e eles decidiram apostar de novo no Sul. Hilda decidiu voltar pra São Paulo primeiro. Tinha contatos, antigas patroas e, avaliou, podia conseguir um emprego e preparar o retorno da família. Mas a solidão é um osso difícil de roer para o homem que adora dizer que é macho. Dois meses sem uma mulher foi o limite para Doca: arrumou uma amante, mulher de um vigia noturno. Tinham encontros todas as noite, na casa dela. Ele esperava as crianças dormirem e, pra não fazer barulho e correr o risco de acordar alguém, saía e chegava em casa empurrando a moto. Grande idéia essa do Doca! O plano era perfeito, as crianças tinham sono pesado, mas (olha aí o imponderável) a família tinha uma vizinha. E ela ligou para Hilda. A mulher enfurecida comprou uma passagem de avião à prestação e voltou no dia seguinte pra sua cidade. Foi direto pra casa da vizinha e lá passou o dia escondida. Ouviu o marido brigando para os meninos irem logo pra cama. Viu as luzes do quarto dos garotos se apagarem. Viu ele empurrando a moto da garagem sorrateiramente. E estava lá, na sala, quando ele voltou de madrugada, quase amanhecendo. Foi um Deus nos acuda! Pra encurtar a história, até levar a mulher pra conhecer a amante ele foi obrigado. Depois da fúria, Hilda, de verdade, se divertia com a covardia do marido. E aí veio a idéia da machadinha . Hilda mantém até hoje a bichinha guardada, embrulhada no pano de pratos, no meio de suas calcinhas. Quando a coisa aperta, ela só fala: "Olha, Doca, que um dia eu ainda vou usar essa machadinha."

sexta-feira, 6 de junho de 2008

OS PÉS DE FLORA

Publicada na coluna ELAS SABEM DEMAIS em 28 de outubro de 2007




De todas as histórias que já ouvi sobre dormir de meias, a mais curiosa foi a de Flora. Minha amiga não é nada burguesa, mas nunca dispensa o par de meias na hora de ir para a cama.
Suas meias têm estampas infantis, combinam com suas camisolas e pijamas coloridos e não importa a temperatura da noite: elas estão sempre lá, protegendo seus pés.
Flora explica que dorme de meias desde os 20 e poucos. O motivo? Um grande amor, talvez o único de sua vida, que acabou casando com outra que engravidou primeiro.
Mesmo com tanta desilusão, ela se ilumina quando lembra que o amava perdidamente. Que os beijos eram doces, o sexo era ótimo, os orgasmos freqüentes, mas que, depois do rompimento,
o que nunca conseguiu esquecer mesmo foi daquela sensação dos pés do outro nos seus pés. “Era como se nossos quatro pés fossem um único pé, entende?”, pergunta, chorosa.
Se peço para ela contar mais, dar mais detalhes pra eu entender essa história, Flora fecha os olhos e entra em transe.
Primeiro um sorriso se desenha no seu rosto e ela suspira ao lembrar da antiga paixão. Diz que sente imediatamente o volume e o frio dos pés do outro, a aspereza dos seus calcanhares masculinos, o toque das unhas mal aparadas e até o roçar dos pêlos que ele tinha sobre o peito do pé. E aí solta outro suspiro.
De repente, quando percebo, Flora já está aos prantos e diz que só deseja que ele também suspire sempre, com a lembrança dela e de seus próprios pezinhos delicados, número 33. São minúsculos os pés de Flora.
“E foi por isso que passei a dormir de meias. A
cada novo namorado, a cada novo amante, mais que companhia e sexo bom, o que procuro é a mesma sensação nos pés. O pior é que são mais de 20 anos nesta busca”.
É assim que ela se comporta: no primeiro encontro nunca usa as meias. É a esperança de reencontrar a sensação que alimenta a sua loucura. Mas, a partir do segundo encontro, colocá-las é inevitável. É como um impulso doentio que não consegue evitar. Não usar meias lhe provoca náuseas e tremedeiras.
Flora diz que é por causa dessa obsessão que sempre está só. Os homens com quem sai nunca conseguem satisfazê-la. E, além de tudo, é lógico que acham a meia brega.
Mas, penso, eles até devem ter razão!
Minha amiga exagera. Imagina só, no meio da empolgação, nua em pêlo, a mulher sempre pára tudo, abre a bolsa, cata um par de soquetes e o calça. E sem dar a menor explicação.


domingo, 25 de maio de 2008

A EX-MULHER



Publicada na coluna ELAS SABEM DEMAIS em 21 de outubro de 2007




Ela tinha cabelos claros, no tom dourado. E olhos também claros, no mesmo tom dos cabelos. Mas lembro que eram grandes, sempre esbugalhados e brilhantes quando falava, e isso foi o que mais me impressionou nela. A vi apenas três vezes e sempre foi em seu olhar que eu me fixei. Na primeira vez, o olhar era de submissão. Na segunda, de desespero. E, na terceira, vinha carregado de uma frieza, quase uma ameaça.
Foi no intervalo entre o nosso primeiro e segundo encontros que ela de boa vontade se apresentou a mim: “Oi, eu sou a ex-mulher do João”. Ela falou aquilo como se fosse uma sina, uma profissão: “Eu sou a ex-mulher!” E ao mesmo tempo com tanta naturalidade que eu me assustei. Porque ao atribuir a si mesma a posição de “ex-mulher” ela se destituía do que dela era mais importante, o ser mulher. Era como se ela só existisse a
partir dele, através dele.
Não que a culpa fosse dela. Em se tratando de casais, não há culpas individuais. Eu, sem ao menos conhecê-los direito, conhecia bem a sua história. Não que eu fizesse questão de saber. É que tenho um curioso dom: fico sempre sabendo do que não procuro saber. Não preciso especular, não preciso perguntar — cedo ou tarde as pessoas vêm a mim e me contam, como se eu fosse alguém para quem vale sempre contar sobre a própria vida e a vida alheia.
Então, sabia que um dia se amaram, não por uma paixão avassaladora. Soube que ela tinha por ele grande admiração e ele, por ela, carinho e respeito. Mas que um dia ele, que era mais consciente de suas vontades, decidiu partir. E ela não se conformou. E, mesmo não morando mais na mesma casa, continuou a cuidar dele. Levava suas contas
ao banco, orientava a empregada, checava a sua geladeira. E ele, por compaixão, permitia. E ela não perdia as esperanças de um dia voltar a dividir com ele a cama. E ele tinha a certeza que isso nunca mais aconteceria.
E pensando nela, e no significado das palavras, tentei me colocar no seu lugar. Eu definitivamente nunca me apresentaria como “a exmulher”. Acho que diria algo assim: “Oi, prazer, eu sou Maria. Ele, João, é meu ex-marido”. Falariadojeito certopara quepercebessem queeu não sou anexa a ele. E quem me ouvisse entenderia que aquele tinha sido sim o meu homem, que eu o amei e que, no fundo, de alguma forma, ainda o amava. Que tinha sido sua mulher, mas que por conta do passar da vida a vontade de ficar junto esfumaçou-se. Que ele percebeu primeiro e eu, não tendo como negar, mesmo com dor, cedi. E que, agora também livre, estou pronta para procurar outros amores.