TUDO EM UMA
SÓ LIGAÇÃO
Quase toda madrugada é
uma mulher que atende o telefone.
Liane liga para pedir que
um guarda noturno a espere
chegar no portão de casa. Do
outro lado da linha, uma voz
metálica, cansada e irritada. A
primeira vez que a ouviu, Liane
garante que soube o que a
atendente sentiu:
— Ficou intrigada, curiosa
mesmo sobre quem eu era.
Pensou assim: “Nossa, isso é
hora de uma moça voltar para
casa sozinha?” — me disse Liane,
enquanto descrevia uma
cena imaginária. — Então, ela
olhou para o relógio e, intimamente,
faz uma autocrítica.
“Ora, o que estou mesmo pensando?
Mas eu trabalho a essa
hora!” E sorriu. — É que geralmente
passa da meia-noite
quando eu telefono, sabe?
Liane é assim: sempre imagina
o que outras pessoas pensam
dela, como reagem ao vêla
ou o que dizemquando ela
vira as costas.
—Bem, até hoje sinto a
moça despeitada quando escuta
a minha voz do outro lado
da linha. Ela atende o telefone
do mesmo jeito: “Central de
vigilância, bom dia”. Ao escutar
o meu “boa noite, é a Liane”,
ela responde um “boa noite”
seco, sempre seguido por
um “tchi”. É bem baixo esse
“tchi”,mas dá para perceber a
má vontade. No fundo, ela
quer dizer: “Ah, que saco! Que
vontade de xingar essa mulher
que me pede segurança!”.
— Você traduz todo o sentimento
de uma atendente de
telefone só através de um
“tchi” que você escuta, Liane?
Acha mesmo que está certa?
— Lógico que sim. O mais
irritante é que ela sempre pergunta
o número da minha casa.
Todo dia! Faz três meses que
ela trabalha lá. E eu respondo:
“É a três, meia, zero”. Então ela
pergunta qual é o carro. E eu
penso: “Que droga! É o Ka e ela
ainda não decorou!”. Mas eu
sou educada e digo com calma:
“É o Ka vermelho”. Quer também
saber em quanto tempo
eu chego. Mas são sempre dez
minutos, é a norma deles! E,
então, ela diz ok e desliga.
Liane imagina como amoça
é. Nunca a viu, não sabe o
seu nome, mas a descreve como
magrinha emuito miúda,
com os cabelos tingidos de castanho
claro já meio desbotados,
sempre presos em um rabo
de cavalo, e vestindo um
terninho surrado, às vezes preto,
às vezes azul claro.
— Ou seja, é horrorosa!
Minha amiga diz que gostava
mais do rapaz que a atendia
antes. Segundo ela, ele era
“boa praça”, mais esperto:
— Já respondia assim que
ouvia minha voz: “Ok, Liane,
daqui dez minutinhos o guarda
vai estar lá!”. Simples.
Liane também imagina como
ele era e se vestia.
— Moreno e meio gordinho.
Um pouco mais alto que
eu. E não usa barba. Roupas?
Sempre jeans, uma camiseta e
por cima um casaco ou um colete.
Quando usa camisa, o último
botão está invariavelmente
aberto, mostrando um
pedaço desagradável de sua
barriga. Acho que ele é assim.
Só há um detalhe em tudo
isso, Liane me conta, como se
fosse um segredo:
—É que, desde que a moça
começou a atender, nunca
mais o segurança furou, ou seja,
deixou de aparecer. Como
“boa praça”, várias vezes eu fiquei
rodando em volta do
quarteirão até o guarda chegar.
Sei lá, pode ser coincidência,
mas não deixa de ser curioso. A
moça é antipática, mas até que
é eficiente. Já o moço...
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