quinta-feira, 26 de novembro de 2009

O primeiro desejo

Publicado em 20 de abril de 2008

— Oi. Olha, me desculpe por ter demorado tanto a ligar — era Douglas do outro lado da linha.

O coração de Analice foi parar na boca. Meio seca, ela respondeu:

— É. Me disseram que você tinha voltado.

— É... Aconteceram uma coisas lá no Rio, eu engravidei uma menina. Tive que casar. Mas — ele continuou, com certa doçura na voz — é de você que eu gosto, sabe? Então, não quer ficar comigo mesmo assim?

Analice parou de respirar por alguns segundos. Não podia acreditar na proposta que ouvia. Douglas não dava notícias havia três meses, desde que viajara para o Rio de Janeiro, com a ajuda dela. Na escola, uma amiga em comum acabou lhe contando que ele havia voltado com outra garota. Com raiva, telefonou para a casa dele (tinha ligado só após um mês de desaparecimento, e desistido). E, num dos telefonemas, o próprio atendeu e, ao reconhecer a voz da ex-namorada, desligou apressado. No dia seguinte, ele próprio resolveu telefonar para a moça.

Douglas e Analice haviam se conhecido em 1984, no feriadão de Independência. Tinham 18 anos. Com ele, Analice entendeu pela primeira vez o que era o desejo. Estavam na praia. Douglas e alguns amigos, numa quitinete alugada. Ela, na casa da família de uma amiga. Numa noite muito quente, com todos os jovens reunidos na sala da quitinete, ela ao lado dele no sofá, a mão quente que subia e descia discretamente pela sua perna lhe fez sentir arrepios que não sabia que existiam.

O namoro continuou ao voltarem do passeio. E o desejo só fez aumentar. O casal não se largava. Um dia, ele a levou a um barzinho para casais. O lugar era escuro e cheio de cubículos onde só cabiam duas pessoas, forrados de um veludo preto e fechados com uma cortina também preta. À frente do banco, uma mesinha parecia mais o parapeito de uma janelinha por onde os pedidos eram feitos e entregues. Para chamar o garçom, havia um botão que, ao ser apertado, acendia uma luz do lado de fora. Naquele cubículo, sem nenhum pudor, a garota perdeu a virgindade.

Em janeiro de 1985, Douglas, mesmo sem trabalho ou dinheiro, a convidou para ir ao Rock in Rio. Analice era maior, mas o medo da reação de seu pai a fez recusar. Mesmo assim, arrumou dinheiro para o namorado seguir na aventura, certa de que ele voltaria em fevereiro.

— Mas ele só voltou em abril, casado e com a maior cara de pau do mundo. Quando ouvi a proposta de ser sua amante, só consegui responder: quero que você morra! — Analice me contou outro dia.

— E você, não se arrepende de ter perdido a virgindade naquele lugar? — perguntei.

— Ah! Isso não — me respondeu, meio divertida. — Quer saber? Eu não liguei nada pra esquisitice do barzinho. Pra mim, até hoje, é como se tivesse sido às margens da Lagoa Azul.

É. A paixão cega mesmo as mulheres.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

História diferente

13 de abril de 2008

A história da Branca começa como a de muitas mulheres. Ela era muito jovem quando se casou com Leopoldo, já grávida. Primeiro namorado, tinha por ele uma paixão avassaladora. Nos primeiros anos juntos, ela se sentia feliz. Sonhava viver toda vida com ele.
Para ajudar nas contas da casa, abriu um pequeno bazar no bairro onde moravam. Dava duro, mas ganhava pouco. Leopoldo era autônomo. Intermediava a venda de vários produtos, de jóias a equipamentos eletrônicos, e conseguia algum dinheiro. Não faltava o básico na casa. E, quando precisavam de algo a mais, o pai de Leopoldo, oficial aposentado do exército, sempre ajudava.
Tiveram o primeiro filho, um menino, e, dois anos depois, nascia uma garotinha. Após seis anos juntos, conseguiram comprar uma casa.
Leopoldo, porém, começou a mudar. Ele já não era carinhoso. Conversava pouco e voltava tarde. Quando ela perguntava o que acontecia, acabavam brigando.
Branca, desconfiada que o marido tinha outra, resolveu investigar. Um dia seguiu Leopoldo e o viu com uma moça, aos beijos, em um bar. Mas não era mulher de escândalos. Voltou para casa chorando e, quando ele chegou, não lhe disse nada. E também nunca mais tentou reconquistá-lo.
Secretamente, Branca planejava uma forma de acabar com seu casamento. Precisava ter dinheiro para viver com os dois filhos — o que ganhava no bazar não os sustentava. Ela também arrumou um amante.
“Foi por vingança. Mas o Leopoldo descobriu e a vida virou um inferno. Ele passou a me humilhar e exigiu a separação. Não adiantou eu dizer que sabia que ele também tinha outra”, me contou Branca.
O marido quis metade de tudo o que tinham. E o bazar teve que ser vendido. Branca sabia, porém, que o pior viria na hora de discutirem a pensão das crianças. Ela não tinha como provar quanto Leopoldo ganhava. E ele já avisara: lhe daria o mínimo possível.
“Ele queria me ver na miséria e fazer as crianças terem raiva de mim”.
Foi aí que Branca fez a sua história ser diferente da de outras mulheres que se separam: no fórum, na hora de definir o valor, ela disse ao juiz:
“Doutor, vou abrir mão da guarda. Não tenho como criá-las”.
Leopoldo ficou pálido: nunca quis ficar com os filhos. Mas seu pai tinha dinheiro e o juiz aceitou.
Muita gente a criticou.
“Como uma mãe abria mão assim dos filhos?”
Mas ela me disse que foi o melhor que podia fazer.
“Eles não passaram pela falta de dinheiro que eu tive que enfrentar. Está certo que cresceram na casa do pai, mas sempre foram muito mais próximos de mim”, conta.
Quando havia algum problema, Branca era acionada por telefone. Aos poucos, ela refez sua vida, reabriu o bazar e hoje tem duas lojas.
“E os meninos, quando puderam, escolheram morar comigo”.

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Um ideal de mulher

Publicada em 6 de abril de 2008

Em Água Funda ninguém a entendia. Nascida e criada no lugarejo, quando voltou, depois de passar mais de dez anos longe, era como se fosse uma desconhecida. Ela fingia desdenhar o que os outros pensavam, mas no fundo sofria com a incompreensão e indiferença de todos.
Aparecida cresceu em uma chácara como uma menina comum do interior. Foi formada pela mãe para ser uma dona-de-casa perfeita: cozinhava como ninguém, cuidava da limpeza sozinha, deixava as panelas brilhando, as roupas lavadas por ela eram as mais brancas e cheirosas da redondeza.
Seus pais seguiam uma cartilha muito comum naquelas paragens — faziam de conta que o mundo fora da sua região não existia. É que não queriam a sua Cidinha experimentando a vida solta, longe de seus olhos. Mas a menina crescia olhando para fora da cerca da chácara. E, secretamente, planejava o meio de conhecer o que havia além do fim da estrada.
O primeiro passo foi fazer uma faculdade na cidade vizinha. Se formou em economia. E, numa manhã, quando os pais acordaram, ela já havia tomado a sua decisão — partiria para a capital do estado. Já tinha emprego arrumado e não havia mais nada que eles pudessem fazer para evitar a sua partida.
Pelos próximos anos, Cidinha seria a referência do lugarejo na capital. Muitas de suas colegas de Água Funda a usavam de exemplo para suas próprias filhas.
“Ela se esforçou para chegar onde está. E não precisou casar. Tem seu apartamento e um bom salário. Não tem essa vida sem sentido que nós temos aqui”, diziam.
Mas, apesar de demonstrar independência, Cida vivia para um namorado. Cuidava dele como sua mulher. Trabalhava fora e cuidava das duas casas: a dele e a dela. Se questionada, dizia que era apaixonada e que iam se casar. Foram sete anos assim: cozinhando, limpando e pagando as contas dele. Até que um dia Cidinha perdeu o emprego e, sem dinheiro todo mês, o namorado também a abandonou.
Em Água Funda, ninguém sabia dessa parte de sua vida na cidade. Por isso, quando voltou para morar com os pais, triste e sem esperança, muita gente torceu o nariz.
O desapontamento geral e definitivo aconteceu, porém, quando ela engravidou de um agricultor sem estudo e resolveu se casar. Daí para a frente, ninguém mais a respeitou. O ideal de mulher independente que ela representava faliu na cabeça do povo da cidade.
Cida, hoje, tem dois filhos. Trabalha como doméstica na casa de uma das famílias mais ricas do lugarejo. Seu diploma está perdido. Ela não reclama. Antes, se conforma. Prefere pensar que viveu só uma aventura na capital. Da antiga paixão, nunca mais ouviu falar.
“O que sou mesmo é uma mulher comum do interior”.