quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Um ideal de mulher

Publicada em 6 de abril de 2008

Em Água Funda ninguém a entendia. Nascida e criada no lugarejo, quando voltou, depois de passar mais de dez anos longe, era como se fosse uma desconhecida. Ela fingia desdenhar o que os outros pensavam, mas no fundo sofria com a incompreensão e indiferença de todos.
Aparecida cresceu em uma chácara como uma menina comum do interior. Foi formada pela mãe para ser uma dona-de-casa perfeita: cozinhava como ninguém, cuidava da limpeza sozinha, deixava as panelas brilhando, as roupas lavadas por ela eram as mais brancas e cheirosas da redondeza.
Seus pais seguiam uma cartilha muito comum naquelas paragens — faziam de conta que o mundo fora da sua região não existia. É que não queriam a sua Cidinha experimentando a vida solta, longe de seus olhos. Mas a menina crescia olhando para fora da cerca da chácara. E, secretamente, planejava o meio de conhecer o que havia além do fim da estrada.
O primeiro passo foi fazer uma faculdade na cidade vizinha. Se formou em economia. E, numa manhã, quando os pais acordaram, ela já havia tomado a sua decisão — partiria para a capital do estado. Já tinha emprego arrumado e não havia mais nada que eles pudessem fazer para evitar a sua partida.
Pelos próximos anos, Cidinha seria a referência do lugarejo na capital. Muitas de suas colegas de Água Funda a usavam de exemplo para suas próprias filhas.
“Ela se esforçou para chegar onde está. E não precisou casar. Tem seu apartamento e um bom salário. Não tem essa vida sem sentido que nós temos aqui”, diziam.
Mas, apesar de demonstrar independência, Cida vivia para um namorado. Cuidava dele como sua mulher. Trabalhava fora e cuidava das duas casas: a dele e a dela. Se questionada, dizia que era apaixonada e que iam se casar. Foram sete anos assim: cozinhando, limpando e pagando as contas dele. Até que um dia Cidinha perdeu o emprego e, sem dinheiro todo mês, o namorado também a abandonou.
Em Água Funda, ninguém sabia dessa parte de sua vida na cidade. Por isso, quando voltou para morar com os pais, triste e sem esperança, muita gente torceu o nariz.
O desapontamento geral e definitivo aconteceu, porém, quando ela engravidou de um agricultor sem estudo e resolveu se casar. Daí para a frente, ninguém mais a respeitou. O ideal de mulher independente que ela representava faliu na cabeça do povo da cidade.
Cida, hoje, tem dois filhos. Trabalha como doméstica na casa de uma das famílias mais ricas do lugarejo. Seu diploma está perdido. Ela não reclama. Antes, se conforma. Prefere pensar que viveu só uma aventura na capital. Da antiga paixão, nunca mais ouviu falar.
“O que sou mesmo é uma mulher comum do interior”.

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