domingo, 19 de abril de 2009

O Bom Tormento


Publicado em 27 de janeiro de 2008

Antonia acordou naquela manhã e não quis levantar da cama. Dormir já tinha sido um sacrifício. Na última noite, havia o barulho da chuva. Antonia sempre adorou dormir com o barulho da chuva no asfalto, os trovões ao longe, as folhas balançando nas árvores, no quintal. Porém, daquela vez, ouvir a chuva batendo na calha foi como ouvir marteladas que a impediam de relaxar. “Onde ele está?”, ela não parava de se perguntar.

A chuva insistente tinha decidido não parar e Antonia dormiu com seus pesadelos de sempre. Monstros a alcançavam. Ela corria por um mundo escuro e negro, com árvores centenárias e raízes contorcidas. E sempre tropeçava e escorregava na terra. E, ao acordar, eram só o medo e a solidão doendo na alma.

Mesmo quando dormia acompanhada de um de seus casos eventuais, ela tinha o pesadelo e acordava assustada, com a transpiração fria e a respiração ofegante. Aquilo sempre se repetia. E o pior é que nem achava seu pesadelo original. Para ela, sua aflição noturna tinha imagens parecidas com aqueles filmes B americanos e de terror. E Antonia sempre odiou filmes americanos de terror.

Naquela manhã, incomum por causa da chuva que não parava, ela se encolheu ainda mais debaixo do cobertor, apertou seu travesseiro e quis voltar a ser criança. Criança, achou, não pensaria nele. Mas não conseguia ser criança. Sentia como mulher que era. Pensar naquele homem era parte de sua rotina.

Ricardo. Acordar com ele todos os dias no seu coração, dirigir a ele o seu primeiro pensamento, suspirar e torcer para encontrá-lo assim, sem querer, pela rua, tomando um café no bar da esquina, no consultório do dentista, no posto de gasolina. Mais que os pesadelos constantes, era esse o seu pior tormento. “É que não só acordo com ele, mas penso nele a toda hora, em várias situações, algumas até sem sentido. Outro dia, tive a certeza de que era ele gritando na calçada as ofertas da semana no maganize que tem em frente ao meu trabalho”, ela me contou. “E por que você não vai fazer terapia? Ou vai enlouquecer”, perguntei. “Eu já faço terapia.”

Entendi que, de fato, Antonia adorava e cultivava tal “tormento”. Porque era tudo o que lhe tinha sobrado de Ricardo: lembranças e fantasias. Ele não havia sido apenas um caso eventual.

Com a chuva, tudo era muito doloroso. Antonia suportava a lembrança na rotina, mas a chuva lhe trazia um desejo por algo que não se completou. Algo que ela desejou, mas que não soube como alcançar. Uma culpa sem sentido já que nada acontece fora de sua época. Mas era como se ela já o tivesse perdido. Por onde andaria aquele rapaz?
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