quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Olhares virtuais

Publicada em 30 de março de 2008

Verônica sentou à noite na varanda para sentir o cheiro de biscoito assado no ar. A lua cheia brilhava meio escondida sob as nuvens do início do outono. Havia uma brisa fresca, o que permitia que o cheiro quente chegasse como um abraço.
O cheiro de biscoito sempre a deixava feliz. A remetia a um tempo em que a vida era mais simples e os símbolos das situações, claros.
Na sua infância, cheiro de biscoito significava a hora da parada rápida na brincadeira para o lanche da tarde. Era aconchego e cuidado no sítio dos avós.
Após respirar fundo, Verônica quis mesmo voltar a ser criança. Não conseguia parar de pensar em como os símbolos da vida se complicam conforme as pessoas envelhecem. "Devia ser o oposto. Devíamos crescer aprendendo a simplificar a vida", pensava.
Minha amiga havia superado uma fase difícil. Mas continuava pensativa, refletindo sobre o que tinha lhe acontecido.
Quando descobriu a internet, ela mergulhou no mundo virtual. Todo seu dia era regulado pelo computador. E a convivência com os outros, também.
Primeiro foram os e-mails entre os conhecidos. Depois, cartões e flores virtuais. Enfim, chegaram os amigos e amores que não conhecia. Passou a ser especialista em interpretar o que os outros queriam dizer na net.
— Ele escreveu tudo em letra maiúscula. Está com raiva — disse uma vez, já em pânico com o possível mau humor do seu chefe naquele dia.
— Ele pode só estar com pressa. Não prestou atenção na letra que fez — argumentei, mas ela não se convenceu e sofreu à toa.
Naquele dia, seu chefe chegou de muito bom humor.
Com os amigos virtuais, a situação ficou pior. Ela ficava horas no chat. Depois, vinha mostrar os diálogos que queriam dizer isso ou aquilo.
— Recebi um buquê de girassóis, com uma dedicatória linda! Como são perfumadas!
Eram flores virtuais, mas ela sentia o cheiro delas! Eu lhe perguntava como podia estar apaixonada por alguém que nunca havia visto ou ouvido. Mas ela não me dava atenção. Preferia se entregar ao amor filtrado e revisado da internet.
Um dia, porém, o namorado virtual quis um encontro real. Ela vacilou um pouco, mas topou. Só que tinha que contar para o rapaz sobre o seu problema físico. Quando adolescente, sofrera um acidente de moto e perdera uma perna.
— Contei, Vi. Para ele, isso me engrandece.
No dia seguinte, na hora marcada, o rapaz dos girassóis não apareceu. E nem nunca mais. Verônica chorou um mês inteiro. Mas já superou o trauma e entendeu a experiência como uma lição. Ela sabe que não pode se livrar da internet no mundo atual. Mas aprendeu a fazer questão de sentir cheiros, olhares e, principamente, toques reais.

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