sexta-feira, 24 de junho de 2011

Uma certa Maria

Maria se transformou num trapo humano. Sua pele como que se descolou dos seus ossos.

Se escuta, ninguém sabe. Mais parece que escolhe o que escutar. Ou então prefere fingir que ninguém fala, para não precisar falar.

Nada mais lhe pertence. E também não se pertence mais. Olhos parados, corpo parado, boca caída.

Só usa roupas largas, peças desconexas, nos pés só chinelos com meias e, na cabeça, uma touca de lã.

Não escolhe o que comer, não se importa onde a colocam, não opina sobre nada.

Mas sente. Percebo isso em alguns de seus raros olhares, brilhantes de lágrimas que nunca caem.

Eu me pergunto: onde está Maria? Aquela mulher que um dia foi a temida, a raivosa, a mais bela, a mais querida. E que também foi, muitas vezes, a mais odiada.

Ninguém quer mais Maria. Mas, pensando bem, vários tentaram e ela não deixou.

O primeiro que lhe amou foi Rômulo. Funcionário de escola, ele também foi o único que ela desejou. Mas, como ela, tinha um péssimo gênio. Trocavam juras de amor num dia para, no seguinte, brigarem aos gritos por causa de uma bobagem qualquer. Ele a queria tanto, e tinha tanto medo do seu querer, que buscava na agressão gratuita uma forma de se proteger. Enfim, não sabia o que fazer com aquele amor. Foram tantas idas e vindas, que um dia o pai dela, um italiano tradicionalista, decidiu: “Este namoro acabou!” Maria, obediente, aceitou. Mas seu coração amargou.

Então, vieram os outros.

Miguel, o mecânico, tinha um negócio próprio, uma oficina promissora. Vivia com quatro irmãs, todas amigas de Maria, que a achavam uma boa cunhada, ótima dona de casa. Mas o cheiro de Miguel não a agradava. Mesmo de banho tomado, água de colônia da melhor no corpo, a graxa impregnava o nariz de Maria. E ela o mandou embora.

Depois, apareceu o viajante, vendedor que trazia da capital as novidades da moda, os melhores perfumes, as mais belas roupas, os objetos mais raros. Tonico quis levar Maria com ele. “Juntos conheceremos o mundo”, ele disse, ao se encantar com o bom gosto da moça, sempre impecável, altiva, segura, linda. Mas tudo o que Maria não queria era sair do seu canto. E Tonico se foi só.

Por fim, se apresentou Adelino, um engenheiro viúvo que chegou para construir uma estrada e foi ficando pela cidade. Ele já era rico. Logo de cara, lhe deu uma pulseira de ouro e lhe ofereceu um casamento de princesa e uma casa de rainha. Mas Adelino era mais velho e, para ela, era como se estivesse aceitando se casar com um tio.

Além dos amores, quanto mais a vida andava, mais Maria recusava o afeto dos parentes e amigos. Usava a grosseria gratuita e o isolamento voluntário. Foi se afastando de todos até que todos se cansaram dela. Envelheceu com beleza e parecia feliz com sua independência. Agora que nem isso lhe sobrou, quem a vê só sabe dizer: “Coitada, como é só essa Maria!”

Publicado na Diário DEZ em 24 de agosto de 2008

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