quinta-feira, 14 de abril de 2011

Embaixo do lençol

A menina de 4 anos ficava empolgada quando via aquele perfil conhecido de longe. Rita não tinha 50, mas parecia já ter passado dos 60. Tinha pressão alta, varizes e outras doenças que os médicos diziam ser relacionadas à idade. Mesmo assim, trabalhava numa casa de família. Era miúda, muito enrugada, cabelos armados e cinzentos, e usava saias abaixo do joelho que a faziam parecer ainda mais maltratada. Mas, para Bianca, a menina que a esperava na janela com ansiedade, aquela senhora era a visão da felicidade: linda, divertida e forte.

Rita era sua avó. Sexta-feira era o dia que ela chegava. Podia fazer o tempo que fosse, Rita podia estar se sentindo mal, nada a impedia de, toda sexta, deixar a casa dos patrões para passar o fim de semana com a única neta que Deus havia lhe dado. Mãe de cinco homens, Rita sentia através da neta a possibilidade de recuperar toda a feminilidade que ela , por força da vida, foi deixando pra lá.

— Ela é menina. Merece a delicadeza. Vocês não precisavam disso — dizia para os filhos, com quem sempre foi o que gostava de chamar de firme.

— Homens não choram!

Para a Bianca, toda sorte de mimos era possível. E a menina adorava roupas novas, de preferência as que precisavam de algum ajuste. É que o ato de acertar uma barra ou afinar a cintura de um vestido era sempre uma festa. Rita colocava Bianca sobre uma cadeira e as brincadeiras começavam.

— Fica quieta, menina, senão sem querer eu te espeto! — dizia, dando risada.

E Bianca se desmanchava de alegria e de encantamento.

Nada, porém, deixava Bianca mais feliz do que o momento de chegada da avó à sua casa.

— Morávamos no último sobradinho de uma vila particular. Da janela do meu quarto, eu via a ruazinha de paralelepípedos que ligava o resto do mundo ao pátio da vila. E de lá eu via aquela figura miúda chegando. Só aquela visão me excitava: corria para preparar-lhe uma surpresa. E me escondia no melhor lugar da casa: embaixo do lençol. Acreditava que desaparecia. As crianças acreditam que, sob o lençol, a cama fica lisa. E eu ficava na expectativa, ouvindo seus passos subirem a escada, ela entrar no quarto e perguntar por mim. Alguém dizia que eu tinha saído, e ela se sentava sobre mim, e eu ria e dizia: “Vó, estou aqui”, e ela se fingia de surpresa. Ríamos a valer.

Sempre quando Bianca conta essa história ela se emociona. Chega a chorar e não sabe direito o porquê: se é saudades da avó ou daquela menininha que acreditava que o lençol sobre ela era o esconderijo perfeito.

— É que hoje sei que os esconderijos perfeitos não existem. E que também não existe mais a menina. Só existe a mulher.

Publicado na Diário DEZ! em 13 de julho de 2008.

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